Renata Mielli e Gustavo Alves: Elon Musk, a compra do Twitter e o ‘direito’ de ofender e mentir

Tempo de leitura: 5 min

Elon Musk, a compra do Twitter e o ‘direito’ de ofender e mentir

Por Renata Mielli e Gustavo Alves, no Barão de Itararé

O anúncio da compra do Twitter pelo bilionário norte-americano Elon Musk trouxe um misto de tristeza e revolta para quem luta contra as fake news e uma alegria incontida para a extrema-direita em todo o mundo. Mas é preciso uma análise que vá além da dicotomia e dos 280 caracteres.

A partir das declarações do próprio Elon Musk surgem pelo menos algumas motivações para a compra e uma provável mudança na curadoria de conteúdo dessa plataforma.

Esse pressuposto é fundamental para entender por que um bilionário que não tem nenhuma atuação nas plataformas de tecnologia resolveu investir US$ 43 bilhões numa empresa avaliada em pouco mais de US$ 38 bilhões e que no ano passado registrou um prejuízo líquido de US$ 221 milhões.

A primeira constatação é que ele comprou a empresa para acabar com o pouco de conquistas que a sociedade obteve no processo recente de pressão para que as Big Techs desenvolvessem algum contrapeso para reduzir a disseminação de desinformação e discurso de ódio.

Isso escamoteado pelo argumento da defesa fundamentalista da “liberdade de expressão”, vista como um direito absoluto e que inclusive se sobrepõe a outros direitos.

Mas é preciso enfrentar essa retórica oportunista e não ficar na defensiva para afirmar que não existem direitos absolutos, que estabelecer limites para o exercício desta liberdade é tão fundamental quanto a sua própria existência.

Não cabe na liberdade de expressão, por exemplo, racismo, homofobia, apologia à morte ou aniquilação de grupos sociais, discursos que atentem contra a vida.

Nada disso é opinião que possa ser livremente expressada. Nem em espaços privados como círculos de amigos ou familiares, muito menos em ambientes nos quais se realiza o debate público, como no caso das Plataformas de Redes Sociais.

Por isso, quem defende – como Musk, que o Twitter e outras plataformas sejam “arenas livres”, na prática estão colocando em risco as poucas conquistas que a sociedade conseguiu avançar no debate sobre a necessidade de haver mais regras sobre a atividade dessas plataformas, como o reconhecimento tímido do papel deletério da amplificação algorítmica pelas plataformas.

Sob pressão da sociedade, o Twitter patrocinou um estudo para entender qual a possibilidade de seu algoritmo valorizar ou impulsionar uma determinada ideologia política e embora o Twitter tenha divulgado as descobertas da pesquisa em outubro de 2021, só agora o estudo foi publicado na revista PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences, publicação oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos), após ter sido revisado por outros cientistas.

O estudo analisou uma amostra de 4% de todos os usuários do Twitter que foram expostos ao algoritmo (mais de 46 milhões) e também analisou um grupo controle de 11 milhões de usuários que nunca receberam tweets recomendados automaticamente em sua timeline.

A face visível da ação do algoritmo do Twitter é a exposição entre as postagens das contas que você segue, tweets marcados como “você pode gostar”. Ou seja, o algoritmo está recomendando conteúdo para você.

Isso é feito usando os dados da sua atividade anterior na plataforma, como os tweets que você curtiu ou retuitou. Uma equação estatística aplicada a estes dados lastreia o “aprendizado de máquina”. Assim o computador, em tese, aprende automaticamente com as preferências do usuário e aplica isso a dados que o sistema não viu antes.

Mas existe um fantasma presente nessas equações: o viés. Que segundo esse estudo reforça preconceitos humanos e amplificou os discursos de “direita”.

O estudo analisou o efeito de “amplificação algorítmica” em tweets de 3.634 políticos eleitos de sete países com grande base de usuários no Twitter: EUA, Japão, Reino Unido, França, Espanha, Canadá e Alemanha.

A pesquisa mostrou que em seis dos sete países (a Alemanha foi a exceção), o algoritmo favoreceu significativamente a amplificação de tweets de fontes politicamente inclinadas à direita.

No Canadá, por exemplo, os tweets dos liberais foram amplificados em 43% contra os dos conservadores em 167%.

No Reino Unido os tweets dos trabalhistas foram amplificados em 112%, enquanto os conservadores foram amplificados em 176%.

Outro aspecto revelado pelo estudo foi amplificação algorítmica de notícias políticas. O estudo analisou a amplificação algorítmica de 6,2 milhões de notícias políticas compartilhadas nos EUA. E chegou à conclusão que a amplificação das notícias também segue o mesmo padrão.

Ou seja, há uma exposição maior dos conteúdos de direita, fake news e desinformação.

Esse estudo só foi realizado graças à intensa cobrança da sociedade e após a tentativa de invasão do Congresso americano pela turba fascista alimentada por Trump.

Pois bem, quando se começa vislumbrar a chance de se entender como os algoritmos alimentam a disseminação de desinformação e discurso de ódio, eis que surge Elon Musk.

Musk é mais um expoente dos fundamentalistas da liberdade de expressão.

Para ele, não deve haver limites, o que significa que não deve haver qualquer tipo de moderação sobre o que se diz nas redes sociais. Outro defensor dessa tese é o presidente Bolsonaro.

Segundo Musk, ele quer transformar o Twitter numa “arena de livre discurso”.

Ele afirma que irá democratizar o Twitter apostando na abertura do código fonte (a programação interna do Twitter) para que os mecanismos de operação sejam conhecidos e explorados por programadores.

Uma promessa vazia cheirando a “Ouro de Tolo” feita pela mesma pessoa que usou sua conta para atacar pessoas transgêneros e as políticas de combate à transmissão da Covid-19.

A liberdade de expressão tem sido usada – de forma tão indevida, oportunista e equivocada – por expoentes da extrema direita, bilionários e representantes do grande capital. A economia atual é dinamizada pelo modelo de negócios que usa o discurso como mobilizador da atenção.

E o que chama mais atenção é o discurso de ódio, é o preconceito, é a polarização social baseada em grupos que se comportam como torcedores raivosos e não como cidadãos que discutem temas de interesse público e social.

Somos todos sugados pela força centrípeta dos estímulos incessantes provocados pelas redes de alienação e agimos como autômatos reproduzindo, curtindo, compartilhando conteúdos que reforçam a visão do meu “time”, grupo e dos meus pré-conceitos.

Nesse processo, monetizamos toda a economia assentada nas plataformas. Vendemos nosso olhar, nosso corpo e alma e compramos produtos, serviços e ideias, sem qualquer reflexão. Ajudamos a circuitar a esfera pública e a desintegrar qualquer possibilidade democrática.

O princípio da inimputabilidade do intermediário, tão importante para o ecossistema da internet, não pode ser confundido com ausência de compromisso e responsabilidade das plataformas com o debate público.

Por isso, a regulação das plataformas de rede sociais das Big Techs, a partir de amplo debate público, é urgente e indispensável.

Musk comprou o Twitter, e pode conduzir esta rede a ser um ambiente de afronta a direitos humanos fundamentais e menosprezo com a democracia.

Mais do que nunca devemos retomar o debate sobre o #PL2630 e reforçar nele todos os elementos que dizem respeito diretamente às obrigações e regras para que as Big Techs atuem no Brasil.

É mais urgente do que nunca que tenhamos uma legislação que regule as atividades desta e de outras plataformas no Brasil, que as obrigue a cumprir os compromissos expressos em nossa Carta Constitucional.

O dinheiro pode comprar quase tudo, mas não podemos deixar que ele compre também nossa soberania, a proteção à nossa democracia e esfera pública.

Renata Mielli – Jornalista, Doutoranda no Programa de Ciências da Comunicação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (PPGCOM-ECA-USP), integrante da Coalizão Direitos na Rede.

Gustavo Alves – Jornalista, webdesigner e programador, estudante de Ciência de Dados na USP/Esalq.


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Comentários

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Bíblia do Bolsonarismo

gente que diz pela demcracia , mas é tudo falso. O mesmo poder que tem que mente tem quem diz a verdade.

henrique de oliveira

Esse Eike Batista americano Elon Musk , mesmo que tenha comprado o twitter ate a compra ser aprovada pelos órgãos de regulação americanos isso vai demorar quase um ano , então os Bozominions não terão oportunidade de espalhar fake news , e quando a empresa for de fato do cara (coisa que duvido) Bozonaro e sua trupe já estarão na cadeia ou exilados na Colômbia ou no Paquistão.

Zé Maria

.
.
“Aquele que ofende a dignidade pessoal de qualquer ser humano,
especialmente quando movido por razões de fundo racista,
também atinge – e atinge profundamente – a dignidade de todos
e de cada um de nós.”

Ministro Celso de Mello
HC STF 82.424/RS
Tribunal Pleno
17.09.2003
EMENTA:
HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO.
RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA
CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES.
ORDEM DENEGADA.
1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia
de idéias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade
judaica [ou qualquer grupo étnico] (Lei 7716/89, artigo 20,
na redação dada pela Lei 8081/90)* constitui crime de racismo sujeito
às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).

2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes:
se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa [ou: Argumento inválido !!!].

3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência.
Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens,
seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura,
pêlos ou por quaisquer outras características físicas,
visto que todos se qualificam como espécie humana.
Não há diferenças biológicas entre os seres humanos.
Na essência são todos iguais.

4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.
Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera
a discriminação e o preconceito segregacionista.

5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo
de que os judeus [ou os não-brancos] e os arianos formam raças distintas.
Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características
suficientes para justificar a segregação e o extermínio:
inconcialibilidade [incompatibilidad] com os padrões éticos e morais
definidos na Carta Política [Constituição Federal] do Brasil e do mundo
contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático.
Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo.
Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza
a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser
humano e de sua pacífica convivência no meio social.
Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação
estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar
o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País.

6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente
repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as
distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas
de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica,
inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro,
de que são exemplos a xenofobia, “negrofobia”, “islamofobia” [sic]
e o anti-semitismo.

7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos
dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de
imprescritibilidade, para que fique, ‘ad perpetuam rei memoriam’,
verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática.

8. Racismo. Abrangência.
Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir
a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica
e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e
circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação
e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.

9. Direito comparado.
A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide
do estado moderno de direito democrático igualmente adotam
em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem
e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte
Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte
de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram
entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem
as regras de boa convivência social com grupos humanos
que simbolizem a prática de racismo.

10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias
anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção
racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos
históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na
pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à
incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas
pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam.

11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador
de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus
não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial
atávica e geneticamente menor e pernicioso.

12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida
especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de
racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham.

13. Liberdade de expressão.
Garantia constitucional que não se tem como absoluta.
Limites morais e jurídicos.
O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência,
manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.

14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser
exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos
na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte).
O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra
o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual
não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas,
como sucede com os delitos contra a honra.
Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana
e da igualdade jurídica.

15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo
jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo
do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre
o esquecimento”.
No estado de direito democrático devem ser intransigentemente
respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos
humanos.
Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam
justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram
o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.

16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como
alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça
a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência
jurídica e histórica não mais admitem.

Ordem denegada.

*Lei 7716/89
Art. 1º Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes
de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional.
[…]
Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa.
[…]
§ 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput [cabeçalho do art 20]
é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza [!!!]:

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.

§ 3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar,
ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes
do inquérito policial, sob pena de desobediência:

I – o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo;

II – a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio;

III – a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores.

§ 4º Na hipótese do § 2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito
em julgado da decisão, a destruição do material apreendido.

Art. 21. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
(Renumerado pela Lei nº 8.081, de 21.9.1990)

Íntegra: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7716compilado.htm

(https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur96610/false)
https://portal.stf.jus.br/servicos/dje/listarDiarioJustica.asp?tipoPesquisaDJ=AP&classe=HC&numero=82424
.
.
“O repúdio ao ‘Hate Speech’ [‘Discurso de Ódio’] traduz, na realidade,
decorrência de nosso sistema constitucional, que reflete a repulsa
ao ódio étnico estabelecida no próprio Pacto de São José da Costa
Rica.
(…)
Evidente, desse modo, que a liberdade de expressão não assume
caráter absoluto em nosso sistema jurídico, consideradas, sob tal
perspectiva, as cláusulas inscritas tanto em nossa própria Constituição
quanto na Convenção Americana de Direitos Humanos.
(…)
A proteção jurisdicional das liberdades fundamentais de reunião
e de manifestação do pensamento não significa, contudo,
autorização para que práticas criminosas sejam cometidas…
(…)
Há limites que conformam o exercício do direito à livre manifestação
do pensamento, eis que a nossa Carta Política, ao contemplar
determinados valores, quis protegê-los de modo amplo, em ordem
a impedir, por exemplo, discriminações atentatórias aos direitos e
liberdades fundamentais (CF, art. 5º, XLI), a prática do racismo
(CF, art. 5º, XLII) e a ação de grupos armados (civis ou militares)
contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (CF, art. 5º, XLIV)”.

Ministro Celso de Mello
Relator
ADI STF 4274
Fls. 19, 22 e 24, de 32, do Acórdão:
https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=1955301
.
.
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE POR OMISSÃO (ADO) 26
Nº Único: 9996923-64.2013.1.00.0000
Relator: Ministro Celso de Mello

Decisão
O Tribunal, por unanimidade, conheceu parcialmente da ação direta
de inconstitucionalidade por omissão.
Por maioria e nessa extensão, julgou-a procedente, com eficácia geral
e efeito vinculante, para:

a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional
na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir
o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII
do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes
do grupo LGBT;

b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa
inconstitucional do Poder Legislativo da União;

c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere
o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99;

d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados
constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º
da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer
que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais
definidos na Lei nº 7.716/89*, até que sobrevenha legislação autônoma,
editada pelo Congresso Nacional, seja por considerar-se, nos termos
deste voto, que as práticas homotransfóbicas qualificam-se como
espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário
do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas
importam em atos de segregação que inferiorizam membros
integrantes do grupo LGBT, em razão de sua orientação sexual ou
de sua identidade de gênero, seja, ainda, porque tais comportamentos
de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação
e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que
compõem o grupo vulnerável em questão; e

e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere
a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir
o presente julgamento, nos termos do voto do Relator, vencidos
os Ministros Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli (Presidente),
que julgavam parcialmente procedente a ação, e o Ministro Marco Aurélio, que a julgava improcedente.

Em seguida, por maioria, fixou-se a seguinte tese:

1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada
a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos
XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas
homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão
odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por
traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua
dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante
adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos
na Lei nº 7.716, de 08/01/1989*, constituindo, também, na hipótese
de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar
motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);

2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança
nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer
que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis
e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos
muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras,
entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar,
livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio,
o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo
com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados,
bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária
e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar
os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço,
público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que
tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas
aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou
a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual
ou de sua identidade de gênero;

3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social,
projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos
ou fenotípicos [aparência física], pois resulta, enquanto manifestação
de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada
pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle
ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação
da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que,
por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem
ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada
estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados
à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos,
em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização,
a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito …

Íntegra do Acórdão (ADO 26):
https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344606459&ext=.pdf

“Fake News e os Seus Limites Jurídicos”

Evelyn Melo Silva;
Samara Mariana de Castro; e
Juliana Durães de Oliveira Lintz.

https://www.prerro.com.br/fake-news-e-os-seus-limites-juridicos/
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