Rubens Valente: Da ditadura sangrenta da Arábia Saudita aos Bolsonaro, com amor

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Créditos: Reprodução de redes sociais e Metrópolis

Da ditadura sangrenta da Arábia Saudita, com amor

Por Rubens Valente*, newsletter da Agência Pública

A monarquia absolutista da Arábia Saudita é um dos regimes mais brutais e intolerantes do planeta.

Ela controla seus 33 milhões de habitantes com mão de ferro e métodos medievais, a fim de cercear qualquer pensamento crítico sobre o governo.

Ativistas de direitos humanos são presos e condenados a longas penas pelo simples exercício do seu ofício.

Entra na mira “qualquer pessoa que expresse opiniões”, inclusive em redes sociais na internet, “críticas ao governo ou opiniões divergentes das do governo sobre os acontecimentos socioeconômicos ou políticos do país”, de acordo com a Anistia Internacional.

A tortura é uma forma comum de aplicação de pena, como no caso do blogueiro Raif Badawi, encarcerado e sentenciado a 1.000 chicotadas por “insultar o Islã”.

Em um sistema judicial baseado em interpretações da Xaria, a lei islâmica derivada de leituras do Alcorão e de outros textos religiosos, diversas acusações criminais podem facilmente se converter em morte.

Só em 2021, pelo menos 69 pessoas foram executadas em praça pública por tiros ou decapitação. Em um único dia de 2022 registrou-se um recorde, 81 foram executadas.

Acusados de roubo podem ter mãos e pés amputados. Filhos dos acusados de algum suposto crime contra o regime são presos no lugar dos seus pais, a fim de forçá-los a se entregar às autoridades, como no caso de Saad Al-Jabri, um funcionário aposentado do alto escalão da inteligência saudita.

Um jornalista que se tornou um duro crítico do regime, Jamal Khashoggi, foi assassinado em 2018 na Turquia por agentes do governo saudita. O principal suspeito do mando do crime é o príncipe e ministro da Defesa saudita Mohammad Bin Salman.

Posteriormente, uma investigação sobre o programa de espionagem digital Pegasus revelou que, quatro dias antes do assassinato, o programa fora instalado no telefone da noiva de Khashoggi, Hatice Cengiz.

Foi descoberta uma lista de aproximadamente 50 mil telefones como alvos potenciais de vigilância pelo Pegasus, incluindo “jornalistas, defensores de direitos humanos e parentes de dissidentes políticos” da Arábia Saudita. (As impressionantes relações entre a família real saudita e o Pegasus também são abordadas no documentário “O dissidente”, de 2020, disponível na HBO Max).

Com esse sangrento currículo nas costas, a monarquia da Arábia Saudita tem enfrentado frequentes denúncias nos fóruns internacionais de monitoramento e defesa dos direitos humanos.

Em setembro de 2020, a alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet, manifestou sua “profunda preocupação” com “a contínua detenção arbitrária de mulheres defensoras dos direitos humanos que reivindicam que as mulheres da Arábia Saudita possam ter o poder de fazer suas próprias escolhas, tal qual os homens. Elas devem ser libertadas sem demora”.

A fim de evitar retaliações diplomáticas e econômicas, a monarquia precisa se valer de toda ajuda internacional que encontrar. Por isso saudou a chegada de Jair Bolsonaro à Presidência no Brasil em janeiro de 2019.

Meses depois, em outubro, o líder da extrema-direita brasileira fez uma viagem oficial a Riade para reuniões com o governo saudita, incluindo um encontro com Bin Salman, a quem Bolsonaro havia conhecido em junho daquele ano na reunião do G-20 no Japão.

Fazia um ano do assassinato de Khashoggi quando Bolsonaro, já em solo saudita, deu a seguinte declaração machista e bajuladora sobre o acusado do assassinato: “Acho que todo mundo gostaria de passar uma tarde com um príncipe, principalmente vocês, mulheres. Vou ter essa oportunidade hoje. Nós dois temos certa afinidade”.

A afinidade logo evoluiu para uma irmandade. Ao discursar no dia seguinte a um grupo de investidores no evento conhecido como “Davos do Deserto”, Bolsonaro disse que estava “apaixonado” pela Arábia Saudita. “A aproximação com os senhores, em especial aqui com a Arábia Saudita, a forma como o príncipe herdeiro [Bin Salman] tem me tratado, e eu também no tocante a ele, como se fôssemos velhos conhecidos, ou até mesmo irmãos. Isso me orgulha, me faz respeitar cada vez mais a todos no mundo.”

Haverá diferentes explicações para tão exorbitantes presentes – assim chamados pelo então ministro-militar de Minas e Energia Bento Albuquerque – dados pela monarquia da Arábia Saudita aos Bolsonaros em 2021 e avaliados em R$ 16,5 milhões, conforme revelou, no sábado (4), o jornal O Estado de S. Paulo.

É certo incluir, entre elas, as ótimas relações diplomáticas entre países que derivaram das afinidades pessoais entre Bolsonaro e o príncipe.

Durante o governo Bolsonaro, o Brasil contrariou seu comportamento historicamente progressista desde o fim da ditadura militar, em 1985, e passou a ficar ao lado da Arábia Saudita em votações nos fóruns internacionais principalmente sobre questões de gênero.

Em julho de 2020, durante uma votação no Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil se absteve diante de retrocessos aos direitos das mulheres contidos em emendas apresentadas por países como a Arábia Saudita, a Rússia e o Egito.

A organização de direitos humanos Conectas qualificou a postura brasileira como uma “mancha” no histórico brasileiro.

Brasil e Arábia Saudita passaram a integrar um autodenominado “Consenso de Genebra”, um grupo de 32 países contra o aborto (em janeiro de 2023, já sob o governo Lula, o Brasil se retirou do grupo).

“De 2019 a 2022, o Brasil de Bolsonaro deixou de acompanhar, durante votações do Conselho de Direitos Humanos da ONU, países da Europa e mesmo da América Latina e passou a seguir ‘algumas das ditaduras mais cruéis do mundo’, conforme apontou o jornalista Jamil Chade.

O país começou a apoiar propostas para excluir educação sexual de textos da ONU, criticou o uso do termo “gênero” e “até passou a concordar com sauditas sobre a necessidade de se manter em resoluções uma referência explícita à defesa do papel dos pais em casos em que se combatia o casamento forçado de meninas, muitas vezes patrocinados pelos próprios pais”.

A guinada diplomática do Brasil sob Bolsonaro, de braços dados com os sauditas, foi uma verdadeira traição à história do país e do Itamaraty – que, infelizmente, por meio de diversos de seus integrantes, patrocinou e participou da auto-desmoralização.

O então ministro, Ernesto Araújo, certa vez se orgulhou do papel de “pária internacional”.

Desde segunda-feira (06/03), por ordem do ministro da Justiça, Flávio Dino, a Polícia Federal vai investigar os aspectos criminais do milionário presentão árabe. Se houve crime ou não, os tribunais poderão decidir (e lá adiante ainda poderão decidir de novo no exato sentido contrário, como já se tornou costumeiro no Brasil).

Mas não se pode perder de vista o custo político, humano e social que os Bolsonaros já causaram aos cidadãos, em especial às cidadãs, da Arábia Saudita e de outras partes do mundo por aplicar sua própria agenda retrógrada e pela afinidade, paixão e amizade com a ditadura saudita.

Nesse sentido, as joias que atualmente estão guardadas em algum cofre da Receita Federal são diamantes de sangue.

*Rubens Valente (@rubensvalente), newsletter Brasília a quente, é colunista da Agência Pública.


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