Emir Sader: Tudo vale a pena, porque a nossa alma não é pequena

Tempo de leitura: 4 min

As desventuras e a alegria de viajar pela América Latina

Blog do Emir Sader

Ir do Brasil a El Salvador, com troca de avião em Lima. Ir à Republica Dominicana via Miami. Ir a La Paz, a capital do país, desde qualquer lugar, tendo que trocar de avião em Santa Cruz de la Sierra (mesmo com a companhia estatal, a Boa).

Nem pense em ir a lugares como Quito ou Montevideu, porque é necessário fazer uma enorme quantidade de malabarismos de aeroportos, trocas de aviões, trânsito –  com as esperas, os cancelamentos e os atrasos respectivos e os correspondentes riscos multiplicados de perda das malas, se você faz a bobagem, da qual pode se arrepender por vários meses, de despachar as malas.

Quem viaja constantemente deve reservar vários dias ao ano das suas vidas para esperar malas, que podem tardar bem mais de uma hora ou não chegar nunca, para nossa decepção quando as malas vão rareando, as pessoas pegando as suas e indo embora, até que ficamos solitários e desolados diante da esteira vazia, que começa a parar, indicando que se deve dirigir ao balcão de reclamações de bagagens perdidas.

Começa aí um longo périplo – que pode demorar alguns meses – de preenchimento de formulários, de escolha de qual das dezenas de malas de formatos muito parecidos, se assemelha à infeliz mala perdida – qual cachorrinho levado pela carrocinha. Incalculável número de telefonemas, em que se dá, cada vez, várias vezes os nossos dados pessoais, o itinerário, a data da viagem, as vezes em que se viajou para o local, e a senha mágica que nos deram, frequentemente composto de intermináveis números e letras, em que não fica claro quando é o numero zero ou a letra O, quando as letras são maiúsculas ou minúsculas.

Mas se termina tendo familiaridade com aquela maldita senha, que supostamente nos levará ao reencontro feliz com a pobre e abandonada mala perdida. Se começa cada vez tudo de novo, como se estivesse começando o procedimento e quando se acredita que se individualiza alguém que já nos atendeu várias vezes, nos relatam que a tal persona, que era o passe para relação mais personalizada, está de férias ou já não trabalha naquele setor ou naquela companhia.

Por alguma razão incompreensível, alguns países pedem certificado de vacina que, uma vez conseguido, nem nos pedem. Já tive que adiar uma viagem por 24 horas enquanto se conseguia uma autorização especial para eu viajar sem o certificado – ele vale por 10 anos, mas a vacina tem que ser tomada 40 dias antes – e quando finalmente cheguei esbaforido no dia seguinte ao previsto, correndo diretamente para fazer a conferência para um auditório cheio de estudantes muito ansiosos, nem me pediram o certificado. Tive vergonha e pena de dizer isso aos que tinham se desdobrado durante aquelas 24 horas para que eu pudesse finalmente entrar no país.

Outra vez eu só soube quando ia retornar ao Brasil que deveria ter tirado o certificado no Brasil antes de ir. Na véspera de retornar, fui ao consulado brasileiro e um simpático funcionário me deu a chave: um centro de saúde em que se pagava para ter o certificado e a funcionária dava o certificado com os devidos 40 dias de antecipação, data evidentemente anterior à do meu ingresso no país, data em que eu não estava naquele país. Mas funcionou tudo conforme os requerimentos.

Mas a América Latina piorou no que chamam de tráfego aéreo – que a gente só vê na hora de subir e de descer, com aquelas demoras anunciadas simpaticamente pelos pilotos, dizendo que somos o número 18 na fila para decolar ou que temos que ficar dando voltas em torno do Galeão por um tempo indeterminado, devido ao “congestionamento do tráfego aéreo”.

Piorou porque a Iberia – uma verdadeira devoradora de companhias aéreas – comprou a Viasa, até ali uma boa companhia aérea venezuelana – e a quebrou. A Venezuela ficou sem companhia aérea nacional, agora o governo de Hugo Chavez, com grande esforço, está construindo, a duras penas, uma. O mesmo a Iberia fez com a Aerolineas Argentinas, comprada pela insaciável companhia espanhola, que a devolveu quebrada para o governo argentino, que teve que estatizá-la e a mantém viva, com grandes dificuldades.

Mas tudo isso vale a pena pela beleza e pelas extraordinárias experiências políticas que vários países do continente estão vivendo, tanto em processos de democratização econômica e social interna, como de integração – na contramão das companhias aéreas e enfrentando a resistência férrea delas.

Como cruzar a cordilheira do Andes indo do Rio para Lima, com bolsões de neve e, de repente, despontar, majestoso, o lago Titicaca, uma aparição milagrosa de um oásis interminável no meio daquela secura de terras aparentemente inexpugnáveis.

E passar por Lima, mesmo se por algumas – inevitáveis 5 horas – de espera para seguir a San Salvador – com a consciência de que, mesmo se vai tomar posse somente no fim deste mês, o Peru vai deixar de ser governado por Fujimori, por Toledo, por Alan Garcia.

Vai ter um governante com profundas raízes peruanas, que se propõe a fazer com que a economia do país continue a crescer, mas distribuindo renda, ao contrário do que aconteceu nas duas últimas décadas em que o país foi pilhado por empresas extrativistas das suas riquezas minerais, com o beneplácito de governos que nem sequer esboçaram fazer com que um dos povos mais pobres do continente pudesse participar minimamente com migalhas dessa expansão.

Tudo vale a pena na América Latina, porque a nossa alma não é pequena.

Emir Sader, sociólogo e cientista, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela USP – Universidade de São Paulo.

PS do Viomundo: O professor teve problemas com o seu Facebook e perdeu os endereços. O seu novo  é Emir Sader com o número 2 na foto. Por favor, ajude a passar adiante essa informação. Abs e obrigada, Conceição Lemes


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Comentários

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operantelivre

Apesar das peripécias você tem razão. Nossa alma é grande.
Este texto me fez recordar uma viagem de Miami a Manágua, já na era Sandinista, pós Somoza.
Fui pela então AeroNica. Nem deve existir mais. Demorou mais na alfândega do que de viagem.
Faria tudo de novo. Mesmo que tivesse que dormir no Aeroporto.
Visitei a zona destruída pelo terremoto de 1972, prais desertas no pacífico e voltei com uma alma maior.
Tudo vale a pena porque nossa alma sempre pode crescer mais.

Marduk

Vai ver que viajar pela América Latina é mais seguro que fazer turismo no Nordeste, especialmente em Salvador, hehehehehehehehe…

Fabio_Passos

Reflexo da falta de integração no continente.
Nações irmãs que viveram voltadas para os interesses das potências imperialistas… e que sofreram juntas, recentemente, com a terra arrasada neoliberal.

Agora vivemos uma oportunidade histórica.
Temos inteligência e a intenção de aprofundar a integração e a união na AL

Étore

Este senhor não deve andar de avião no Brasil. O pior vôo que enfrentei na AL foi melhor do que a maioria dos trechos viajados no país. Ele novamente conseguiu terminar uma crônica sem dizer nada.

    Gerson Carneiro

    Pára de rodeio (parece a moça do aeroporto anunciando que o voo está atrasado), diz logo que a culpa é do Lula.

    Étore

    Dele e de todos os que vieram antes

    Étore

    Aproveitando, compartilhe suas experiências com as companhias aéreas do continente com a gente. Assim poderemos saber sua opinião sobre o assunto.

    Gerson Carneiro

    Na minha pouca experiência posso dizer que sou uma pessoa de sorte, muita sorte. Viajo pelo Brasil desde quando a passagem do trecho São Paulo-Fortaleza-São Paulo custava o equivalente a R$ 3.200 (três mil e duzentos reais). E nunca tive problema algum. Por isso considero improvável a afirmação de que "O pior vôo que enfrentei na AL foi melhor do que a maioria dos trechos viajados no país".

Klaus

Ainda assim li até o final e não me disse nada! Já viajei a Gautemala, por Miami (na época da quebra da PANAM), e não tive dificuldades nenhuma!

    Elton

    Há quantos anos foi isso, ô "çumidade"? A PANAM quebrou ANTES da farra monopolista das empresas aéreas mundo afora…..

    Klaus

    Este KLAUS é OUTRO. Ainda não abri franquia.

    LULA VESCOVI

    Dois Klaus vai ser brabo de aturar.

Klaus

Por que não posso "nem pensar em ir a Quito e a Montevideo"? Nossas companhias aéreas são tão melhores assim que as da AL? O começo ficou ruim para ler até o final!

    Klaus

    Este Klaus é apenas um GENÉRICO, ok? O bom e velho (nem tão bom mas certamente quase velho) sou eu…Este deve ser só um fã…kkkkkkkk

    Klaus

    Ok, xará! Eu sou o Klaus Balogh! Vou assinar assim para não confundir!

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