Rubens Casara: Conversar com um fascista, um ato de resistência

Tempo de leitura: 4 min

rubens casaro(1)Conversar com um fascista: um desafio

por Rubens Casara, no Justificando

Em Adorno, a ignorância, a ausência de reflexão, a identificação de inimigos imaginários, a transformação dos acusadores em julgadores (e vice-versa) e a manipulação do discurso religioso são, dentre outros sintomas, apontados como típicos do pensamento autoritário.

Pensem, agora, na naturalização com que direitos fundamentais são afastados e violados no Brasil, na crença no uso da força (e do sistema penal) para resolver os mais variados problemas sociais, na demonização de um partido político (que, apesar de vários erros, e ao contrário de outros partidos apontados como “democráticos”, não aderiu aos projetos a seguir descritos), no prestígio novamente atribuído aos “juízes-inquisidores”, nos recentes linchamentos (inclusive virtuais), no número tanto de pessoas mortas por ação da polícia quanto de policiais mortos e nos projetos legislativos que:

a) relativizam a presunção de inocência;

b) ampliam as hipóteses de “prisão em flagrante” em evidente violação aos limites semânticos da palavra “flagrante” inscrita no texto Constitucional como limite ao exercício do poder;

c) criminalizam os movimentos sociais com a desculpa de prevenir “atos de terrorismo”;

d)  impedem o fornecimento de “pílulas do dia seguinte” para profilaxia de gravidez decorrente de violência sexual e criminalizam médicos que dão informações para mulheres vítimas de violência sexual;

e) eliminam o princípio constitucional da gratuidade na educação pública, dentre outras aberrações jurídicas.

Conclusão? Avança-se na escala do fascismo.

O fascismo recebeu seu nome na Itália, mas Mussolini nunca esteve sozinho. Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com a mesma receita que unia voluntarismo, pouca reflexão e violência contra seus inimigos. Hoje, parece que há consenso de que existe(m) fascismo(s) para além do fenômeno italiano ou, ainda, que o fascismo é um amálgama de significantes, um “patrimônio” de teorias, valores, princípios, estratégias e práticas à disposição dos governantes ou de lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser fabricadas pelos detentores do poder político ou econômico, em especial através dos meios de comunicação de massa), que disseminam o ódio contra o que existe para conquistar o poder e/ou impor suas concepções de mundo.

O fascismo possui inegavelmente uma ideologia: uma ideologia de negação. Nega-se tudo (as diferenças, as qualidades dos opositores, as conquistas históricas, a luta de classes, etc.), principalmente, o conhecimento e, em consequência, o diálogo capaz de superar a ausência de saber.

Os fascistas, como já foi dito, talvez não saibam o que querem, mas sabem bem o que não suportam. Não suportam a democracia, entendida como concretização dos direitos fundamentais de todos, como processo de educação para a liberdade e de limites ao exercício do poder. Essa mistura de pouca reflexão (o fascismo, nesse particular, aproxima-se dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à ignorância) e recurso à força (como resposta preferencial para os mais variados problemas sociais) produz reflexos em toda a sociedade.

As práticas fascistas revelam uma desconfiança. O fascista desconfia do conhecimento, tem ódio de quem demonstra saber algo que afronte ou se revele capaz de abalar suas crenças. Ignorância e confusão pautam sua postura na sociedade. O recurso a crenças irracionais ou anti-racionais, a criação de inimigos imaginários (a transformação do “diferente” em inimigo), a confusão entre acusação e julgamento (o acusador – aquele indivíduo que aponta o dedo e atribui responsabilidade – que se transforma em juiz e o juiz que se torna acusador – o inquisidor pós-moderno) são sintomas do fascismo que poderiam ser superados se o sujeito estivesse aberto ao saber, ao diálogo que revela diversos saberes.

Diante dos riscos do fascismo, o desafio é confrontar o fascista com aquilo que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates. Talvez esse seja o objetivo do diálogo proposto pela filósofa Marcia Tiburi em seu novo livro, que tive o prazer de apresentar (o prefácio é do sempre excelente Jean Wyllys).

Em “Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro” (Rio de janeiro: Record, 2015), a autora resgata a política como experiência de linguagem, sempre presente na vida em comum, e investe nessa operação, que exige o encontro entre o “eu” e o “tu”, apresentada como fundamental à construção democrática. De fato, a qualidade e a própria existência da forma democrática dependem da abertura ao diálogo, da construção de diálogos genuínos – que não se confundem com monólogos travestidos de diálogos – em que a individualidade e os interesses de cada pessoa não inviabilizam a construção de um projeto comum, de uma comunidade fundada na reciprocidade e no respeito à alteridade.

Ao tratar da personalidade autoritária, dos micro-fascismos do dia-a-dia, do consumismo da linguagem, da transformação de pessoas em objetos, da plastificação das relações, da idiotização de parcela da população, dentre outros fenômenos perceptíveis na sociedade brasileira, Marcia Tiburi sugere uma mudança de atitude do um-para-com-o-outro.

Nos diversos ensaios deste livro, a autora conduz o leitor para um processo de reflexão e descoberta dos valores democráticos, bem como desvela as contradições, os preconceitos e as práticas que caracterizam os movimentos autoritários em plena democracia formal.

Mas, não é só.

Ao propor que a experiência dialógica alcance também os fascistas, aqueles que se recusam a perceber e aceitar o outro em sua totalidade, Marcia Tiburi exerce a arte de resistir.

Dialogar com um fascista, e sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de resistência.

Confrontar o fascista, desvelar sua ignorância, fornecer informação/conhecimento, levar esse interlocutor à contradição, desconstruindo suas certezas, forçando-o a admitir que seu conhecimento é limitado, fazem parte do empreendimento ético-político da autora,  que faz neste livro uma aposta na potência do diálogo e na difusão do conhecimento como antídoto à tradição autoritária que condiciona o pensamento e a ação em terra brasilis.

O leitor, ao final, perceberá que não só o objetivo foi alcançado como também que a autora nos brindou com um texto delicioso, original, profundo sem ser pretensioso. Mais do que recomendada a leitura.

Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.

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Flávia Biroli: Quem ganha com a onda ultra-conservadora que ameaça a democracia no Brasil? 


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Comentários

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Mário SF Alves

Eh, eh, eh… mais uma… bem no centro nervoso do pântano retórico/argumentativo da “reação conservadora”, quase sempre incontextualizavel, quase sempre injustificável, quase sempre pseudo-moralista e quase sempre sádica.

Mário SF Alves

Com a palavra os quase-fascistas que odeiam o verdadeiro diálogo e a democracia, mas que “paradoxalmente” não perdem a chance de manifestar suas críticas absolutistas ou não-circunstanciadas neste espaço de debate democrático oferecido pelo Viomundo.
Refiro-me aos quase-fascistas por crer que estes ainda são capazes de reflexão e diálogo.

Daniel

O Fascismo que hoje impera no Brasil, onde o PT é o foco deles…deve-se ausência de confronto do Governo…onde se buscou o diálogo republicano…mas, como os fascistas por natureza NÃO escuta o outro…é perda de tempo e saliva com eles…penso já em situação extrema…ir paras as ruas e bater de frente…porém TODOS…sem essa de manifestãosinha mequetrefe…tem que ter apoio das instituições e classes aglutinadoras das causas e princípios democráticos.

Jotage

O que me assusta é ver o número de pessoas, que pareciam normais, se revelarem fascistas sem nenhum pudor, da noite para o dia. Onde eles estavam?
Segundo o autor, “Confrontar o fascista, desvelar sua ignorância, fornecer informação/conhecimento”, é uma forma de mudar o status quo.
Ele já tentou alguma vez contestar um louco deste tipo?
Não existe o menor diálogo, quando “encantoados” – e sempre são, pois o fascismo não se baseia em fatos, mas em ódio cultivado – se tornam bestas feras e aí acaba o diálogo.

Jeniffer

Nos enganamos quando pensamos que o diálogo está no nível argumentativo, quando na verdade a celeuma é sempre de identidade. Como convencer um fascista se o meio em que ele vive não suporta que ele seja convencido? Ele não terá bagagem suficiente para contrapor os argumentos fascistas do grupo que se relaciona e voltará a pensar como eles. Precisamos entrar na briga por identidades! É preciso mudar as identidades!

FrancoAtirador

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‘Dialogar’ com Fascista?
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Só com Saco de Veludo
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E Muito Sangue de Barata.
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    FrancoAtirador

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    Detalhe
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    Pra Começo de Conversa
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    Nem o Saco de Veludo
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    Nem o Sangue de Barata
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    Podem ser Vermelhos.
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Andre

Conversar com um fascista é perigoso e pode ser inútil e até contraproducente. Acho que o melhor diálogo com um fascista é o silêncio.

roberto

Texto irretocável. Retrato magnífico do que é o fascismo e a ignorância e estupidez que permeiam a prática, os praticantes e os bobos manipulados, que portam cartazes ilegíveis e marcham na frente de um Carnaval Vale Tudo, imaginário.

Urbano

Por mais indelével que seja uma verdade, incuti-la na cachola de um fascista vem a ser um trabalho, que nem mouro suportaria. Os fascistas são exímios aos extremos na relativização da verdade nua e crua. Isso chateia até quem já relativizou a vontade de escolha…

abolicionista

Com Fascista não se conversa, não há diálogo possível. Foi essa aposta “socrática” que nos levou ao estado atual de coisas. Fascista a gente enfrenta com todo o rigor da lei e, se a lei falhar, com a violência legítima do Estado Democrático de Direito.
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O petismo novamente faz besteira por covardia. Se o fascismo está nas ruas, isso não significa democracia, pelo contrário: democracia saudável não permite discurso fascista. Democracia saudável coloca fascista na cadeia. No Brasil, temos uma democracia mequetrefe, a democracia engendrada pela ditadura.
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    Edgar Rocha

    Concordo com você. Não que seja contra o diálogo ou não acredite em seu caráter transformador. Mas, há que se considerar,dentre outras coisas, o estágio do processo político em que nos encontramos. Já houve o período do diálogo. Já houve a desqualificação do diálogo e do interlocutor. Já se transformou o diálogo em monólogo enrustido. Já tentou-se de todas as formas amansar o lobo, abrindo mão de parte dos direitos, sem resultado algum senão o fortalecimento da fera e sua avidez por mais recompensas. Acredito que seja o momento de RESTAURAÇÃO do princípio do diálogo. Algo que não se faz senão pelo confronto e consequente proposição de termos. Ou se finca o pé diante do fascismo declarado e desavergonhado, ou não haverá diálogo. Nem Gandhi dialogaria na atual situação. Seria preciso a desobediência civil às manifestações fascistas desta corja atual (Moros, Cunhas, Alckmins e suas polícias mafiosas) para se retomar a normalidade da luta política (que já é uma luta difícil e dolorida, diga-se). No estágio atual de agressividade hidrofóbica dos opositores à democracia, querer dialogar é dar a vitória a eles por W.O.

Mauricio Gomes

Acho que está mais para um ato de paciência, com todo respeito ao autor do texto…..

Roberto Locatelli

Acho que conversar com um fascista é uma perda de tempo. Esse tempo deveria ser utilizado conversando com outra pessoa, alguém realmente interessado em compreender.

    abolicionista

    Você está coberto de razão, só um idiota chamaria gente como Hitler e Mussolini para ter uma conversa razoável.

    Mário SF Alves

    Sim, tem razão, de fato, é socialmente muito mais produtivo. E me surpreeenderia muito saber que os petistas e os verdadeiros democratas, e mesmo os apartidários, não estejam fazendo isso com a necessária frequência.

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