O colombiano “Chocó” Martinez e as contradições da Copa do Mundo

Tempo de leitura: 7 min

Jackson “Chocó” Martinez  nasceu no mais negro e mais pobre dos 32 departamentos da Colômbia

2 de Julho de 2014

As contradições da Copa do Mundo

por Harry Browne, no Counterpunch

‘CHOLO’: Eu pensei que estava escrito “Cholo” na pulseira que Jackson Martinez exibiu orgulhosamente diante da multidão da câmera depois de marcar um gol na semana passada.

Eu conheço espanhol o suficiente para saber que a palavra “cholo” significa, através de uma reviravolta etnológica, um latino macho baixinho e bem vestido – como o apelido do ex-jogador argentino e agora administrador do Atlético de Madrid, Diego “Cholo” Simeone.

Por que o colombiano Martinez prestaria esse tributo notável a um “cholo” superava a minha capacidade de compreensão.

Então, por acaso, tive uma conversa em Budapeste outro dia com um norueguês de esquerda e amante do futebol que viveu em Bogotá e mencionou a pulseira do Martinez.

Ela não dizia nada de “Cholo”. Ela dizia “Chocó”, nome da região norte da Colômbia, onde Martinez nasceu, o departamento mais negro, mais pobre e mais desprezado dos 32 que o país tem.

Agitada diante dos rostos majoritariamente brancos dos fãs colombianos reunidos nos estádios da Copa do Mundo no Brasil, a pulseira de Martinez é uma insígnia de distinção, um pequeno símbolo, mas uma mensagem poderosa de orgulho que se recusa a servir à narrativa nacional que o regime colombiano gostaria de impor ao sucesso de seu time.

Esse sucesso talvez não sobreviva ao encontro com o Brasil na sexta-feira, mas o time de várias cores da Colômbia já é, até agora, a unidade mais completa que já apareceu na competição, cujo melhor jogador talvez seja James Rodriguez.

A certeza a respeito de sua qualidade absoluta ainda aguarda um adversário melhor, mas eles se livraram de todos os problemas que lhes jogaram e tiveram o que mais se pareceu com uma vitória “fácil” na segunda rodada.

Rodriguez foi marcado a ponto de se tornar surpreendentemente insignificante durante a maior parte do jogo contra um Uruguai sem Suarez, mas ainda se saiu com dois grandes gols. E os jogadores colombianos mostraram o cinismo necessário também gastando os primeiros dez minutos do jogo reclamando com o juiz todas as vezes que o Uruguai respirava sobre eles, efetivamente desarmando o que poderia ter sido a melhor tática do Uruguai: forçá-los a sair do sério.

Se ao menos a Nigéria tivesse pensado em gritar com o juiz para sair do torpor e entrar no jogo… Por longos momentos durante o jogo contra a França, o juiz norte-americano Mark Geiger parecia esquecer o que deveria estar fazendo ali. Em um momento, depois de deixar de cobrar um pênalti claro contra Patrice Evra, Geiger foi conversar com Evra como se o estivesse alertando para não fazer aquilo novamente – o que apenas serviu para deixar claro que ele havia visto a ofensa e deixou de puni-la. Ele parece ter feito o mesmo quando Olivier Giroud deu uma cotovelada em John Obi Mikel.

Eu não tenho certeza de que o desempenho de Geiger foi consequência de  preconceito: como primeiro juiz dos Estados Unidos a apitar neste estágio da competição, ele talvez tenha se sentido incapaz de tomar qualquer decisão de peso.

É verdade, porém, que a França foi bem melhor do que a Nigéria em matéria de colonizar o espaço do jogo sujo aberto pela incompetência de Geiger, e este fato determinou amplamente o resultado do jogo. (Ele não marcou pessoalmente o impedimento que custou o gol à Nigéria, uma decisão que também ajudou a derrotá-los.)

Muito se falou a respeito da substituição oportuna que Didier Deschamps fez ao tirar Giroud e colocar Antoine Griezmann, mas também foi igualmente importante a saída forçada, minutos antes, de Ogenyi Onazy que levou um golpe nojento de Blaise Matuidi no tornozelo. O lugar de Geiger é no avião de retorno da seleção dos Estados Unidos.

E o catálogo de resultados que poderia ter acontecido para os times africanos na primeira rodada da Copa do Mundo é ainda mais longo.

Ao menos a Argélia perdeu de forma justa para a Alemanha, já que sua superioridade foi desfeita pela incapacidade de ser tão precisa e bem coordenada como a Alemanha em matéria de pênaltis como foram no campo.

Isso me fez lembrar de um jogo que assisti em 1994. A partida da Nigéria contra a Itália em Foxboro, Massachussets, quando os africanos – uma coletânea de jogadores bem melhor do que a dos nigerianos deste ano – perderam para uma mistura de tática cautelosa no início e uma inexplicável incapacidade de segurar a bola nos últimos dois minutos, quando pareceram totalmente capazes de dançar em torno dos italianos a tarde toda.

(Os fascistas italianos à minha volta no estádio abalaram para sempre o meu apoio ao país dos meus avós por parte de mãe e eu certamente torci para os africanos naquele dia.)

Essa última péssima Copa para os africanos, apesar de ser a segunda organizada consecutivamente no “Sul Global”, ressaltou de forma deprimente os problemas do futebol no continente, com uma ênfase inevitável no dinheiro. A possibilidade de que alguns jogadores de Camarões estavam se recusando a jogar na Copa do Mundo mostra como a injustiça e a corrupção da ordem econômica global estão prejudicando seriamente o futebol – mas não espere que a FIFA faça algo a esse respeito.

A vitória da Alemanha na segunda-feira foi recebida com alívio pelas elites na França. Elas que temiam as consequências políticas e policiais de um jogo de quartas de final contra a Argélia mais do que a ameaça do futebol alemão. Elas têm motivos históricos para temer que remetem a, pelo menos, ao amistoso de 2001 entre os dois países. É um alerta para qualquer um (incluso, eu) que tem a tendência de tirar muita compensação política da Copa do Mundo.

Como Roger Cohen, por exemplo. O esforço que ele fez no New York Times para taxar a competição de alguma maneira de “socialista” – ao contrário da ridiculamente desengonçada Ann Coulter que viu nisso algo bom – ecoa algumas argumentações que apresentei por aqui há poucas semanas, apesar de eu não dividir com ele a idealização das finanças do Atlético de Madrid. As falhas nos argumentos dele têm um pouco que ver com um problema de cronometragem: o artigo dele apareceu durante a eliminação de quase todos os times que elogiou e logo antes de Matuidi, o jogador que ele chamou de personificação do seu amado lado francês da decência e da ética no trabalho, estraçalhar os ossos do adversário.

Mas como alguém que tenha estado a observar o que Cohen chama de “Copa do Mundo anti-individual” não nota que, mais do que eu jamais vi antes, uma sequência de times supostamente grandes serem carregados pelos talentos de indivíduos verdadeiramente excepcionais?

Neymar entra nas quartas de final como a única esperança do Brasil, a personificação singular de toda a genialidade do jogo em seu país.

A Argentina, mais surpreendentemente, tem apenas o sublime Messi para marcar gols (apesar de Di Maria ter entrado com um pedido de melhor ator coadjuvante na terça-feira).

Thomas Muller tem sido o único jogador capaz de fazer com que as coisas aconteçam para a Alemanha, a não ser que você conte as defesas incríveis do goleiro Manuel Neuer.

Os holandeses demonstraram que um time pode ser chocantemente unidimensional no ataque se essa dimensão é tão penetrante, por bem ou por mal, como Aryen Robben. E Luis Suarez deu um sopro de vida ao Uruguai e depois o mordeu novamente.

É verdade que tem havido um grande esforço por parte de times com menos estrelas, mas as alegadas igualdades têm fracassado uma a uma diante do poder das estrelas. O grande time espanhol, campeão de 2010, personificava o “socialismo” de Cohen mais do que qualquer uma das seleções de um homem só cotadas para ganhar a Copa deste ano.

O que não quer dizer, claro, que esta, no campo, é uma Copa do Mundo especialmente “capitalista”. Expressões individuais brilhantes certamente têm lugar em qualquer socialismo. Mas Cohen, como tantos norte-americanos que buscam qualquer razão para glorificar o futebol,  tornou-se cego para as suas contradições.

Esses norte-americanos podem se consolar depois que saíram da competição na terça-feira. Eles são, por exemplo, excepcionalmente abençoados na lateral direita: Fabian Johnson, talvez o melhor jogador nesta posição em qualquer dos times da competição, saiu machucado logo no começo e foi substituído pelo jovem DeAndre Yedlin que rapidamente ocupou o lugar de segundo melhor jogador da posição. Esse é um contraste forte com os escalados para a frente, infelizmente: Chris Wondolowski mais parece um rapaz adorável que ganhou um sorteio no bar da esquina, e o prêmio era jogar na Copa do Mundo. Ele quase teria compensado seu tempo fora machucado se Clint Dempsey tivesse completado o passe inteligente de Wondolowski naquela cobrança de falta na prorrogação.

A cultura do futebol parece estar bem viva nos Estados Unidos, apesar de ter sido adiada por outros quatro anos a conversa a respeito de seu grande avanço – mas é difícil não imaginar a bênção de uma seleção dos Estados Unidos que se apoiasse nos talentos latinos tanto quanto Klinsmann se apoia nos meio-alemães. Apesar de toda a falação em torno do técnico, essa era uma seleção norte-americana da qual o técnico Bob Bradley se orgulharia: corajosa, valente, atlética, mas técnica e taticamente limitada, que volta para casa no meio da competição.

Também se pode extrair algum conforto do fato de que os últimos oito times que ficaram na Copa do Mundo são todos campeões de chave e destes, apenas a Costa Rica é uma verdadeira surpresa. Sete dos que seguiram para as quartas de final já eram previstos antes do torneio começar. Apesar de todo o drama, da tensão, da exaustão das prorrogações, dos jogos lá e cá, nós não vimos surpresas verdadeiras nos últimos dias. E apesar de termos visto jogos excelentes, na defesa e no ataque, não vimos muito em matéria de futebol de alta qualidade duradouro.

Na maior parte do tempo, parece estarmos assistindo esses atletas aguentarem uma pressão inacreditável. Brasil versus Chile foi a pior de todas, com o maior número de erros que já vi em jogos deste nível, complementado com a pior série de marcações de pênaltis, mas a pressão não foi única. Espero que, tendo chegado a esse respeitável estágio da competição – somente Brasil e Argentina teriam ficado realmente encabulados de sair antes das quartas de final – os jogadores que restaram estarão agora preparados para entrar em campo e jogar.

Harry Browne escreve para o Counterpunch durante toda a Copa do Mundo. Ele dá aula no Instituto de Tecnologia de Dublin e é autor do livro “The Frontman: Bono (In the Name of Power).

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