José do Vale: Os séculos das Luzes, da Industrialização e da Modernidade explodiram em Hiroshima
Tempo de leitura: 3 minPor José do Vale Pinheiro Feitosa*
Na sexta-feira passada, eu e minha companheira [Tereza Piccinini] assistimos a um dos filmes mais comentados dos últimos anos (aliás, o cinema tem apresentado tantas platitudes que não compensa sair por elas).
E uma nota do dia: ir ao cinema é, para minha geração, um fenômeno especial, é sair para um ritual cultural marcante, chegar aos modelos de espaço, luzes, cartazes, salas preparadas e a projeção.
É muito mais do que se sentar nos sofás solitários, embaixo de uma cachoeira de streamings, agora a moda das séries, receber tanto volume no crânio que se formam piodermites no couro cabeludo.
Mas voltando ao filme.
Os dois filmes mais badalados do semestre findo foram Oppenheimer e Barbie, tão badalados que o filósofo pós-moderno esloveno Slavoj Zizek se deu ao luxo de pequeno artigo sobre eles.
Como há tempos não nos animávamos a uma sessão de cinema fomos assistir a Oppenheimer (ainda veremos Barbie).
Oppie é o drama do prestígio da ciência e da tecnologia derivada dela.
Um drama porque todo o prestígio nasce (ou é consequência) da civilização europeia, colonialista, violenta, expropriadora de riqueza, destruidora de povos e que tem na alteridade o seu grande crime humano (o nazismo racista é fruto deste fenômeno).
Recordemos o Século das Luzes como um produtor de conhecimento afiliado à Invasão Comercial das Américas (com a destruição das culturas originárias) e da África (acentuando e se encontrando com a expansão do islamismo e das culturas locais).
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O Século das Luzes, o Século da Industrialização e da Modernidade: máquina a vapor, motor a explosão, eletricidade, teoria atômica, física do espaço/tempo, biologia dos micróbios, controle de endemias e epidemias, fotografia e cinema, artes plásticas, dança, literatura, arquitetura etc.
Especialmente o Século 20 é aquele em que personagens se tornam fenômenos populares vindos das mais complexas e isoladas igrejas dos conhecimento tais como físicos, matemáticos, químicos, microbiologistas, farmacologistas, etc.
Os entusiasmos com os cálculos matemáticos das estruturas da matéria e da energia, dos estudos de astronomia, a teoria das partículas subatômicas e a física quântica, entre outros, se tornaram um sucesso editorial e tais personagens subiram ao patamar dos Deuses.
E que Deuses?
Da genialidade. Não porque desafiassem o Deus da Civilização Europeia Colonialista, Imperialista e Violenta.
Mas geniais porque elevaram o paroxismo destrutivo de uma civilização com estas características.
Einstein se tornou um mito. Heisenberg outro, Niels Bohr também, antes o casal Curie estudou os raios energéticos de ondas mínimas e desenvolveu a teoria da radiação.
O paroxismo máximo desta turma toda foi o cálculo matemático. Desenvolveram verdadeiras sinfonias de símbolos e fórmulas que redundaram em conclusões de controle intenso dos fenômenos.
E ousaram. Foram adiante no sentido teleológico do colonialismo e imperialismo europeu. A exploração, destruição, morte e vitória das luzes, ciência e tecnologia da vantagem relativa.
Para cientistas, muitos deles judeus descendentes de famílias do leste europeu em sua maioria, o cálculo matemático era a dor dos pogroms, representava a reação ao nazifascismo alemão com sua violência racista. Era a vingança da violência a serviço de uma violência maior.
Assim se reúnem Oppenheimer, Teller e outros como Fermi num deserto americano para darem ao Império, que substituiria a Inglaterra, a morte de todas as morte, a vitória sobre todas as vitórias, mesmo que numa terra arrasada.
A esta geração de cientistas não lhes é possível oferecer o perdão da dúvida. Eles estudaram, testaram em laboratório e no deserto do Novo México o estrago que a fissão e a fusão nuclear desencadeariam em poder de destruição material e efeitos tardios sobre a biologia global, inclusive humana.
Assistindo ao filme Oppenheimer não conseguimos perder o desconforto de que os americanos (Trumann e seus generais, empresários e o sistema econômico) usaram Hiroshima e Nagasaki como “experiência controlada” da bomba atômica em seres humanos (a população das duas cidades).
Os americanos envolvidos na bomba atômica e suas instituições de Estado e corporações econômicas puderam, por anos, acompanhar o raio de destruição, as mortes imediatas e mediatas, as morte de longo prazo, as mudanças genéticas, os efeitos tardios e a terapia mais adequada.
Isso caracteriza o que já era antigo em ciência experimental: faz-se o experimento comparando efeitos sobre a população sujeita a ele e outra não sujeita.
Os sistemas de saúde já sabiam como morriam e viviam as populações em condições normais para poder comparar com as vítimas da Bomba Atômica de Hiroshima e Nagasaki.
Amanhã será o aniversário de 78 anos daqueles que, às 8h45, receberam em Hiroshima a violência experimental americana.
A bomba chamava-se, ironicamente, de Little Boy e foi lançada de um bombardeiro que recebeu o nome de Enola Gay, o mesmo da mãe do piloto.
*José do Vale Pinheiro Feitosa é médico sanitarista.
Leia também:
Comentários
Zé Maria
https://www.worldcat.org/pt/title/twice-bombed-the-legacy-of-yamaguchi-tsutomu/oclc/879902194
https://www.janm.org/press/release/twice-bombed-twice-survived-film-be-screen-january-21
https://archive.ph/20130218131731/http://www.chugoku-np.co.jp/abom/2006e/kyodo/Ak06080502.html
Zé Maria
Em Tempo
A Reportagem “THE ATOMIC PLAGUE” (“A PESTE ATÔMICA”) [1945], citado
pelos Goodman no Artigo “The Hiroshima Cover-Up” (“O Encobrimento de Hiroshima”), foi Escrita pelo Jornalista Independente WILFRED BURCHETT.
https://hibakushastories.org/wp-content/uploads/2018/09/The-Atomic-Plague.pdf
http://web.archive.org/web/20140326071329/http://www.commondreams.org/views05/0805-20.htm
Zé Maria
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“A PESTE ATÔMICA”
“O Encobrimento de Hiroshima”
Por Amy e David Goodman, Baltimore Sun (2005), via CommonDreams.org
Uma história que o governo dos EUA esperava que nunca viesse à tona
finalmente foi publicada, 60 anos depois de ter sido atacada por censores
militares.
A descoberta do relato em primeira mão do repórter George Weller sobre
as condições em Nagasaki pós-nuclear lança luz sobre uma das grandes
traições jornalísticas do século passado: o encobrimento dos efeitos do
bombardeio atômico no Japão.
Em 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram uma bomba atômica
sobre Hiroshima; três dias depois, Nagasaki foi atingida.
O general Douglas MacArthur prontamente declarou o sul do Japão fora
dos limites de cobertura da Imprensa, barrando a mídia.
Mais de 200.000 pessoas morreram nos bombardeios atômicos das duas
cidades, mas nenhum jornalista ocidental pôde testemunhar as consequências nem contar a história.
Em vez disso, a mídia mundial obedientemente lotou o encouraçado
USS Missouri na costa do Japão para cobrir a rendição japonesa.
Um mês após os atentados, dois repórteres desafiaram o general MacArthur
e partiram por conta própria.
Weller, do Chicago Daily News, pegou barcos a remo e trens para chegar
à devastada Nagasaki.
O jornalista independente Wilfred Burchett andou de trem por 30 horas
e entrou nas ruínas carbonizadas de Hiroshima.
Ambos os homens encontraram mundos de pesadelo.
O Sr. Burchett sentou-se em um pedaço de entulho com sua máquina
de escrever Baby Hermes.
Seu despacho começava:
“Em Hiroshima, 30 dias depois que a primeira bomba atômica destruiu
a cidade e abalou o mundo, pessoas ainda estão morrendo, misteriosa e horrivelmente – pessoas que não foram feridas no cataclismo de algo desconhecido que só posso descrever como o praga atômica.” (*)
Ele continuou, digitando as palavras
que ainda assombram até hoje:
“Hiroshima não parece uma cidade bombardeada.
Parece que um rolo compressor monstruoso passou por ela
e a esmagou até a extinção.
Escrevo esses fatos da forma mais imparcial possível,
na esperança de que sirvam de alerta para o mundo.”
O artigo do Sr. Burchett, intitulado “A Peste Atômica” (*), foi publicado
em 5 de setembro de 1945, no London Daily Express.
A história causou sensação mundial e foi um fiasco de relações públicas para os militares dos Estados Unidos.
A narrativa oficial dos Estados Unidos sobre os bombardeios atômicos
minimizou as baixas civis e categoricamente descartou como “propaganda
japonesa” os relatos dos efeitos mortíferos e persistentes da radiação.
Então, quando a história de 25.000 palavras do repórter vencedor
do Prêmio Pulitzer George Weller sobre o horror que ele encontrou
em Nagasaki foi submetida à censura militar, o general MacArthur
ordenou que a história fosse morta e o manuscrito nunca foi devolvido.
Como o Sr. Weller mais tarde resumiu sua experiência com os censores
do General MacArthur: “Eles venceram”.
Recentemente, o filho do Sr. Weller, Anthony, descobriu uma cópia carbono
dos despachos suprimidos entre os papéis de seu pai (George Weller
morreu em 2002).
Incapaz de encontrar um editor americano interessado, Anthony Weller
vendeu os direitos autorais para o Mainichi Shimbun, um grande jornal japonês.
Agora, no 60º aniversário dos bombardeios atômicos, o relato do Sr. Weller
pode finalmente ser lido.
“Nos esqueletos achatados das fábricas de armas da Mitsubishi é revelado
o que a bomba atômica pode fazer com o aço e a pedra, mas o que o átomo
dividido pode fazer contra a carne e os ossos humanos está escondido
em dois hospitais do centro de Nagasaki”, escreveu o Sr. Weller .
Um mês após a queda das bombas, ele observou:
“A peculiar ‘doença’ da bomba atômica, não curada porque não tratada
e não tratada porque não diagnosticada, ainda está ceifando vidas aqui”.
Depois de eliminar os relatórios do Sr. Weller, as autoridades americanas tentaram contra-atacar os artigos do Sr. Burchett atacando o mensageiro.
O general MacArthur ordenou a expulsão do Sr. Burchett do Japão (a ordem
foi rescindida posteriormente), sua câmera desapareceu misteriosamente
enquanto ele estava em um hospital de Tóquio e as autoridades americanas
o acusaram de ser influenciado pela propaganda japonesa.
Então o Pentágono lançou mão de uma grande arma secreta de propaganda:
mobilizaram seu próprio homem no [New York] Times.
É que William L. Laurence, o repórter de ciência do [Jornal] The New York Times, também estava na folha de pagamento do Departamento de Guerra dos EUA.
Durante quatro meses, enquanto ainda fazia reportagens para o Times, Laurence escreveu comunicados para os militares à imprensa, ‘explicando’
o programa de armas atômicas;
ele também escreveu declarações para o presidente Harry Truman e
o secretário de guerra Henry L. Stimson.
William Laurence foi ‘recompensado’ ao receber um assento no avião
que lançou a bomba em Nagasaki, uma experiência que ele descreveu
no Times com reverência religiosa.
Três dias após a publicação do chocante despacho de Burchett,
Laurence publicou uma matéria de primeira página no Times
contestando a noção de que a doença causada pela radiação
estava matando pessoas.
Sua reportagem incluía este comentário notável:
“Os japoneses ainda continuam sua propaganda destinada a criar
a impressão de que ganhamos a guerra injustamente e, assim,
tentando criar simpatia por eles mesmos e termos mais brandos. (…)
Assim, no início, o Japoneses descreveram ‘sintomas’ que não pareciam verdadeiros.”
O Sr. Laurence ganhou um Prêmio Pulitzer por sua reportagem
sobre a bomba atômica, e seu fiel papagaio da linha do governo
foi crucial para lançar meio século de silêncio sobre os efeitos
mortíferos e persistentes da bomba.
É hora de o conselho do Pulitzer despojar o apologista de Hiroshima
e seu jornal desse prêmio imerecido.
Sessenta anos depois, o relato censurado do Sr. Weller permanece
como uma acusação contundente não apenas da desumanidade
da bomba atômica, mas também do perigo de jornalistas se unirem
ao governo para enganar o mundo.
Amy Goodman é apresentadora do Democracy Now!; e
David Goodman, escritor colaborador de Mother Jones;
são coautores de “The Exception to the Rulers:
Exposing Oily Politicians, War Profiteers,
and the Media That Love Them”
[“Exceção aos Governantes: Expondo Políticos Oleosos,
Aproveitadores da Guerra e a Mídia que os Ama”]:
(https://www.democracynow.org/gifts/books/the-exception-to-the-rulers-exposing-oily-politicians-war-profiteers-the-media-that-love-them-signed-paperback-)
Íntegra do Artigo,em inglês:
http://web.archive.org/web/20140326071329/http://www.commondreams.org/views05/0805-20.htm
(*) “A PESTE ATÔMICA”
“Em Hiroshima, 30 dias depois que a primeira bomba atômica
destruiu a cidade e abalou o mundo, pessoas ainda estão
morrendo, misteriosa e horrivelmente – pessoas que não foram
feridas no cataclismo de algo desconhecido que só posso descrever
como a ‘Praga Atômica’.
Hiroshima não parece uma cidade bombardeada. Parece que
um rolo compressor monstruoso passou por ela e a esmagou
até a extinção.
Escrevo esses fatos da forma mais imparcial possível,
na esperança de que sirvam de alerta para o mundo.”
Íntegra do Relato Jornalístico do Repórter George Weller:
https://hibakushastories.org/wp-content/uploads/2018/09/The-Atomic-Plague.pdf
.
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Detalhes
A AUTOCENSURA DA IMPRENSA E A CENSURA DO GOVERNO DOS EUA
APÓS OS BOMBARDEIOS COM ARMAS NUCLEARES EM CIDADES DO JAPÃO
A Censura Militar dos EUA ao Trabalho Jornalístico no Japão de 1945 a 1952
“Quase imediatamente após a Rendição Japonesa, o General Douglas MacArthur, Comandante da Ocupação dos Estados Unidos da América (EUA) no Japão, emitiu um “Código de Imprensa” restringindo os Jornalistas Japoneses de relatar qualquer assunto relacionado aos Bombardeios Atômicos ou aos Efeitos da Radiação sobre as Vítimas, e limitando também os Jornalistas Estrangeiros.
A Censura Oficial à Imprensa só seria levantada depois do Fim da Ocupação
Norte-Americana em 1952.”
[…]
“Além da censura escrita, as imagens dos atentados e suas consequências foram rigorosamente controladas.
Imagens documentais de Hiroshima e Nagasaki filmadas por uma tripulação japonesa de 32 homens foram confiscadas pelos Estados Unidos em 1946.
Algumas das primeiras representações dos bombardeios no Japão não eram, portanto, fotografias, mas desenhos.
Toshi e Ira Maruki – que não estavam em Hiroshima, mas correram para lá logo depois para encontrar seus parentes – publicaram, em 1950, sua
coleção de desenhos ‘Pika-Don’ [Expressão utilizada pelos japoneses
para se referir à Explosão Nuclear de Hiroshima e Nagasaki].”
https://ahf.nuclearmuseum.org/ahf/history/survivors-hiroshima-and-nagasaki
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A Censura e a Auto-Censura da Imprensa Norte-Americana nos EUA
“Uma pesquisa na Fortune Magazine do final de 1945 mostrou que
uma parte significativa dos norte-americanos (22,7%) que desejavam
que mais bombas atômicas fossem lançadas sobre o Japão.
A resposta positiva inicial da Opinião dos Norte-Americanos foi apoiada
pelo imaginário apresentado ao público pela Imprensa (principalmente
as poderosas imagens da nuvem de cogumelo) e pela CENSURA do
Governo dos Estados Unidos da América (EUA) tanto de narrativas quanto de fotografias que mostravam cadáveres e sobreviventes mutilados pelos efeitos da Explosão das Bombas Atômicas em Hiroshima (06/8/1945) e
Nagazaki (09/8/1945).”
https://scholarspace.manoa.hawaii.edu/server/api/core/bitstreams/61ec8e43-689a-482a-8e7d-970dd3dc26af/content
https://ahf.nuclearmuseum.org/ahf/history/survivors-hiroshima-and-nagasaki/
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Sobreviventes (“Hibakusha”, em japonês) das Bombas Atômicas
Residentes no Brasil foram Homenageados em Audiência Pública
organizada pelo deputado Carlos Giannazi (PSOL) na ALESP.
https://www.al.sp.gov.br/noticia/?id=300319
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Documentário
“Twice Bombed, Twice Survived:
The Doubly Atomic Bombed
of Hiroshima and Nagasaki”
https://www.janm.org/press/release/twice-bombed-twice-survived-film-be-screen-january-21
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História & Histórias Sobre os Ataques a Bomba Atômica dos EUA no Japão.
https://ahf.nuclearmuseum.org/ahf/history/bombings-hiroshima-and-nagasaki-1945/
https://books.google.com.br/books/about/The_American_Experience_in_World_War_II.html?id=CAEyh6EY9kYC&redir_esc=y
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Zé Maria
Os próprios Pilotos Norte-Americanos foram Submetidos,
mesmo nos Testes, à “Experiência Controlada” dos Efeitos
do Bombardeio de Radiação da Bomba Atômica.
Zé Maria
Excerto
“…não conseguimos perder o desconforto de que os americanos
(Trumann e seus generais, empresários e o sistema econômico)
usaram Hiroshima e Nagasaki como “experiência controlada” [!!!]
da bomba atômica em seres humanos (a população das duas cidades).
Os americanos envolvidos na bomba atômica e suas instituições de Estado
e corporações econômicas puderam, por anos, acompanhar o raio de
destruição, as mortes imediatas e mediatas, as mortes de longo prazo,
as mudanças genéticas, os efeitos tardios e a terapia mais adequada.”
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