O frágil arranjo pós-crise pode entrar em colapso

Tempo de leitura: 4 min

Finanças-zumbi, no pós-apocalipse

23/3/2010, David P. Goldman, “Spengler” , Asia Times Online (clique aqui para ver as figuras que acompanham o texto original)

David P Goldman é editor de First Things

Tradução da Caia Fittipaldi

Lá por 2014, disse John Lipsky do FMI dia 21 de março, a proporção entre a dívida bruta e o produto interno bruto dos países do Grupo dos 7 alcançará 100%, e os governos do mundo industrializado terão de carregar o peso da maior dívida desde o final da II Guerra Mundial.

Até aí, a má notícia; a notícia muito pior é que os governos estão fazendo chover dinheiro no sistema bancário mundial para financiar a expansão da dívida. Depois do grande ‘resgate’ dos bancos em 2008, o sistema bancário mundial foi, de fato, socializado, com recursos dirigidos para financiar as dívidas dos governos e afastados do financiamento para o setor privado.

Os governos evitaram um apocalipse financeiro em 2009 e ‘resgataram’ o sistema bancário. Mas quem resgatará os governos? Por enquanto, a resposta é que eles mesmos se resgatarão, à custa da economia privada. No mundo financeiro pós-apocalipse, os bancos privados estão convertidos em zumbis comedores de carne humana que canibalizam a economia privada para financiar os governos, com táticas jamais vistas desde a II Guerra Mundial.

A deriva do poder econômico na direção dos governos e seus agentes auxiliares, os grandes bancos, é coisa que jamais se viu no mundo em tempos de paz. E a intenção do governo Obama parece ser “não desperdiçar nenhuma crise”, nas palavras do principal assessor do presidente, Rahm Emanuel, em frase que ficou famosa. O plano de saúde de Obama, de um trilhão de dólares, votado na Câmara de Deputados dia 21 de março, efetivamente estatizará um setor que representa 14% da economia dos EUA – estatização que se soma à estatização de facto do sistema bancário.

Os bancos norte-americanos reduziram a carteira de empréstimos em cerca de 350 bilhões de dólares – mais de 1/5 –, desde o início de 2009; e compraram 300 bilhões de bônus do Tesouro. Os bancos que mais compraram bônus do Tesouro dos EUA ao longo dos últimos sete meses foram os bancos globais sediados em Londres e nas ilhas Caimã: tomam empréstimos ao custo de 1/5 de ponto percentual e compram bônus do Tesouro dos EUA pelos quais pagam de 1% a 3%, dependendo do prazo.

É o famoso “carry trade”, pelo qual os bancos e hedge funds tomam empréstimos de curto prazo e juros muito baixos e emprestam com prazos médios e longos e juros mais altos. Funciona, enquanto os juros de curto prazo permaneçam extremamente baixos. No instante em que o custo do dinheiro tomado começar a aumentar, o “carry trade” negociado com bônus do Tesouro garantidos pelo governo dos EUA entrará em colapso.

Entre novembro e janeiro, último mês para o qual há dados do Tesouro, investidores privados (sobretudo bancos) compraram 60 bilhões em bônus do Tesouro e moeda por mês – cerca de 720 bilhões por ano, ou cerca da metade do total anualizado de todos os empréstimos tomados pelo governo dos EUA.

Observe-se que os bancos centrais do mundo não aumentaram significativamente a quantidade de bônus garantidos pelo governo dos EUA que possuem. Suas compras mantêm-se num patamar modesto de 20 bilhões de dólares/mês, ou 240 bilhões/ano.

O Tesouro dos EUA já é dependente dos bancos privados globais. Segundo dados do Tesouro, $108 bilhões dos $180 billhões de compras líquidas de bônus garantidos pelo Tesouro dos EUA, desde janeiro, foram compradas por bancos sediados em Londres e nas Ilhas Caimã.

O que mais chama a atenção é a disposição da finança mundial para financiar o déficit norte-americano com juros reais de menos de 0,5%. A taxa de juro real extremamente baixa implica expectativas de crescimento muito baixo nos próximos cinco anos. Trata-se de alguma coisa parecida à “década perdida” do Japão nos anos 90s, quando os bancos compravam bônus do Tesouro com taxas de menos de 1% com dinheiro “dado” pelo Banco Central.

Onde os bancos estão obtendo dinheiro para emprestar ao governo dos EUA? Do próprio governo dos EUA. O Federal Reserve aumentou suas reservas para $1,4 trilhões desde o início da crise, alimentando com fundos o sistema bancário, fundos os quais os bancos imediatamente tornam a emprestar ao governo e que se somam a outros $300 bilhões de fundos adicionais liberados pela redução dos empréstimos para o setor privado.

A base monetária está crescendo em ritmo de 40% ao ano. Sob circunstâncias normais, bastaria para levar a inflação ao patamar de dois dígitos. Enquanto os bancos reduzem os empréstimos para o setor privado e compram bônus do Tesouro que substituem as taxas perdidas de juros, o resultado é a chamada “arapuca da liquidez” [ing. liquidity trap].

Com 20% de desemprego ou subemprego nos EUA, segundo pesquisa de fevereiro de 2010 em 20 mil famílias, os custos trabalhistas continuarão deprimidos. A inflação no preço das commodities não aparecerá facilmente manifesta na inflação nos preços ao consumidor.

Esse tipo de equilíbrio-zumbi manteve-se ‘estável’ durante vinte anos na economia moribunda do Japão; em teoria, o Tesouro dos EUA e o sistema financeiro podem permanecer indefinidamente nesse ‘equilíbrio’. Mas há mil e uma vias pelas quais pode acontecer de esse arranjo desabar.

Governos mais fracos, como Grécia ou Espanha, ou até o Reino Unido, podem romper a corrente. Fugir dos dólares norte-americanos, em resposta à inflação monetária, pode forçar o Federal Reserve a subir a taxa de juros. Os investidores podem tentar afrouxar o “carry trade”, o que provocará um estouro da manada em direção à porta de saída. O Japão conseguiu manter inflada essa bolha durante 20 anos. Mas o Japão podia apostar na força de seu sistema bancário doméstico sob a supervisão do Banco do Japão; os EUA dependem do status de reserva do dólar, o que faz cada vez menos sentido, se o Tesouro está inundando o mundo com papéis norte-americanos podres.

Jamais antes se viu coisa semelhante, e todos hesitam e ninguém quer arriscar previsões sobre arranjo tão absurdo e instável; e a lista de potenciais pontos de ruptura é infindável. Agora, quando todo mundo está comprando a dívida do governo dos EUA construída com dinheiro emprestado, nem o dinheiro faz sentido. Vai acabar mal – mas ainda é cedo demais para saber como e quando.


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Comentários

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Marcelo de Matos

A mídia já anda dizendo que Obama, e não Lula é o cara. Obama teria realizado uma reforma impensável nos EUA, a da Saúde, enquanto Lula não consumou as reformas política e tributária. É a velha tendência carlyliana de atribuir aos líderes os grandes feitos históricos. Na verdade, tudo é conseqüência, em maior escala, das condições econômicas. Antes da crise, que um jornalista chamou de “fim do capitalismo”, essa reforma seria impensável. A crise tornou insuportável a situação dos “sem hospital” ianques. O império tinha perdido a empáfia e teve de admitir a reforma. Há, porém, quem acredite que tudo dever ser atribuído à ação dos líderes. Um jornalista americano, certa vez, perguntou a Deng Xiaoping o que teria acontecido ao mundo se Kennedy não tivesse morrido. A pergunta era complexa, mas, a resposta foi singela – nesse caso, a viúva Kennedy não teria se casado com Onassis.

Glecio_Tavares

O colapso e caos gerarão uma sociedade mais justa. Quando o dinheiro não valer nada, os titulos imobiliarios também nada valerão. Acho que afinal de contas o Nostradamus estava certo, O apocalispe já chegou, estamos apenas vendo a ponta do iceberg. O Brasil terá um papel de destaque em setores energéticos. Com a transposição do Rio São Francisco alimentaremos o mundo, os países com vastas extensões de terra férteis rumarão para o socialismo, Único regime viável para garantir os direitos básicos da humanidade. Os que acumularam riquezas são os responsáveis diretos pela chegada da revolução mundial, eles pensam no hoje e esquecem que desta vida nada se leva.

    Renato-JF

    Olá, Glecio_Tavares

    Se você ler as participações do A.L.Mirri e do Jorge Nunes, você vai perceber que as suas suposições não terão tempo de se concretizar. Assim que a China decidir quebrar o pau e, por conseguinte, começar a se livrar dos papeis yankees, uma vez que estes insistem em fazer gracinhas com relação à desvalorização da moeda chinesa, os gringos vão cair matando em cima da América Latina. Afinal, ao contrário do que pensa o Jorge, uma invasão das terras ameríndias-lusoafricanas não custariam um boliviano furado. Explico (tento): eles já possuem mercenários aqui (Vide Colômbia), aqui ainda existem conexões políticas poderosas com o Tio Sam (Vide SerraFHC, Uribe, Piñera etc – fora os coroné e o PIG… ), em um único porta-aviões estadunidense (George Washington), exitem mais caças que em toda a américa latina… O sistema é bruto, fi. A Dilma que não feche negócio com a Rússia a respeito do nosso VLS, pra ela ver. A rapaziada toda vai ter que virar Talibãn e ressucitar as táticas de guerrilha do CHE, e, ainda assim, vamos tomar na tampa, bonito. Vai ser apocalipse now and here

Pall Kunkanen

Impressionante que estatais nas mãos dos demos-tucanos só dão prejuizo.
Vejam o exemplo da Copel no PR.
http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article

Milton Hayek

Já é a segunda vez que ele recusa 1 milhão de dólares.Eu gosto do Perelman porque ele é irreverente:

Gênio da matemática despreza prêmio de US$ 1 milhão, diz jornal

Russo Grigory Perelman resolveu a Conjectura de Poincaré.
Já é o segundo prêmio que o matemático recusa.
http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL154147…

Matheus Nahkur

Giovanni Arrighi, cientista político italino: "pode o capitalismo sobreviver ao sucesso?"

Leider_Lincoln

Pois é, os dias do Grande Acerto estão chegando. A questão é: será o frouxo do Obama ou a ensandecida da Sarah Palin que vão atender a nós, latino-americanos, aos russos,indianos e chineses, quando formos lhes cobrar?

Daniel Campos

O Brasil deveria estar trocando os dólares das reservas internacionais por ouro. Ou comprar moedas de vários países para não ficar dependendo da cotação de uma única moeda.

Enquanto a mídia mundial insiste em falar que "está tudo bem", os tubarões por baixo do pano estão trocando dólares por terras, metais preciosos e outras mercadorias.

    Milton Hayek

    A Índia fez isso,Daneil Campos.Recebeu centenas de barras de titânio folheadas a ouro em um golpe.Tem muita gente fazendo isso e falta ouro no mercado.

    Carlos

    Em tal contexto, quem venderia ouro?
    Pelo que sei, os americanos "melaram" a conversão dólar/ouro já nos anos 70… Alguém aqui que possa esclarecer sobre isso?

    ratusnatus

    Já esta fazendo isso mas a posição nunca ficará zerada.

    francisco.latorre

    o brasil… e o mundo… todos saindo do dólar…

    de mansinho… pra não dar pinta.

O frágil arranjo pós-crise pode entrar em colapso « Dukrai's Blog

[…] http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/o-pos-apocalipse.html […]

Milton Hayek

Parece que o Estado fascista-corporativo dos EUA fez escola pelo mundo todo.Bom texto.Principalmente se complementado com esse relatório do GEAB:

As cinco sequências da fase de deslocamento geopolítico global

http://resistir.info/crise/geab_43.html

Luis Armidoro

Meu, será que algum "técnico" do PSDB assessorou os Governos? Parece a "Grande Privataria Tucana": destrói o patrimônio público, vende a preço de mer.., emprestando dinheiro público (a juros que nem um pai retardado cobraria do filho) aos compradores do patrimônio público. Dá para ver como estes caras sacanaearam o Brasil e sua população durante 8 anos (e estão há 16 sacaneando SPe os paulistas)

    Arthos

    E as Prefeituras seguiram o exemplo da privataria… a festa agora é em cima da água… e quem paga é o povo… os coronéis donos do nordeste e aqui os salafrários vendilhões da pátria… e povo…

italo

E as nossas reservas corrrem o risco de derreter ? Alguem sabe como ficaria a situação do Brasil frente a este quadro?

Silva

Tudo e questão de tempo , o pior e que quando a crise se agravar eles podem tentar vias não convencionais para sair
do problema isto e , conflito global para tentar estabilizar ou zerar os problemas contabeis.

    A.L.Mirri

    Pois é, Silva
    Não dá para esquecer que os EUA, além de (ainda) serem o maior poder econômico mundial, serão (por muito tempo) também o maior poderio bélico. Alguém tem alguma dúvida de que eles recorrerão a este último, em caso de derrocada econômica? Nada como um conflito bélico para embaralhar as cartas e zerar o jogo economico. Não duvido que essa obsessão contra o Irã já seja um indício disso. Ou seja: há um inimigo, o mundo precisa se proteger e eu sou o único que pode lhes garantir a proteção. A Guerra do Kwait foi um exemplo de expansão dos domínios econômicos norte-americanos através de um conflito bélico.

    Jorge Nunes

    Poder bélico depende de muitas coisas além de armas com desemprego crescente eles vão precisar de tropas em casa para ter controle social. E os soldados precisam de comida, salários e assistência médica. E como o soldado lutará fora se o pai está desempregado? E como ele lutará só para que os mesmos caras de sempre ficam mais ricos.

    O poder central dos EUA vai acabar enfraquecido e os estados ficaram mais autônomos para corrigir a sua economia… Outro resultado começaram a vender armas para todo mundo a preço de banana.

    @jgn1957

    Mesmo porque a contabilidade não mente: o balanço da empresa USA tem nos seus ativos "imobilizado não de uso" que assombraria qualquer auditor contábil, ou seja, um pais desindustrializado tem somente nos seus ativos "militares" o peso de sua industria armamentista e seus produtos (submarinos, aviões, tanques..). Mas estes não geram lucros, somente despesas de manutenção, e a maioria, uma vez usado, não vale nada pois não integra nenhum centro de custo de atividade que produza lucro. O que teríamos que saber é se o ativo militar americano suporte o volume de empréstimos que a empresa USA tem DO mundo, ou seja, se os credores dos USA resolverem pedir garantias, será que seus bens militares darão o lastro suficiente? E no caso de dificuldades econômicas, como fazer para receber as dívidas arrestando os bens militares americanos? Acho que já está na hora de exigir dos governantes americanos que disponibilizem seus ativos militares como garantia dos empreśtimos seus no mundo, pois, retirando isso, o que aquele pais devastado em termos de recursos naturais pode oferecer?
    Mas quem teria peito para exigir a entrega de tais bens ou deixa-los nas mãos de um fiel depositário?
    O caminho da guerra já está aberto há muito tempo. Vivemos só o momento da pré-consumação!

    Gabriel Braga

    Concordo plenamente com seu comentário.E se a gente recorrer a história dos grandes impérios em seu processo de declínio,veremos que quando eles já não conseguem impor sua hegemonia através de seu poder econômico e político,o fazem através do maior poder militar que ainda possuem.
    Um exemplo é o Império Britânico.No começo do século XX ele vinha sendo ameaçado economicamente pelos EUA e Alemanha e o resultado foi a Primeira Guerra Mundial.
    Atualmente os EUA instalam bases militares na Colômbia e reativam sua 4ª frota naval no Atlântico Sul.Alguém duvida das intenções estadunidenses com relação a América Latina?

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