Luana Tolentino ao diretor do Bandeirantes: Dizer que cotistas estão destruindo as universidades públicas é irreal; pesquisas provam o contrário

Tempo de leitura: 4 min
Luana Tolentino e Mauro Aguiar, diretor do Colégio Bandeirantes. Fotos: Reprodução

Sobre cotas e preconceito: carta aberta ao diretor do Colégio Bandeirantes

Dizer que cotistas destroem a universidade é algo irreal

Por Luana Tolentino, em CartaCapital

Prezado Mauro Aguiar,

Espero que esteja bem, apesar do cenário de destruição e desesperança que se abate sobre este país.

Escrevo em meio a reflexões sobre o papel das escolas privadas na promoção de uma educação antirracista.

Lendo a entrevista concedida recentemente pelo senhor à revista “Veja”, fica evidente o quanto ainda temos que avançar neste sentido.

Tomo a liberdade de fazer alguns apontamentos a respeito de suas declarações.

Ao falar da política de cotas, o senhor usou os seguintes termos:

“A sociedade já tomou 50% das vagas nas universidades públicas para alunos de escola pública. Está destruindo a universidade e disfarçando o problema”.

Cabem aqui algumas ponderações.

Talvez o senhor não dê a devida importância, mas as cotas são medidas reparatórias que visam corrigir injustiças históricas, responsáveis por impedir, sobretudo, a população negra de exercer o direito humano de ingressar e permanecer nas universidades, que ao contrário do que muita gente pensa, não pertencem somente aos extratos mais privilegiados da sociedade.

Sua experiência como integrante do escritório da Universidade de Harvard, em São Paulo, certamente lhe permite saber que a política de ação afirmativa é adotada nos Estados Unidos há décadas, como também no Canadá, na Nova Zelândia e em vários outros países.

Além disso, mesmo a contragosto dos setores mais conservadores da sociedade, em 2012, por unanimidade (10 x 0), o Supremo Tribunal Federal deu parecer favorável à reserva de vagas para o ingresso em universidades federais, o que já acontecia na UnB, UNEB e UERJ.

Com a promulgação da Lei de Cotas (n. 12.711/12), resultante das lutas do Movimento Negro, demos um passo importante em direção à democratização do ensino superior no Brasil.

Ainda que tardiamente, a medida foi adotada pela USP e pela Unicamp em 2017.

Portanto, o uso do verbo “tomar” é um tanto quanto equivocado para nomear o ingresso de pretos e pobres em instituições que até pouco tempo funcionavam como verdadeiras capitanias hereditárias das classes mais abastadas.

É importante ressaltar que “tomar” é um costume bastante comum entre os brancos que estão no poder há mais de quatro séculos.

São os brancos que tomaram e ainda tomam as terras dos indígenas.

Foram os brancos que tomaram o direito dos negros de constituir família, escolher o próprio nome e ter a humanidade reconhecida ao escravizá-los.

São os brancos que ao elaborar políticas públicas e estar à frente das grandes corporações tomam as possibilidades da maioria da população de viver com dignidade e ter acesso à educação de qualidade, à cultura, à saúde, ao trabalho e ao lazer.

Ainda sobre a entrevista, o senhor disse que o ingresso de estudantes cotistas, oriundos da escola pública, “está destruindo a universidade”.

Permita-me lhe fazer uma pergunta: baseado em que o senhor fez essa afirmação? Uma série de pesquisas afirma justamente o contrário.

Um levantamento feito pela UFMG em 2018 revelou que o desempenho dos alunos cotistas é igual ou superior ao dos demais graduandos em 95% dos cursos.

Estudo semelhante realizado em 2016 por pesquisadores da UFBA, apontou que estudantes que ingressaram pelo mecanismo de reserva de vagas apresentavam notas superiores aos dos não cotistas.

Mesmo sabendo que o senhor anda extremamente ocupado com as demandas do Colégio Bandeirantes, sugiro a leitura de pesquisas como as que apontei, de modo a desconstruir a ideia equivocada de que aqueles que não estudaram em escolas como a que o senhor é diretor destroem a universidade.

Por outro lado, entendo seu incômodo em relação a esse novo público que cada vez mais se faz presente nos estabelecimentos de ensino superior.

Vivemos em um país que se acostumou a ver negros e pobres em condição de subalternidade.

Enquanto redijo essa carta, penso na pergunta feita pelo antropólogo congolês Kabengele Munanga, que por alguns anos foi único professor negro da FFLCH/USP: “Quem vai limpar a casa-grande se agora os negros estão na universidade?”.

De repente, indivíduos que permaneceram por tanto tempo na invisibilidade começaram a ingressar em cursos de graduação e pós-graduação na condição de docentes, discentes e pesquisadores, o que é motivo de revolta para muitos.

Jaqueline Goes de Jesus, biomédica, mulher negra, nordestina, é exemplo dessa nova era. Pós-doutoranda no Instituto de Medicina Tropical da USP, além de filha das políticas públicas de expansão do ensino superior no Brasil, Jaqueline liderou o sequenciamento do genoma do novo coronavírus no país.

Tudo isso movimenta as estruturas da nossa sociedade, construídas sob os signos do racismo e da escravidão.

Pensando nisso, mais uma vez me vieram a mente as palavras do professor Kabengele Munanga: “Qualquer proposta de mudança em benefício dos excluídos jamais receberá um apoio unânime, sobretudo quando se trata de um país racista”.

Por fim, lembro que as cotas não objetivam ser uma política permanente.

Vivo na esperança de que um dia todos e todas tenham acesso a uma educação de excelência. Vivo na esperança de que um dia cada cidadão desse país desfrute da igualdade de oportunidades e poder de escolha.

Enquanto isso não acontece, as cotas serão necessárias, ainda que aqueles que sempre se beneficiaram das desigualdades que marcam o Brasil não compreendam o valor delas para a construção de uma sociedade justa e democrática.

Despeço-me com um abraço.

*Luana Tolentino, ex-empregada doméstica, cotista, aprovada no doutorado em Educação da UFMG, eleita a melhor universidade federal do Brasil.


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Comentários

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Jair de Souza

Na verdade, o que este programa de cotas está destruindo é a máquina de ganhar dinheiro montada pelos donos do Colégio Bandeirantes. Se já não é preciso passar pelo Colégio Bandeirantes (com suas mensalidades astronômicas), como o tal diretor vai conseguir continuar acumulando fortuna?

Marco Vitis

O Colégio Bandeirantes tem um histórico de estimular a competição entre seus alunos de modo exacerbado. Os que não estão no que a direção entende ser o nível de excelência, são desqualificados. Sei de casos em que adolescentes tiveram problemas decorrentes da competição interna cujos “prêmios” seriam a exaltação ou humilhação pelo desempenho escolar.
Poderia ser perguntado ao sr. Mauro Aguiar se o Colégio Bandeirantes teve sucesso na solução do problema de suicídio entre seus jovens alunos.

Henrique Martins

https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/ministerio-da-saude-afirma-que-foi-alvo-de-ataque-hacker-que-desestabilizou-sistema

Esse movimento dos tais ‘hackers’ é para mostrar que não foi só o Judiciário que foi atacado , mais também o Executivo. Afinal, não foi a toa que Wassef esteve no planalto não. Essa turma pensa que todos nós somos idiotas.

Henrique Martins

https://www.brasil247.com/mundo/biden-vence-na-georgia-e-consolida-vitoria-sobre-trump

BINGO! Eu disse aqui num dos meus comentários anteriores –
logo quando a votação começou – que não me surpreenderia se Biden vencesse com 306 votos no colégio eleitoral que foi o mesmo número de votos com os quais Trump ‘venceu’ em 2016. Isso porque a providência divina anda com um bumerangue nas mãos. Agora falta ver se Trump vai insistir em não reconhecer a vitória de Biden para o partido republicano ser destruído com ele. A ver.

Henrique Martins

https://www.brasil247.com/mundo/trump-da-primeiros-sinais-de-recuo-e-diz-que-o-tempo-dira-quem-estara-na-casa-branca-em-janeiro

Se ele não recuar pior para o partido republicano.
Os democratas já descobriram a principal ‘maracutaia’ para ele garantir com tanta firmeza que houve fraude nas eleições, assim como já estão sabendo os meios para desmascara-lo.
Daí podem acabar destruindo o partido republicano por causa dele. E é claro, a extrema direita vai para o ralo.
De minha parte, vou assistir de camarote. Eles merecem, pois enfiaram uma criatura demoníaca na goela do mundo. Ordinários.

Zé Maria

É mais provável que os alunos riquinhos
brancos racistas das escolas particulares
destruam as Universidades Públicas.

Fernando N. dos Santos(NERI)

Esse povo “branco” só admite cotas nas terras que eles acham o máximo da civilização a ser seguida e onde vão se cacifar para ter autoridade para falar coprolicidades. Quem está destruindo a Universidade Publica são vocês …agora com a ajuda(que logo vai acabar) do insano e fanfarrão presiDOENTE Jair Merdias Bolstonaro!!!

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