Rubens Casara: Violação de direitos torna-se regra em desfavor de oprimidos e de quem incomoda as elites

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Exceção ou regra?

por Rubens R R Casara, no Justificando

O lugar que uma época ocupa no processo histórico, como percebeu Kracauer em O ornamento da massa, pode ser identificado a partir daquilo que foi desprezado (“O conteúdo fundamental de uma época e seus impulsos desprezados se iluminam reciprocamente”[1]). A verdade de uma época está inscrita em seus conteúdos rejeitados, naquilo que é desprezado ou se quer ocultar, nos efeitos dessa rejeição na realidade, nunca no dever-ser ou no discurso oficial.

Hoje, é a Constituição da República e, em especial, os direitos e garantias fundamentais que aparecem como o principal conteúdo rejeitado pelo sistema de justiça de nossa época. Os direitos fundamentais não são percebidos como trunfos contra a maioria ou como garantias contra a opressão do Estado. Ao contrário, de norte a sul do país, com amplo apoio dos meios de comunicação de massa, os direitos e garantias previstos no ordenamento jurídico integram o imaginário dos atores jurídicos como obstáculos à eficiência repressiva do Estado ou ao mercado.

A verdade de nossa época está inscrita no desrespeito à Constituição da República, no fato do discurso oficial reservar o afastamento de direitos e garantias para situações excepcionais enquanto a funcionalidade real do sistema de justiça revela que o que era para ser exceção transformou-se em regra, pelo menos para determinada parcela da sociedade. O sistema de justiça penal construído no plano discursivo a partir do mito da igualdade revela-se no dia-a-dia seletivo, voltado para os indesejáveis (e, aqui, as exceções servem apenas para confirmar essa regra), aqueles que, ao longo da história, forjaram o que Benjamin chamou de “tradição dos oprimidos”; mais do que proteger bens jurídicos, o sistema de justiça serve ao controle social e à manutenção das estruturas sociais (manutenção da forma Estado Capitalista).

A violação de direitos torna-se a regra em desfavor de determinadas pessoas. É assim para quem não interessa à sociedade de consumo (por não ser necessário ao processo de produção ou não dispor de capacidade econômica para consumir), para quem incomoda as elites (aqui entendidas como a parcela da sociedade que detém o poder político e/ou econômico) e para quem desequilibra em favor do oprimido a relação historicamente marcada pela vitória do opressor. Em todos esses casos, pode-se, com Benjamin, em sua tese VIII “Sobre o conceito de história”, afirmar que: o “estado de exceção” em que se vive é a regra; a violação da normatividade constitucional se torna a regra.

Em recente artigo, Tarso Genro revela preocupação com um “estado de exceção não declarado”, capaz de bloquear o direito de defesa, potencializar a corrupção sistêmica e comprometer a democracia. Nesse texto, o jurista gaúcho abandona concepção anterior, marcada por uma perspectiva otimista de evolução da sociedade em direção aos avanços civilizatórios e à democracia, para realçar os crescentes riscos de um grave retrocesso que pode resultar no fim da própria democracia brasileira.

A democracia, em sua concepção material, para além da participação popular na tomada das decisões políticas, exige limites ao exercício do poder e a concretização dos direitos fundamentais. Assentada essa premissa, o quadro e as perspectivas descritos por Tarso Genro são desoladores (por evidente, para aqueles que defendem o projeto constitucional de vida digna para todos).

Ganha corpo na sociedade brasileira, com grande força entre os atores jurídicos, uma concepção de atuação no mundo-da-vida avessa a limites (sempre em nome dos “interesses da nação”, do “combate à corrupção”, da “segurança pública”, dentre outros significantes que gozam de “anemia semântica”, para utilizar a expressão de Alexandre Morais da Rosa, mas são instrumentais aos novos “guardiães do direito”[2]) e que naturaliza a violação de direitos fundamentais.

Vários atores jurídicos passaram a defender abertamente (provavelmente, Gilberto Felisberto Vasconcellos está correto ao afirmar que, em breve, o golpe de 64 vai ser perdoado e aplaudido) a manutenção de prisões ilegais e desproporcionais, a produção e aceitação de provas ilícitas, a utilização da prisão cautelar como instrumento de coação à obtenção de confissões e/ou delações, a violação da dimensão probatória do princípio da presunção de inocência (contra a ordem constitucional, o imaginário autoritário atribui ao acusado o dever de provar sua inocência), dentre outras violações da dimensão de garantia que se extrai do texto constitucional.

Em que pese o acerto da análise em relação ao risco existente, Tarso Genro insiste em uma concepção otimista de que essas distorções apontam para um “Estado de Exceção”, na medida em que antes existia um quadro de normalidade democrática na seara do sistema de justiça criminal. Não há Estado de Exceção, ou em termo benjaminiamos, na tradição dos oprimidos, o Estado de Exceção é a regra.

Há uma tradição autoritária, uma historicidade, uma pré-compreensão que condiciona a atuação dos atores jurídicos e leva à naturalização do que deveria ser exceção, que não foi rompida com a Constituição da República de 1988 (um texto, um evento fundamental, que precisa ser levado em consideração, mas que, por si só, se revela incapaz de produzir normas adequadas ao projeto constitucional, isso porque a norma é sempre produto do intérprete, que, no caso brasileiro, está inserido em uma tradição incapaz de “compreender” – aqui compreender é aplicar, nos termos da lição gadameriana – o texto tendencialmente democrático).

Somada a essa tradição autoritária (que programas de redistribuição de renda são incapazes de romper), um complexo de fatores, com especial destaque para o empobrecimento do imaginário, com a consequente redução do pensamento ao modelo binário-bélico de ver o mundo (amigo versus inimigo, bem versus mal, etc.), e a transformação do simbólico (o enfraquecimento da função do limite), o sistema de justiça criminal, essa trama simbólico-imaginária, passou a se caracterizar, no campo do direito material, pela prevalência, ainda que inconsciente, de uma visão empobrecida da teoria do direito penal do inimigo (com uma ampliação – inimaginável para o neocontratualista Jacobs – do âmbito das pessoas etiquetadas de inimigo) e, no processo penal, pela espetacularização, na qual se dá o primado do enredo (dirigido pelo juiz e que, não raro, visa agradar a opinião pública ou o desejo das corporações midiáticas, as mesmas que constroem versões e fabricam heróis para a massa) sobre o fato, com a simplificação do caso penal posto à apreciação do Poder Judiciário, instituição que na busca de legitimidade democrática cede à tentação populista.

Enfim: a) saúdo o retorno do jurista Tarso Genro à produção crítica sobre o direito; b) registro posição no sentido de que a categoria Estado de Exceção se mostra insuficiente para dar conta das distorções hermenêuticas que ameaçam fazer da democracia brasileira um mero simulacro; e c) convido a todos para o debate.

Rubens Casara é Doutor em Direito, mestre em Ciência Penais, professor do IBMEC/RJ e membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

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FrancoAtirador

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Em 1969, também vigorava a Constituição Federal de 1967
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(http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67EMC69.htm)
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    FrancoAtirador

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    Ó, ti bunitinho:
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    CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1967
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    TÍTULO II
    Da Declaração de Direitos
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    CAPÍTULO IV
    Dos Direitos e Garantias Individuais
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    Art 150 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
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    § 1º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será punido pela lei.
    § 2º – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
    § 3º – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
    § 4º – A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.
    § 5º – É plena a liberdade de consciência e fica assegurado aos crentes o exercício dos cultos religiosos, que não contrariem a ordem pública e os bons costumes.
    § 6º – Por motivo de crença religiosa, ou de convicção filosófica ou política, ninguém será privado de qualquer dos seus direitos, salvo se a invocar para eximir-se de obrigação legal imposta a todos, caso em que a lei poderá determinar a perda dos direitos incompatíveis com a escusa de consciência.
    § 7º – Sem constrangimento dos favorecidos, será prestada por brasileiros, nos termos da lei, assistência religiosa às forças armadas e auxiliares e, quando solicitada pelos interessados ou seus representantes legais, também nos estabelecimentos de internação coletiva.
    § 8º – É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe.
    § 9º – São invioláveis a correspondência e o sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas.
    § 10 – A casa é o asilo inviolável. do indivíduo. Ninguém pode penetrar nela, à noite, sem consentimento do morador, a não ser em caso de crime ou desastre, nem durante o dia, fora dos casos e na forma que a lei estabelecer.
    § 11 – Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, salvo nos casos de guerra externa psicológica adversa, ou revolucionária ou subversiva nos termos que a lei determinar. Esta disporá também, sobre o perdimento de bens por danos causados ao Erário, ou no caso de enriquecimento ilícito no exercício de cargo, função ou emprego na Administração Pública, Direta ou Indireta.
    (Redação dada pelo Ato Institucional nº 14, de 1969)
    § 12 – Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será Imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal.
    § 13 – Nenhuma pena passará da pessoa do delinqüente. A lei regulará a individualização da pena.
    § 14 – Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário.
    § 15 – A lei assegurará aos acusados ampla defesa, com os recursos a ela Inerentes. Não haverá foro privilegiado nem Tribunais de exceção.
    § 16 – A instrução criminal será contraditória, observada a lei anterior quanto ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu.
    § 17 – Não haverá prisão civil por dívida, multa ou custas, salvo o caso do depositário infiel, ou do responsável pelo inadimplemento de obrigação alimentar na forma da lei.
    § 18 – São mantidas a instituição e a soberania do júri, que terá competência no julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
    § 19 – Não será concedida a extradição do estrangeiro por crime político ou de opinião, nem em caso algum, a de brasileiro.
    § 20 – Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas Corpus .
    21 – Conceder-se-á mandado de segurança, para proteger direito individual liquido e certo não amparado por habeas corpus , seja qual for a autoridade responsável pela ilegalidade ou abuso de poder.
    § 22 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 157, § 1º. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
    § 23 – É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer.
    § 24 – A lei garantirá aos autores de inventos Industriais privilégio temporário para sua utilização e assegurará a propriedade das marcas de indústria e comércio, bem como a exclusividade do nome comercial.
    § 25 – Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar.
    § 26 – Em tempo de paz, qualquer pessoa poderá entrar com seus bens no território nacional, nele permanecer ou dele sair, respeitados os preceitos da lei.
    § 27 – Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a ordem. A lei poderá determinar os casos em que será necessária a comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da reunião.
    § 28 – É garantida a liberdade de associação. Nenhuma associação poderá ser dissolvida, senão em virtude de decisão judicial.
    § 29 – Nenhum tributo será exigido ou aumentado sem que a lei o estabeleça; nenhum será cobrado em cada exercício sem prévia autorização orçamentária, ressalvados a tarifa aduaneira e o imposto lançado por motivo de guerra.
    § 30 – É assegurado a qualquer pessoa o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direitos ou contra abusos de autoridade.
    § 31 – Qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas.
    § 32 – Será concedida assistência Judiciária aos necessitados, na forma da lei.
    § 33 – A sucessão de bens de estrangeiros, situados no Brasil será regulada pela lei brasileira, em beneficio do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que lhes não seja mais favorável a lei nacional do decujus .
    § 34 – A lei assegurará a expedição de certidões requeridas às repartições administrativas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações.
    § 35 – A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.
    Art 151 – Aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8º, 23. 27 e 28 do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla, defesa.
    Parágrafo único – Quando se tratar de titular de mandato eletivo federal, o processo dependerá de licença da respectiva Câmara, nos termos do art. 34, § 3º.
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    (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm)
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