Gilson Caroni: O vento leste do feminismo

Tempo de leitura: 3 min

O vento leste do feminismo

por Gilson Caroni Filho

Um sopro de vento percorreu o saguão da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde, na tarde de 3 de dezembro de 2007, foi velado o corpo da parlamentar, jornalista, escritora e ativista Heloneida Studard. Três anos antes da eleição da primeira mulher para a Presidência da República, o Brasil perdeu uma militante que sempre agiu a descoberto, cabeça erguida no espaço das intempéries, desdenhando, com um humor desconcertante, os que a ela se opunham nas diversas frentes em que combateu.

O feminismo de Heloneida, como ação política concreta, englobava teoria, prática e ética, tomando a mulher como sujeito histórico de transformação da sua própria condição social. Sabia que a luta pela emancipação feminina, e pela afirmação de todos os seus direitos à igualdade com o homem, é uma das grandes causas da nossa época. Ao abraçá-la, rejeitou falácias e equívocos que tendem, na prática, a produzir desvirtuamentos e atrasos. Não atribuiu graus de prioridade às diferentes lutas por uma sociedade mais justa. Se por um lado a dominação do homem sobre a mulher não é uma criação do capitalismo, nem resulta da divisão da sociedade em classes, o ideal socialista só pode ser qualificado de genuíno e real na medida em que proponha a libertação do conjunto social.

A  divisão igualitária das posições de poder e prestígio, da cultura e da produção, assim como a distribuição equitativa das tarefas, tanto na vida social como no âmbito doméstico, entre homens e mulheres, é um objetivo que requer tenacidade e desassombro, duas características que nunca faltaram a essa cearense, mãe de seis filhos, e cozinheira de mão cheia.

Helô, como gostava de ser chamada pelos amigos, sabia apreender dialeticamente a luta das mulheres nos países periféricos. Seria um equívoco completo afirmar que todas as militantes que, na América Latina e na África, lutam por seus direitos tenham como meta final a construção do socialismo. Mas é possível afirmar que a maioria delas se constitui como sujeitos históricos relevantes, a partir de movimentos sociais e políticos, que levantam plataformas de luta e programas de trabalho questionadores do status quo, postulando a criação de uma sociedade baseada na igualdade e na justiça social.

Embora Heloneida soubesse que a discriminação da mulher não termina num passe de mágica com a construção do socialismo, a superação da sociedade de classes é necessária para eliminar a exploração e discriminação próprias do capitalismo.

Foi nesse fio tênue que construiu sua trajetória. A partir daí se impõe que a luta pelos direitos específicos de gênero demandem ações políticas simultâneas e em todos os planos permitidos pela realidade concreta, para assegurar o respeito aos direitos. É longo, e penoso, o caminho para o cumprimento da promessa de Lênin, segundo a qual “é preciso fazer de cada cozinheira uma estadista”. A revolução, sem dúvida, é feminina.

Com seu fino senso de humor, a militante incansável registrava, em ensaio publicado no “Livro da Cabeceira da Mulher” (Civilização Brasileira, 1975): ”não há movimento sério que não tenha suas alas radicais. São militantes que não só desconhecem a realidade, como encampam idéias que apenas servem para expressar as suas neuroses (…) o que elas querem é que as mulheres mudem seus hormônios, abram mão das suas leis biológicas ditadas por suas glândulas. Ou seja: que lancem fora a lei física que lhes deu útero, vagina, seios e a par disso o impulso profundo em direção ao macho. Querem não uma mudança política, mas uma mudança de metabolismo”. Definitivamente, Heloneida nunca calou divergências para evitar confrontos.

Sua lucidez a levava a compreender o feminismo como parte de uma transformação geral no mundo inteiro, em que a libertação das mulheres diz respeito à libertação dos homens em geral. É um processo molecular, atravessado por avanços e recuos, mas que se configura com força cada vez maior.

A participação das mulheres no primeiro escalão do governo da presidente Dilma pode ser creditada à luta de ativistas como Heloneida. Ambas, embora com perspectivas distintas, partilham a mesma poética do espaço. Quatro anos depois, em algum ponto de equilíbrio, o mesmo vento leste do saguão sopra no Palácio do Planalto. Dilma e a doce cearense finalmente se encontraram.


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Comentários

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Sílvia

"A divisão igualitária das posições de poder e prestígio, da cultura e da produção, assim como a distribuição equitativa das tarefas, tanto na vida social como no âmbito doméstico, entre homens e mulheres…"

Não conheço a Heloneida mas meu comentário não vai para ela. Eu acho que existe um equívoco no feminismo, aliás, nem sei se é no feminismo como teoria ou se é da apreensão que senso comum fez dele. As "posições de poder e prestígio" é que deveriam ser questionadas. Para mim, que nem sou dona de casa militante, a posição de mãe e dona de casa é uma posição de muito poder e deveria ter muito prestígio. Aí é que mora o X da questão na minha opinião. Nós mulheres, em lugar de valorizar nossas atribuições tradicionais (que assim se tornaram por motivos reais, embora não deva ser cristalizada), "caímos na conversa dos homens" de achar que o que eles fazem é que tem valor. E aí, para termos valor, temos de nos transformar em homens. Teria muito mais coisas para argumentar, mas estou sem tempo.

Vera Silva

Heloneida está na minha memória como uma feminista que nunca será esquecida.
A luta pela liberdade inclui a liberdade de escolha das mulheres.

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