Eugênio Bucci: O totalitarismo escópico e o poder dos algoritmos

Tempo de leitura: 4 min

O totalitarismo escópico

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo

Por Eugênio Bucci, em A Terra é Redonda

O mundo digital jogou a humanidade num novo tipo de totalitarismo. Não há outra palavra para definir a relação entre a massa de bilhões de seres humanos e os conglomerados monopolistas globais, como Amazon, Apple, Meta (dona do Facebook e do WhatsApp) e Alphabet (dona do Google e do YouTube), sem falar nas chinesas.

As pessoas não sabem nada, absolutamente nada, sobre o funcionamento dos algoritmos que controlam milimetricamente o fluxo das informações e das diversões pelas redes afora.

Na outra ponta, os algoritmos sabem tudo sobre o psiquismo de qualquer um que acesse um computador, um celular, um tablet ou um simples reloginho de pulso, destes que monitoram exercícios físicos, batimentos cardíacos, pressão arterial, passos e braçadas. Estamos na sociedade do controle total – controle totalitário.

O mais espantoso é que esse controle só se viabiliza graças à docilidade contente das multidões.

Em frêmitos de excitação exibicionista, elas escancaram suas próprias intimidades para as máquinas.

Em seguida, não satisfeitas com o furor do exibicionismo, entregam-se ao voyeurismo cavernoso para bisbilhotar a vida alheia.

Olhando e sendo olhadas, trabalham feericamente a serviço do imenso extrativismo de dados pessoais, que, depois de capturados, são comercializados a preços estratosféricos.

Você não acredita? Pois deveria acreditar.

De onde você acha que vem o valor de mercado dos conglomerados? Resposta: vem da captura (gratuita) e da venda dos dados pessoais das multidões.

O mundo digital conseguiu a proeza de instaurar uma ordem de vigilância total, em que todos vigiam todos e ainda por cima se deliciam com isso.

E quem sai ganhando no fim das contas? Sim, eles mesmos, os conglomerados – ele mesmo, o capital.

Chega de ilusões otimistas. Um pacto de convivência em que os algoritmos enxergam tudo e mais um pouco das privacidades individuais, enquanto os indivíduos nada enxergam dos algoritmos, que são o centro do poder digital, só pode ser chamado de pacto totalitário.

Hannah Arendt ensina que a adesão de todos é uma das marcas distintivas do totalitarismo.

Ela viu que, no nazismo e no stalinismo, cada cidadão se apressava em agir como um funcionário da polícia política e delatava até mesmo os familiares. Hitler e Stalin contavam com os préstimos voluntários das pessoas comuns para dizimar dissidentes.

“A colaboração da população na denúncia de opositores políticos e no serviço voluntário como informantes”, escreve a filósofa em Origens do totalitarismo, “é tão bem organizada que o trabalho de especialistas é quase supérfluo”.

No totalitarismo descrito pela grande pensadora, o medo impele toda gente a obedecer.

Hoje sabemos que o medo não age sozinho. Além dele, existe a paixão: as massas nutrem um desejo libidinal pela figura do líder. “Sede de submissão”, nas palavras de Freud. Há um prazer inconfessável na servidão.

No totalitarismo dos nossos dias, o medo dominante é o medo da invisibilidade. É por aí que o poder dos algoritmos aterroriza todo mundo.

Quanto ao desejo, este se manifesta como um arrebatamento imperioso que leva um adolescente a matar e morrer em troca de um instante de holofote sobre o seu nome e sua fotografia.

A tara extremada por algum contato, mesmo que remoto, com as estrelas que reluzem nos palcos virtuais leva à sujeição total.

Que o trabalho escravo aflore neste universo de gozo e pânico não surpreende.

As pessoas, carinhosa e cinicamente chamadas de “usuárias”, trabalham de graça para as redes.

Dedicam horas e mais horas de seus dias plúmbeos para abarrotar as plataformas com seus textos, suas imagens, suas musiquinhas prediletas, seus áudios e suas misérias afetivas.

E é precisamente o produto desse trabalho – escravo – que atrai bilhões de outros “usuários”.

Os conglomerados não precisam contratar fotógrafos, cantores, atrizes, redatores, jornalistas, nada disso, pois já contam com seus adeptos fanatizados e escravizados. Nunca, em toda a história do capitalismo, a exploração do trabalho – e dos sentimentos – chegou a níveis tão absurdos.

Não surpreende, também, que a propaganda da extrema direita antidemocrática se saia tão bem nesse ambiente.

O totalitarismo das redes repele o discurso da democracia com a mesma força que impulsiona mensagens autocráticas. É óbvio.

A política democrática precisa de homens e mulheres livres, que tenham autonomia crítica e valorizem os direitos. Esses estão em baixa. A autocracia é o contrário: só se alastra entre grupos violentos, inebriados pelo ódio e impelidos por crenças irracionais, que estão em alta.

Como o totalitarismo dos nossos dias se tece pela exploração e pelo direcionamento do olhar, deve ser chamado de “totalitarismo escópico”. O olhar é o cimento que cola o desejo de cada um e cada uma à ordem avassaladora.

Se queremos uma regulação para enfrentá-la, devemos começar por exigir transparência incondicional dos algoritmos. É inaceitável que uma caixa preta opaca e impenetrável presida a comunicação social na esfera pública.

Mais que inaceitável, é totalitário.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.


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Comentários

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Vander

O texto é quase todo muito bom. Pena que do 26º parágrafo em diante, peca pela omissão unilateral, contradizendo o conteúdo do 14º, que informa haver “vigilantes voluntários do totalitarismo” nos regimes de extrema direita como de extrema esquerda. Sem negar a realidade e o perigo da extrema direita, convém lembrar, uma vez que o texto não o fez, que partir em disparada rumo ao outro lado inexoravelmente nos conduzirá a outro extremo, onde igualmente existe morte em massa e controle absoluto da vida dos sobreviventes. Tomar o controle da caixa preta dos algoritmos, que está nas mãos de um pequeno grupo de humanos, para entregá-lo de mão beijada nas mãos de outro pequeno grupo de humanos, com o argumento de que este último “sabe melhor” o que é o melhor é, na melhor das hipóteses, inocência. Na pior, é compactuar com o mesmo instinto criminoso de dominação das massas.

Zé Maria

Se fosse no tempo da Alemanha Nazista,
o Goebbels estaria fazendo Uso Sádico
de Algoritmos para Propaganda de Hitler
e do “Deutsches Drittes Reich” para durar
1.000 Anos. Nada diferente do que é hoje.

Zé Maria

Banditismo na Câmara dos Deputados serviu aos
Fascistas de Extrema-Direita para deturpar a Fala
de Flávio Dino na Comissão de Segurança montando
Vídeos para Publicação nas Redes de Internet.

https://twitter.com/i/status/1646158214273146880
https://twitter.com/i/status/1645904392975966208
https://twitter.com/i/status/1646143215169413123

Zé Maria

https://twitter.com/i/status/1646135694538973184

“Quatro ou Cinco Corporações Globais conseguem exercer uma Dominação tão Extraordinária que não é sequer notada.
[…]
E assim acontece com a Manipulação das Subjetividades em Todas as Escalas.
Se fosse apenas nos Hábitos de Consumo, já seria Grave. Porque o Consumismo já escraviza.

Mas há algo Subjacente Maior Nisso Tudo…
É um Lucro Sujo…
[…]
Além de Tudo, o que está em Questão é o Controle do Pensamento Político da Sociedade.”

FLAVIO DINO
Ministro da Justiça
Governo LULA (2023-2026)

https://twitter.com/LuizMuller/status/1646135694538973184

Zé Maria

Nada mais verdadeiro que a Premissa:
“A Mentira é Mais Convincente que a Verdade”.

Além disso, a Violência é a forma Mais Fácil e Rápida de resolver Conflitos.
Aliás,faz parte do Instinto Animal.

E é desses Fatores que se aproveita a Extrema-Direita nas Redes de Internet.

Zé Maria

“Sucede, porém, que a estupidez humana é grande,
e a bondade humana não é notável.”

Fernando Pessoa, Ele Mesmo

http://arquivopessoa.net/textos/4306

Zé Maria

“Esquema de disparos de Zap [WhatsApp] elegeram os vigaristas.”

https://twitter.com/CCambara2/status/1646061942967025666

Na Política, quando se juntam o Ignorante, o Mal Intencionado e o Arrogante

numa Pessoa Só, pode crer que dá Merda na Vida … das Pessoas de Boa-Fé.

.

Zé Maria

.

E as Bígui Téquis do Vale do Algorítimo ainda se prestam em servir

de Instrumento da Agência de Espionagem do Governo dos EUA

para promover Golpes de Estado em Países que o desagradam.

.

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