Lelê Teles: Thula, a consciência da hipocrisia da sociedade burguesa e o isolamento voluntário

Tempo de leitura: 3 min

Thula e o isolamento voluntário

“quem não ama a solidão, não ama a liberdade” Schopenhauer

Por Lelê Teles*

thula trabalha em casa há oito anos, ela é roteirista e revisora. sua filha pré-adolescente, petra, nunca frequentou a escola e sempre estudou em casa, nas ruas, nas viagens… tudo na vida dela faz parte do que chamam de estudo.

thula poderia procurar um desses coworkings e fingir que tem um escritório, só porque alugou uma mesa para colocar seu laptop, e aí poder jogar sua filha numa escola para ser forçada a uma escolarização anacrônica e idiotizante; mas ela prefere trabalhar em casa e se responsabilizar pela educação integral da sua cria.

thula tomou essa decisão quando ainda estava grávida e leu o emílio, de rousseau. foi aí que ela decidiu que educaria sua pequena segundo os princípios pedagógicos encontrados no emílio.

portanto, o que hoje parece novo para muita gente – homescholling e home office – há muito é rotina na vida dessas duas.

elas são as melhores amigas uma da outra e vivem num ambiente de amor, harmonia e ajuda mútua.

em casa, dividem tarefas, exercitam-se, iogam-se e meditam juntas, fazem resenha oral dos livros que vão lendo, vão juntas ao terreiro comungarem com seus orixás e cultivam o coleguismo em suas interações sociais.

porém, têm consciência da hipocrisia da sociedade burguesa em que vivem e das relações superficiais e seletivas que derivam daí, marcadas por interesse e exclusão.

ontem à noite, lua alta no céu, as duas foram atraídas à varanda por um burburinho incomum e presenciaram uma cena curiosa: os vizinhos combinaram de bater palmas, em um horário determinado, para comemorar o aniversário de um garoto que eles não têm a menor ideia de quem seja.

e o fizeram a pedido da mãe do aniversariante, que convocou a vizinhança pelas redes sociais.

o diabo é que esses mesmos vizinhos, no dia-a-dia, não dão bom dia uns aos outros ao entrarem no elevador e sequer cumprimentam o porteiro do seu prédio.

agora, sem mais nem menos, viraram aqueles animais descritos por gustave le bon, parecem espécimes da mesma espécie.

em alto e bom som, a vizinhança cantava parabéns ao garotinho desconhecido. a mãe, celular em punho, gravava tudo.

thula e petra, serenas, não cantaram parabéns e nem bateram palmas.

elas não conseguem compreender esse repentino sinal de desespero das pessoas.

se essa mãe tem duas mãos, por que diabos não fez um bolo e bateu palmas para o seu filho?

por que iludir o garoto com essa perigosa aceitação da multidão sem rosto?

“quando tudo isso passar, meu amor, aquele garotinho vai continuar sendo ignorado por seus vizinhos, assim como a mãe dele“, diz a thula para a pequena petra.

elas entram.

thula, em lótus, volta a ler os “devaneios do caminhante solitário”, de rousseau, e petra abre ”o lobo da estepe”, do hermann hesse.

os vizinhos também retornam para o interior dos seus apartamentos; a maioria vai assistir a um programa de tevê que exibe um monte de gente convivendo confinada em uma casa que é de ninguém e uns lutam para derrotar os outros.

durante o intervalo, vida imitando a arte, os telespectadores aproveitam para tretar entre si, como em lucas 12:53: irmãos contra irmãos, pai contra filhos.

outros vão à farmácia para comprar remédios.

ao levantar os olhos, tendo um pensamento repentino, petra vê uma estrela cadente rasgar o negrume do céu.

por um instante, empática, ela pensa naquela estranha cena que presenciara da sua varanda e se questiona: “como será o próximo aniversário daquele pobre garotinho?”

questões enigmáticas!


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Ibsen

Rousseau como todo humano viveu de e em suas contradições. Propôs uma educação humanística ao mesmo tempo em que abandonou seus filhos em orfanatos.

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