Marcio Sotelo: Corremos o risco de singrar mares embarcados na nau dos insensatos

Tempo de leitura: 4 min

 por Marcio Sotelo Felippe, no Justificando

O vídeo acima correu pelas redes sociais. Os manifestantes passam em frente à casa modesta que ostenta uma faixa de apoio à luta dos professores. Naquele momento estão esparsos, de modo que o vídeo capta a reação, um a um, dos bem nutridos vestindo camisas amarelas da CBF diante da faixa. Xingam, gritam, esbravejam e pouco falta para um pogrom para destruir a casa.

Contra que ou contra quem? Em uma sociedade absurdamente desigual, eles mostram o seu ódio, não contra os de cima, não, por exemplo, contra os especuladores da dívida pública que se apropriam de boa parte da renda nacional parasitariamente. O alvo do ódio, dos esgares de ressentimento, do choro e ranger de dentes é quem está embaixo na escala social ou econômica.

Uma faixa de apoio à categoria dos educadores, essencial a qualquer sociedade, que até as pedras das ruas sabem que são maltratados e mal pagos, desencadeia uma pueril associação de ideias que expressa a pobreza do imaginário dessa gente: a esquerda é inimiga e a esquerda está no poder porque os debaixo votam na esquerda. Eles são superiores a essa gente que mora em casas simples, com uma fachada escrito em cima que é um lar, e devem suportar a presidenta que os inferiores elegem.

São os mesmos que nas redes sociais deixam frases como “tem que começar a exterminar essa raça”; “a solução é começar a matar”; “eu quero a cabeça dele. Pago em dólar”; “dá nojo olhar para esse safado. Morre camundongo da caatinga”; “porco sujo que deve ser largado no mato para ser comido vivo pelas onças”; “culpa foi não ter matado a Dilma”; “ a culpa é dos militares. Deveriam ter acabado com toda essa raça de bandidos na ditadura militar”

Por que esse gente está tão furiosa? O fenômeno é mundial e aqui tem especificidades e cores próprias.

Thomas Pikety, autor de O Capital no século XXI, apontou em entrevista recente a perda patrimonial da classe média como foco de tensões sociais que pode explicar o crescimento da direita e do egoísmo social. Na década de 70, diz ele, esse grupo possuía até 30% do patrimônio total. Hoje está mais próximo de 25%, ao mesmo tempo em que aumenta a concentração de renda nas mãos dos 10% mais ricos. É o que, diz Pikety, pode levar a classe média para a extrema-direita: “quando não conseguimos resolver os problemas sociais de forma tranquila, a tentação é colocar a culpa no outro: trabalhadores, imigrantes, gregos preguiçosos, etc.”.

A análise de André Singer em Os sentidos do lulismo também nos fornece pistas, na mesma direção, para explicar esse cenário. O lulismo favoreceu, em uma ponta, o extrato mais baixo da escala social, o subproletariado, aumentando o seu poder de consumo; em outra ponta, permitiu ou consentiu com a acumulação pelo grande capital. Isto está de algum modo em harmonia com o que diz Pikety. Vemos que no lulismo a classe média não foi convidada para a festa. Ameaçada de perder seus privilégios sociais, extorquida pelos planos de saúde, mordida pelo leão dos tributos que leva mais de 1/3 de seus ganhos – considerando a taxação de sua renda e taxação pelo que consome – pagando escolas com preços abusivos para seus filhos, ela reage instintiva e brutalmente.

Então, não percebe que está sangrando porque não há investimento do Estado e não há investimento do Estado porque 45% do orçamento da União é apropriado pelos de cima por meio do mecanismo da dívida pública.

E nesse momento entrega-se aos instintos mais selvagens e corre para o fascismo. É o que vemos no vídeo: o seu “inimigo” social não é o tubarão que se apropria de recursos gerados por toda a sociedade, mas aquele que mora na casa humilde e coloca na fachada uma faixa de apoio aos mal pagos professores; o “inimigo” é o miserável que é miserável porque é incompetente, não tem mérito e recebe dinheiro do Estado; o inimigo é o haitiano que vem roubar empregos dos brasileiros.

nau-dos-insensatosA nau dos insensatos é uma alegoria renascentista que representa a existência humana como um barco que conduz tolos que não sabem de onde vem, para onde vão e não conseguem dar um mínimo de racionalidade a suas vidas. O quadro de Bosch que tem esse nome mostra em primeiro plano duas figuras apalermadas tentando abocanhar um alimento sem perceber que ele vai ser subtraído por ladrões. A alegoria é perfeita para essa estulta classe média que não sabe por onde e por quem está sendo lesada.

A alegoria expressa alguns séculos antes a ideia iluminista de que o mal social decorre da desrazão, do não pensar. No opúsculo O que é o Esclarecimento, (Aufklärung) Kant dizia que o Iluminismo era a saída do homem da menoridade que consiste em não fazer uso do próprio entendimento e deixar-se tutelar. Se lembrarmos que o nazismo galvanizou parte da sociedade alemã afirmando que havia uma conspiração internacional entre as altas finanças controladas pelos judeus e o bolchevismo para dominar o mundo temos a exata dimensão do sentido da afirmação de Kant e do quão longe estamos, mais de dois séculos depois, do ideal iluminista de uma sociedade que se organiza e se conduz por juízos racionais.

Ausência de juízos racionais e fascismo estão sempre associados. Um não vive sem o outro. Não à toa um general franquista, às vésperas da guerra civil espanhola, tentou impedir, em uma cerimônia pública, que o filósofo Unamuno falasse bradando “abaixo a inteligência, viva a morte”.

Abaixo a inteligência, viva a morte é o que move fautores de políticas regressivas, autoritárias, de respostas instintivas, desprovidas de mínima racionalidade. Quando uma parte da sociedade se move para a direita, as consequências sociais são amplas. Não se limitam a aspectos econômicos. Elas se espraiam pelo direito, pela cultura, pelos costumes, pelo clima geral de intolerância que vai tomando a sociedade como uma onda. A insana proposta de redução da maioridade penal é uma boa amostra disto.

Quando bem nutridos manifestantes ensaiam um pogrom contra uma casa humilde vemos que o caldo de cultura do fascismo está pronto e que arriscamos singrar mares embarcados na nau dos insensatos.

Marcio Sotelo Felippe é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo. Procurador do Estado, exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

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Comentários

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Mauro

O lulismo favoreceu, em uma ponta, o extrato mais baixo da escala social, o subproletariado, aumentando o seu poder de consumo; em outra ponta, permitiu ou consentiu com a acumulação pelo grande capital. Isto está de algum modo em harmonia com o que diz Pikety. Vemos que no lulismo a classe média não foi convidada para a festa. Ameaçada de perder seus privilégios sociais, extorquida pelos planos de saúde, mordida pelo leão dos tributos que leva mais de 1/3 de seus ganhos – considerando a taxação de sua renda e taxação pelo que consome – pagando escolas com preços abusivos para seus filhos, ela reage instintiva e brutalmente..

Ta ai o eixo,a classe media é conduzida a imbecilidade agridem os da ponta de baixo e idolatram os da ponta de cima,a quem interessa manter este status,com certeza os da ponta de cima que se mantêm intocáveis.

Alexandre Tambelli

QUEM SEGURA AGORA?

Puxando pela memória. Um fato que muitos lembram. Hoje radicalizado ao ponto de se brigar de forma quase corporal.

Em 1989 aqui na Vila Mariana, São Paulo, bairro de classe média alta paulistana se dizia: – se o Lula ganhar vão dividir a sua casa com os pobres.

E quem dizia não era apenas o morador de casa própria. Era o morador de aluguel que tinha a mesma visão de mundo do morador de casa própria. A ideologia da meritocracia (ensinar a pescar e não dar o peixe) e do anti-petismo já se configuravam lá em 1989. O ideário estava lá.

Imaginar uma pessoa que nem casa própria tinha me dizer que se o PT ganhasse iriam invadir minha casa e dividi-la. Hoje, o Bolsa Família é um exemplo daquela paranoia de (não) divisionismo da classe média paulistana.

O dividir sempre na parada e de forma negativa.

É interessante.

A Matemática das classes média e média-alta tradicionais se faz numa ilusão de riqueza.

O cálculo matemático tem como resultado o seguinte: estou mais próximo socialmente e economicamente do Antonio Ermírio do que de um morador da periferia.

E bem sabemos a diferença é outra. Antonio Ermírio é 1000 vezes ou mais rico do que um classe média tradicional. Para o pobre a diferença é o tamanho da casa e o modelo de TV e de carro.

Certamente, é a ideologia ensinada nas escolas que estudei da ascensão social e do progresso material como sinônimo de Felicidade, que explica esta conta de Matemática furada.

Neste universo todo imagina a situação: o sujeito que sai por ai a dividir e misturar no meio desta gente o povo excluído dos Governos FHC para trás consegue se tratar no Sírio Libanês e esta gente enfrentando as salas de espera dos hospitais e laboratórios particulares dos planos de saúde normais. Sírio e Einstein não é para qualquer um.

O classe média e o classe média-alta tradicionais piram.

Uma internação no Sírio Libanês para uma cirurgia não sai menos de 8 mil reais por dia. O Lula e a Dilma se internam lá. Imagina a Matemática mental dessa gente num fato deste.

O Lula pode eu não posso. O sujeito apedeuta pode eu não posso. A Guerrilheira pode e eu não posso.

A aproximação visual das classes sociais C e D no seio da classe média tradicional é um choque cultural e assustador para essa gente.

Imagina que você ia para o aeroporto uma vez por ano mas só ia você. Agora todos vão e mais de uma vez, se não tomar cuidado.

Porto de Galinhas tem pacote da CVC. Paris se paga em 10 vezes de 350 reais com direito a hotel de luxo e Torre Eiffel e eu ia numa pousadinha no centro de Paris.

Aonde podem colocar a diferenciação e exclusividade de antes?

Na aparente festa de casamento de 200 mil reais?

Há mas eu sei de bilionário que quando casou teve show do Roberto Carlos.

Onde descontar a revolta de não ser mais exclusividade da sociedade de classe média tradicional o shopping center Ibirapuera?

Talvez, o ódio seja o alimento ingerido a mando do Sistema, via Revista Veja e a revista anual das compras de luxo que ninguém da classe média tradicional tem dinheiro para comprar.

É tudo muito louco. Vítimas, mas já éramos vítimas muito antes de sermos descobertos e sairmos do campo das ideias e passar para o verbal a um passo do físico.

Quem segura agora?

FrancoAtirador

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Os Insensatos é que embarcam na Nau dos Internautas Fascistas.
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