Urariano Mota: Fatal coincidência

Tempo de leitura: 3 min

Publicada em:24/03/2010

por Urariano Mota, em Direto da Redação

Recife (PE) – Esta é uma história que a vida nos entrega pronta. Muito contra a nossa vontade, é claro, mas o real nunca nos consulta sobre o que gostaríamos de comer. Acompanhem trechos da necessária reportagem de Ed Vanderley e Rafael Dias, publicada no Diário de Pernambuco desta quarta-feira.

“No último dia 10 de janeiro, José Alex Soares da Silva, 19, e Diego Pereira Cruz, 18, pagaram o preço de terem sido confundidos com bandidos que tinham praticado um suposto assalto a um posto de gasolina. Eles voltavam de uma pelada num campo de várzea, por volta das 19h, em Petrolina, no Sertão. Ao pararem para abastecer a moto no posto Paizão, na BR-428, foram acusados pela proprietária do posto Umburuçu, que fica próximo, de serem os autores do assalto, ocorrido minutos antes. Sem a mínima chance de alegarem defesa, foram brutalmente espancados por seguranças e motoristas que haviam sido vítimas dos bandidos no posto anterior. José Alex morreu três dias depois no Hospital de Traumas de Petrolina em virtude das fortes agressões. Diego sobreviveu, mas com marcas no corpo e na alma…

No Hospital de Traumas de Petrolina, onde Diego foi atendido e Alex passou três dias internado, houve mais terror. ‘Os policiais me ameaçavam dizendo que eu tinha uma hora para começar a falar”, contou Diego. “Me levaram a uma área chamada de pantanal, tiraram minhas roupas, colocaram um saco na minha cabeça e me bateram, me mandando mudar de história’, disse.

Na delegacia, as agressões teriam continuado e incluíam a simulação de afogamento em um vaso sanitário”.

E perdoem por favor a frase óbvia a seguir. Nos limites da democracia brasileira, não existem mais torturados políticos. E dizer isso não é dizer pouco, quando temos na memória e na retina o que foi o Brasil da república Médici. Mas a verdade manda dizer que continuam a ser torturados os de sempre, desde o passado colonial. Ganhamos hoje, com a democracia, o território livre da denúncia, na medida do possível, quando não falamos mal do anunciante. Ganhamos também a ocasião de levar à justiça os crimes de sempre. Mas, mas, mais: o quanto isso ainda é pouco. Acompanhem, na reportagem citada:

“O delegado que concluiu os dois inquéritos de assalto, Erlon Cícero, defende que qualquer outro colega teria autuado os jovens em flagrante. ‘Três ou quatro pessoas que se dizem vítimas afirmam que não tiraram os olhos dos suspeitos e que os assaltantes são aqueles que estão na sua frente. Chega outra suposta vítima dizendo que também foi assaltada por ele. Como você iria fugir e não lavrar o flagrante?’, justifica. Sobre as denúncias de espancamento que Diego Cruz teria sofrido, por volta das 3h do dia seguinte ao crime, o delegado é categórico: ‘Não vi nem ouvi nenhum movimento anormal durante o plantão’ ”.

Comecemos pelo fim: o que seria um movimento anormal em uma delegacia de polícia? Porradas, afogamentos, brutalização que animais rejeitam? Não, isso é comum. Seriam então, mais precisamente, gritos e uivos em silêncio? Queremos dizer, gritos e uivos que não impressionam a sensibilidade em torno? Não, isso ainda é mais comum. Podemos então imaginar que anormal seria tudo aquilo que os olhos, os ouvidos e a sensível pele da autoridade, e com ela toda a gente, não percebem ou dizem não perceber. E com isso o fato objetivo – a dor e a humilhação de presos – ganha o foro de fato subjetivo. O que em bom português quer dizer: o que os olhos não querem ver, o coração não sente. Ou melhor: o que antes já foi rejeitado pelo coração, os olhos não veem.

A civilização brasileira tem um histórico de tortura, normal, que vem de homens tornados bestas, desde a escravidão. Daí que as notícias reclamam mais a circunstância de os dois rapazes não serem marginais que a própria tortura e morte sofrida. Daí que num ato falho, num flagrante da nossa humanidade, se diga que o preso foi torturado e morto injustamente. Daí a relevância com que o caso sobe à notícia. Se se tratasse de ladrões, traficantes ou assemelhados, ah, bom, comeriam formiga por justiça histórica e civilizada.

Nos comentários da notícia, em novo ato falho, houve quem dissesse que as vítimas estavam no lugar errado, na hora errada. Que azar, não é? Mas se olhamos bem, enxergamos o contrário. Mais próprio seria dizer que eles eram as pessoas certas, na hora certa e no lugar certo. As vítimas José Alex Soares da Silva e Diego Pereira Cruz acumulavam todas as coincidências de marginais no Brasil: eram jovens e pobres. E, fator máximo de crime, negros. Por que não seriam eles os ladrões? Numa infeliz coincidência, traziam juntos idade, pele e renda do pedigree de sua raça. E um cão danado, sabe-se, todos a ele.


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Comentários

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vigilante barbera

Cadê a ordem dos advogados, a mesma que acha (OAB DF) desnecessária uma intervenção no "quintal da república"?
Posso destilar todo meu ódio aos meus "covardes irmãos", pois sou claro quanto a eventos como o relatado (vejam bem: eventos como o relatado!): não tenho qualquer ímpeto para participar de linchamentos, não consigo me ver como um desses animais que batem covardemente, não possuo uma raiva que me faça assim agir. Ao contrário, sou francamente contra. E se for perpetrado pelos homens da lei (que lei?), aí o crime é duplo. Aliás, deve ser por isso que meu primeiro preconceito desde pequeno é contra policiais.
Cabe agora aos defensores públicos se envolverem com dignidade (com dignidade!) para salvarem o jovem que restou vivo. Pensando bem, sou capaz sim de ter uma reaçao violenta, mas não contra indefesos.

Lucas Cardoso

Pelo menos não foram levados, algemados e em público, na frente das câmeras, para o camburão. Isso seria fonte de muita humilhação, e haveria um furor em toda a mídia contra prática tão bárbara.

Né?

Kanhotão

Cadê o Ali Kamel com o seu papel higiênico encadernado?
Facínoras nojentos!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Mc_SimplesAssim

Fatos lamentáveis assim prosseguirão acontecendo enquanto a escuridão da ignorância prevalecer sobre a luz da razão.

Do lado da população é o preconceito e a descrença na justiça, do lado das "otoridades" é o preconceito e a crença na impunidade.

E quem paga pelos pecados do mundo sempre é o PPP que não tem dinheiro pra pagar advogados, mas continua com as costas largas pra levar chibatadas até mesmo depois de 1888.

Em pouco tempo ninguém mais fala sobre esse caso, pois outra tragédia de maiores proporções haverá de empalidecê-lo.

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Pablo Bonfim

Ah se isso tivesse acontecido em Cuba…

sadaki

O normal seria o delegado e os policiais que participaram da tortura serem demitidos sumariamente, e processados criminalmente. E quanto aos cidadaos denunciantes processados criminalmente e civilmente.
Alguem ainda tem duvidas de como resolver crimes praticados por autodenominados autoridades ?
Autoridade deve em primeiro lugar como todo cidadao, agir ou deixar de agir somente em virtude da lei.
E o que o secretario da justica fez ou vai fazer ?

Netuniano

Parece que a tortura acontece ainda principalmente nestes casos em que a polícia quer arrancar uma confissão do suspeito. Ou estou errado? Então, uma medida que poderia diminuir a incidência deste mal seria o sa confissão só ter a validade reconhecida se obtida mediante condições bem controladas, tal como diante de um corpo com uma quantidade mínima de autoridades presentes, gravação, e outros detalhes protocolares.

francisco.latorre

taí…

cota de homicídio a burguesada apóia.

essa cota é 'natural'… vem desde a colônia escravista.

pelo fim das cotas de homicídio violência desrespeito.

essa história de 'três pês' é mais que atroz.

é vergonha. enorme vergonha.

a vergonha maior da civilização brasileira.

a colônia escravista.

tá na hora de despachar a colônia. sem dó.

tolerância zero com o preconceito.

e pau na reação.

    Christian Schulz

    Essa eu vou adotar: "cota de homicídio"

    Dito com a crueza que o decoro da situação pede.

Dusdédit R Morais

Será que a OAB, antes tão ciosa do respeito à lei -quando as vítimas eram brancas e de classe média- vai se manifestar? Acho que não!

Otto

Nogenta, a sociedade que permite isso.

@beneramos

Bem! E agora como é que fica ou como é que ficou? Com certeza vai ficar por isso mesmo…..É pena!

Gerson Carneiro

Essas histórias encontram refúgio e fundamentação no consentimento enrustido da sociedade brasileira que se furta ao debate aberto e franco sobre o período sombrio da ditadura militar.

Infelizmente a história de horror de José Alex Soares da Silva, e Diego Pereira Cruz, compoe apenas um "conto" no expesso livro de horrores do nosso cotidiano.

E as vítimas são sempre "pretos e pobres, e outros quase pretos de tão pobres". Exatamente como denunciam Gilberto Gil e Caetano Veloso na música Haiti.

José Antônio Araújo

E dizer que o PIG se ocupa do dissidente cubano que faz greve de fome e que, como sabemos na blogosfera, é um criminoso comum… Meu conterrâneo Urariano está cada dia melhor!!!

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