Túlio Muniz: O grotesco e o patrimonialismo escancarados no trágico 17 de abril

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Paulinho, do Solidariedade, e o seu afilhado, o deputado Wladimir Costa, o#3 na nossa Galeria dos Hipócritas 

O ESTADO CONTRA A SOCIEDADE: O GROTESCO E O PATRIMONILISMO

por Túlio Muniz, especial para o Viomundo

Não cessa o incômodo causado pela sessão de 17 de Abril na Câmara dos Deputados do Parlamento brasileiro.

Poucos acontecimentos mereceram tanta atenção e análises em tão pouco tempo, dados os seus contornos e aspectos múltiplos que estão para além do golpe jurídico-midiático-parlamentar que visa por fim ao mandato da presidenta Dilma Roussef – um mandato politicamente errático, e, entretanto, legitimado pelo voto direto e pela inexistência de provas que sustentem acusações de crime de responsabilidade por parte do governo.

De fato, muito há que se refletir, por conta de da influência, no campo institucional, de ações oriundas do imaginário espectral da mídia, da mentalidade coletiva conservadora e da religiosidade cristã que sedimentam o Estado brasileiro na condição de um Estado contra a Sociedade. O Brasil é hoje um Estado que, longe de assegurar a equidade de direitos, faz da política institucional espaço de controle social e limitação da ‘micro política do cotidiano’, dos indivíduos e dos coletivos.

Cabe compreender quais os agentes políticos e midiáticos envolvidos, e quais são os dispositivos que levam e mantêm o país na condição periférica e subalternizante, uma espécie de país colonizado de si mesmo, numa crise permanente, condicionada pela restrição da economia, seja a monetária seja a dos afetos. Crise e economia, palavras que, para Agambem, são “palavras de ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. ‘Crise’ hoje em dia significa simplesmente ‘você deve obedecer!’ ”.

Evento cuidadosamente planejado para acontecer num domingo, quando boa parte da ‘grande família brasileira’ está em seus lares, a sessão parlamentar que legitimou o golpe foi amplamente televisionada. Tornou-se o palco perfeito para emergência de tipos sociais e políticos que persistem na sociedade e na política brasileiras, particularmente os tipos oriundos do ‘grotesco’ (Muniz Sodré) e do ‘patriarcalismo’ (Sérgio Buarque de Holanda).

A estratégia obteve êxito, conforme constatou a BBC: “Na Rede Globo, a audiência teve picos de 37 pontos, o que representa cerca de 7 milhões de casas acompanhando a votação. A emissora passou quase 500 minutos sem interrupções com a cobertura ao vivo da Câmara dos Deputados, um tempo recorde – mais até do que durante a cobertura do 11 de Setembro, em 2001.Somando as TVs abertas, foram mais de 50 pontos de audiência no domingo registrados durante a votação: 37 da Globo, 8 da Record, 4 da Band, 2 da Rede TV e 0,8 da TV Brasil”.

Entre os 367 deputados e deputados que votaram pelo “sim” ao golpe, centenas se apresentaram completamente à vontade para emitirem discursos e gestos típicos do grotesco que se vê cotidianamente nas emissoras de televisão há mais de quatro décadas (o clássico “A Comunicação do Grotesco”, de Sodré, é de 1973).

A longa duração desse tipo ideal grotesco se deve por conta da identificação de parte considerável da população para com ele, e que lhe dá assistência televisiva diária e lhe destina votos nas eleições – o deputado Francisco Everardo Oliveira Silva, mais conhecido como o palhaço Tiririca, notabilizado pela televisão, obteve mais de um milhão de votos em cada uma das duas eleições nas quais se elegeu deputado federal, em 2010 e em 2014.

Parlamentares presentes no golpe de 17 de Abril tinham consciência do palco televisivo no qual se encontravam, e nele exibiam suas performances toscas, forjando “identidades prêt-à-porter, figuras glamurizadas imunes aos estremecimentos das forças” (Suely Rolnik). Atuavam ao gosto dos “toxicômanos de identidade (Rolnik) que a eles assistiam e aplaudiam. O Brasil é repleto desses “toxicômanos de identidade” que foram às ruas nos últimos meses por conta de manipulações sedutoras e entorpecentes da mídia. Dependentes identitários, “vivem dispostos a mitificar e consumir toda imagem que se apresente de uma forma minimamente sedutora, na esperança de assegurar seu reconhecimento em alguma órbita do mercado” (ver texto de Rolnik em http://caosmose.net/suelyrolnik/pdf/viciados_em_identidade.pdf)

A simpatia para com os discursos reificantes de práticas de tortura típicas da ditadura militar é outro elemento do grotesco televisivo. Abundam, na programação diária da TV brasileira, programas de ‘jornalismo policial’. Neles os discursos são produzidos a partir da abordagem policial, onde os bandidos e marginais aparecem, em geral, em situação degradante, respaldada pelo ‘senso comum’, ou seja, por “um pensamento necessariamente conservador e fixista” (Boaventura Santos), que tanto legitima abusos e exageros da repressão policial quanto obsta a reflexão da condição social do ‘bandido’ – uma pessoa negra, na maioria dos casos.

O país dos 60 mil assassinatos anuais (Cf. o Mapa da Violência), dos mais de um milhão de assassinados entre 1985 e 2015, é o mesmo que almoça e janta apreciando o sangue escorrendo dos ecrãs dos aparelhos de TV. A tortura é discurso presente e palatável para boa parte da população do país que se recusou a punir seus agentes da ditadura, mantendo-os imunes pela Lei da Anistia de 1979. A mesma lei que possibilitou a volta de exilados e cassados pelo regime militar decretou o perdão oficial aos repressores.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) ratificou a Lei da Anistia, atitude criticada e questionada, como são muitas das decisões tomadas na corte nas investigações ora em curso. Exemplo: as omissões ao não se adotar, para personagens envolvidos em escândalos, o mesmo rigor de investigações contra o Partido dos Trabalhadores e na condução do impeachment. O caso mais notório é a complacência do STF para com o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha.

Galinha, Tia Eron, Irmão Lázaro, Tiririca. São alguns dos apelidos de tantos dos personagens da comédia grotesca do 17 de Abril. Muitos dos portadores de sobrenomes e apelidos estrambólicos são políticos neófitos, que ascenderam ao poder independente de seus antepassados. Não estão, portanto, entre os demais parlamentares cujas carreiras políticas seguem o mesmo caminho outrora trilhado por algum parente seu. Na última eleição, 49% dos parlamentares davam continuidade a dinastias políticas, algumas oriundas do período colonial e do Império (ver artigo “As dinastias da Câmara dos Deputados”, em http://apublica.org/2016/02/truco-as-dinastias-da-camara/).

Para algumas das chamadas ‘minorias’, a Câmara é também um microuniverso complexo, no qual a defasagem de representação de ‘minorias majoritárias’ reflete o ‘país distorcido’ (Milton Santos) que é o Estado contra a Sociedade no Brasil. Vejamos dois exemplos.

Cerca de 4% dos parlamentares são negros, e cerca de 10% são mulheres, enquanto que mais da metade da população (54%) é negra, e 51% da população são mulheres. Nos lembra Luiz Carlos Azenha que mesmo em países do Oriente Médio “ a presença feminina nos parlamentos é de 16%; a média mundial é de 22%”.

Ironicamente, no 17 de Abril, foram 29 as deputadas votaram a favor de se processar a presidenta, enquanto 20 foram contrárias. Entre os parlamentares negros, 70% defenderam o mandato da presidenta, proporção mais condizente com a defesa do governo que, entre 2010 e 2014, proporcionou o aumento de 151% no ingresso de jovens negros na universidade pública.

Outra ‘minoria’ a ser considerada na relação com o grotesco é a dos 18% de parlamentares evangélicos, por três motivos: primeiro, por serem expressivos 81 parlamentares; segundo pela relação próxima entre os evangélicos e as emissoras e programas de TV e, por fim, pela relação da ética na política e na religião com a obtenção de lucros financeiros, que na junção desses três campos –política, religião, lucro – prescinde da “ética protestante”. Longe de serem fatos distintos, relacionar tais quesitos levam a uma compreensão dos porquês da adesão ao impeachment ter contato com 93% dos votos da bancada evangélica (75 votos favoráveis ao processo).

A bancada evangélica era composta por 53 parlamentares na legislatura passada (2011-2014). Cresceu em mais 50% na eleição de 2014. Como grande parte de seus membros considera que o PT e o governo defendem, entre outros, o direito da mulher ao aborto, ou da igualdade transgênera, essa bancada fortalece o perfil conservador do atual Congresso. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), é o mais conservador dos Congressos desde de 1964 (ver http://www.cartacapital.com.br/revista/844/bbb-no-congresso-1092.html).

A reação religiosa conservadora no Parlamento encontra amparo em emissoras e programas de TV voltados à população evangélica (25% dos brasileiros em 2014, segundo o IBGE). Por outro lado, há movimentos de líderes religiosos que não cessam de criticar e denunciar o fato de muitos dos parlamentares evangélicos estão envolvidos em denúncias de corrupção. O caso mais emblemático é o do presidente da Câmara dos Deputados e condutor do processo de impeachment, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acusado de corrupção em processo paralisado no STF.

“Que Deus tenha misericórdia desta Nação”, votou Cunha pelo “Sim” na abertura do processo de impeachment. Tal qual outros parlamentares evangélicos arrolados em denúncias e suspeitas, Cunha detém polpudas contas bancárias no exterior, regadas a dinheiro de corrupção. Dinheiro, o agente da contemporaneidade que, para Agamben, tomou o lugar de Deus e, portanto, governa ao crédito e aos Estados e seus agentes. Em seu nome, tudo é permitido, e perdoável, pois, enquanto divindade, o dinheiro “manipula e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo” (ver http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben).

O patrimonialismo

O 17 de Abril é a constatação da atualidade do conceito de “patrimonialismo” de Sérgio Buarque de Holanda, apresentado em ‘Raízes do Brasil’, de 1936 e atualíssimo, passados exatos 80 anos. O patrimonialismo trata-se de um sistema estrutural da sociedade brasileira que transmuta o Estado, a ‘coisa pública’, em espaço doméstico, familiar. Assim, o ‘homem cordial’, produto do patrimonialismo, averso às convenções, pode se sentir à vontade e agir como bem quiser, fazendo do espaço público um local gerido pelas suas regras pessoais.

Daí tanta evocação à família que assistimos no golpe parlamentar de 17 de Abril, quando foram muitos a dedicar seus votos “à minha família…”, tal qual parlapatões que enviam beijos aos seus num programa de auditório. Foi revelador acerca de quem realmente tais deputadas e deputados representam no Parlamento: aos seus próprios interesses.

Seguindo o raciocínio de Agambem, em seu livro “Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua”, diríamos que o patrimonialismo gestor da institucionalidade se trata da “vida nua”, do espaço privado, doméstico, determinando a ‘vida politicamente qualificada’. “O espaço da vida nua, situado originalmente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político”(Homo Saccer, pg. 16).

Para ele, o que se deve buscar é uma indistinção entre ambos os campos, visando uma política das diversas formas de vida, que se oponha tanto ao reducionismo familiar quanto ao controle totalitário do Estado sobre o indivíduo.

O patrimonialismo é presente também na mídia brasileira. Heterocapitalistas, grandes emissoras de TV, revistas e jornais de circulação nacional são geridas por oligarquias familiares, chefiadas por homens. Ainda que submetido a alguma legislação, no caso da mídia eletrônica, o patriarcado midiático determina monocraticamente o conteúdo das programações, vetando discussões transversais e o direito ao contraditório tal. É patente a perseguição ao ex-presidente Lula e à presidenta Dilma empreendida, nos últimos anos, por revistas e jornais de grande circulação – com raras exceções, como a Carta Capital –, bem como por algumas das grandes redes de TV.

“Homens cordiais”, os senhores da mídia se põem à vontade para transgredir a lei, por vezes utilizando de paraísos fiscais caribenhos e suíços. No âmbito nacional, os controladores da mídia se salvaguardam intimidando governos e autoridades, evitando a todo custo imposição de leis e mecanismos reguladores.

Quase sempre eles obtêm êxito, como se viu na chamada Lei Geral da Copa, a Lei 12.663 de 2012, pela qual o Estado aceitou suspender temporariamente mecanismos reguladores para que a FIFA e a mídia pudessem, como melhor lhes aprouvesse, gerirem espaços públicos e promoverem campeonatos mundiais em 2013 (Copa das Confederações) e em 2014 (Mundial de Futebol). Ao cabo, o que se viu foi plateia abastada nas arenas e, nas ruas, o braço armado do Estado a reprimir a população pobre e parte da classe média indignada com a manutenção de privilégios.

Episódios como a Lei Geral da Copa são indícios da precariedade institucional brasileira. E fragilizam argumentos expostos pela presidenta Dilma em entrevista coletiva após a sessão da ONU em 22 de Abril ao afirmar, em defesa de seu mandato contra o processo de impeachment: “A garantia de meu direito não é só minha, pessoal. É a de que a lei irá se sobrepor a qualquer interesse pessoal ou político na nação”. A presidenta tem razão, embora seu próprio governo, como na edição da Lei Geral da Copa, tenha usado de mecanismos legais para suspender a própria legalidade.

Contudo, no pós-17 de Abril há grandes diferenças do que até aqui já se viu: o olhar estrangeiro que paira sobre o Brasil e sua mídia, e a internet. Aos olhos do mundo, o conluio entre a política reacionária e a mídia brasileira está nu e exposto em sua intimidade perversa. O espetáculo grotesco da evocação a Deus e à família desvelou um país politicamente conservador e seu desapego à democracia.

Sintoma positivo: não houve, nos dias seguintes, manifestações de massa significativas de comemoração ao ato congressual.

O pós 17 de Abril e suas consequências resultarão na urgente alteração na estrutura legal que sustenta o Estado contra a Sociedade? Na base da precariedade institucional brasileira estão, entre outras, as ausências de reforma política e de regulamentação da mídia.

Resta saber se finalmente, o Brasil vai exorcizar o que Sérgio Buarque de Holanda chamou de “um demônio pérfido e pretensioso, que se ocupa em obscurecer aos nossos olhos essas verdades singelas”, eliminando de vez o patrimonialismo e alcançado um estágio estável – ‘superior’, diria Sérgio Buarque – de sociedade.

Túlio Muniz, historiador, Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra, e jornalista. Professor da UNILAB.

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Comentários

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RONALD

MICHEL TEMER – A VIÚVA PORCINA – FOI SEM NUNCA TER SIDO !!!!!

FrancoAtirador

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Não é o Estado, é o Poder Econômico-Financeiro
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do Setor Privado Infiltrado no Estado Brasileiro
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Contra a Maioria da População Trabalhadora.
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