Elizabete Franco: Em nome de Deus as portas das escolas estão fechadas para todas as famílias

Tempo de leitura: 5 min

gênero - plano municipal de educação

“Não ao gênero, somos família

gênero - plano municipal de educação 2“Eu beijo homem, beijo mulher, eu beijo quem eu quiser”. “Se Jesus estivesse aqui, estava do lado das travestis”

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“Gênero Não”. Depois, “Aleluia!!! Aleluia!!!!” Orações, hinos, padres jovens no caminhão de som, louvor a Deus, à familia. Fotos e legendas do artigo A Inquisição ressuscitou na Câmara Municipal de São Paulo, publicado em Jornalistas Livres

por   Elizabete Franco Cruz, especial para o Viomundo

Acompanhando um movimento que existiu em várias cidades do país, segmentos religiosos se opõem à presença da palavra gênero no Plano Municipal de Educação de São Paulo. Na votação realizada no dia 11 de agosto na Câmara Municipal observamos manifestações públicas conclamando o “povo de Deus” a dizer “não ao gênero”. Com gritos de “aleluia, aleluia”,  orações e uma faixa com os dizeres “Gênero não é de Deus”, manifestantes religiosos apoiavam a maioria dos vereadores que votou pela exclusão do termo no texto do Plano.

O argumento central desta perspectiva é que gênero é uma ideologia que representa uma ameaça para a família e para as crianças e, por isso, não deve estar presente nas escolas.

Neste enunciado religioso, transmitido em missas, cartilhas, câmaras municipais e redes virtuais, temos o entrelaçamento de vários conceitos – ideologia, gênero, família, crianças, escola e educação – que são objeto de pesquisa e análise de diferentes áreas do conhecimento científico.

Pelos limites de espaço e foco deste texto, me limitarei a comentar apenas o conceito de gênero. A construção discursiva que atribuiu ao gênero o lugar de ideologia tem a perspectiva de diminuir sua seriedade, validade. O vocábulo ideológico é utilizado – justamente por quem sustenta o discurso da fé, da doutrina –  como o elemento que tenta desqualificar o que há de científico no termo relações de gênero.

Este discurso religioso faz sistematicamente a oposição entre gênero e família. Tal construção é equivocada porque o conceito de gênero está reduzido à população LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais) e família reduzida à família heterossexual.

O conceito de gênero não é o que este discurso anuncia mas, mesmo que fosse, causa estranhamento que religiões que pregam o amor queiram eliminar a presença da diversidade na escola e mais estranhamento ainda que um Estado laico possa ter um conjunto de representantes eleitos que parecem mais preocupados com a permanência no poder do que com a qualidade na produção da educação na cidade e no País.

Gênero – mais precisamente  “relações de gênero” – é uma categoria analítica das ciências humanas e sociais que, tal como classe, raça/etnia e geração é utilizada para o desenvolvimento de pesquisas que buscam compreender as sociedades contemporâneas. O conceito envolve a dimensão relacional, histórica e cultural de saberes e poderes que se entrelaçam na produção dos sentidos ao redor do masculino e do feminino.

A inclusão de disciplinas de educação para a sexualidade, equidade de gênero e raça nos currículos de educação infantil até a universidade é uma demanda antiga que vem sendo gradualmente trabalhada e conquistada no País e no processo de formação de professores e professoras. Isto não retira o lugar da família no processo de formação moral, mas sinaliza que a escola precisa ser um espaço no qual se aprende bem mais que matemática e português.

Neste cenário, vale refletir que recentemente tivemos noticias de situações de violência em várias universidades paulistas, inclusive casos de estupro cometidos por alunos da USP. Não podemos deixar de pensar a respeito do fato de que estudantes universitários com competência para aprovação em  grandes universidades públicas chegam ao ensino superior com valores assustadoramente desrespeitosos em relação a mulheres, homossexuais, travestis e negros.

Ao mesmo tempo, sabemos que estudantes gays, travestis, transexuais, portadores de HIV/AIDS, e também mulheres,negros, indígenas e portadores de deficiências sofrem vários tipos de estigma e discriminação no cotidiano das escolas.

Não cairia aqui na armadilha de universalizar “os católicos” e “os evangélicos”. Essa postura maniqueísta e binária de lideranças e segmentos dentro das religiões não revela a posição da totalidade dos fiéis. Contudo, o discurso religioso cria um “nós” do bem  e um “ eles” do mal, que incita a violência e a fixação de identidades.

Pluralidade, respeito à diferença e à diversidade de pensamento é o que precisamos ensinar para estudantes em todas as faixas etárias. A diferença entre as pessoas não é algo a ser eliminado.  Crianças e jovens socializados  para a diversidade não serão pessoas confusas. As experiências já exitosas nessa área mostram que serão pessoas menos ocupadas com a perseguição e violência diante da identidade e subjetividade alheia. A paz é também uma construção que se ensina na escola e ela não poderá existir enquanto a uniformidade entre os humanos for colocada como o ideal a ser alcançado.

O pensador francês Michel Foucault, em famoso prefácio do livro Anti Édipo, de G. Deleuze e F. Guattari, nos convida a pensar numa “vida não fascista”. O autor não se refere apenas ao fascismo histórico de Hitler e Mussolini, mas também ao fascismo que nos habita, que vive nas práticas cotidianas.Nas palavras do autor é essencial “a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amena tirania de nossas vidas cotidianas.”

Uma educação, com práticas cotidianas não fascistas é  elemento que pode contribuir para a construção de uma vida não fascista. Resta saber se a sociedade brasileira permanecerá atenta para entender que o apagamento das diferenças – disputado nas palavras que podem ser ditas e escritas num plano de educação – é um dos elementos que, como água gotejando, vai minando as reservas da pluralidade, na tentativa de tornar universais e homogêneas as formas de existir.

O risco é o fascismo que já existe no preconceito e na violência do cotidiano não encontrar na escola  discursos que o questionem. É preciso ouvir o grito daqueles que  não se opõem à família, mas tentam trazer para a escola todas as famílias.

Gênero, diversidade, pluralidade são palavras que devem permanecer na educação. Fascismo, racismo, violência, preconceito são as palavras que devemos apagar.

É ainda em Foucault que encontramos a amizade como uma possibilidade para a tessitura da vida. E o que está em jogo é exatamente isto: que vida queremos produzir e ensinar no âmbito da educação brasileira. Resta a esperança nas pessoas que vivem dentro e fora das escolas, que sabem que uma bela estética da existência para a educação, e para a vida em nosso País, só poderá ser escrita e tecida nas tintas e fios da diferença.

 Elizabete Franco Cruz é professora da Escola de Artes Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

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Vera Paiva aos vereadores paulistas: Rejeitem o golpe fundamentalista nas escolas! 

Bresser-Pereira: UDN nunca se associou a políticos corruptos como o PSDB está fazendo com Eduardo Cunha 


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Comentários

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FrancoAtirador

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MÉDIA DO ESQUADRÃO
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Dos 32 Policiais Militares que Atuavam na Região de Osasco/Barueri em 13/8
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18 São Suspeitos de Participação no Genocídio que Deixou 18 Pessoas Mortas.
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(http://www.ebc.com.br/noticias/2015/08/policia-realiza-busca-e-apreensao-contra-18-pms-por-chacinas-em-osasco-e-barueri)
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Urbano

Quem está necessitando de muitas rezas, e das fortes, são os setores básicos de Pernambuco como Saúde, Segurança, Educação e Transporte. Querem ver o caos em toda a sua essência? Visitem os principais e grandes hospitais da Capital. Nem precisa adentrar até o Sertão. Quanto à segurança, sorte grande é encontrar policiais a pé ou de carro a fazer patrulhas. E isso nem no centro da Cidade, imagine-se nos arrabaldes. É bom lembrar que os da multa de trânsito não valem. Como bem se vê, realmente dava para se fazer mais pelo Brasil…

    Urbano

    Dentro do contexto, o que posso dizer é que mesmo Jesus Cristo se zangou…

Isabela

De fato, é tudo muito óbvio, como ficou pra mim ao ler o texto; então é inacreditável esse movimento religioso orquestrado em cima na rasura e ignorância dos fiéis. Aqui no interior do Paraná, foi um show de horrores: um grupo de pesquisa do qual faço parte na universidade pública que leciono, um coletivo feminista e o DCE, nos unimos, conseguimos uma audiência pública na Câmara e até um papo com o prefeito. Essa mobilização nos uniu, mas naquela noite da audiência, éramos minoria. A maçonaria foi convocada às pressas pelo watsapp, terços gigantes enrolados nos braços, cartazes bradando ódio… foi tão feio, pois eu não sabia que aquilo ainda pudesse acontecer na minha contemporaneidade. Eles foram às missas colher assinaturas, padres e pastores falaram que se o plano aprovado como estava, as escolas instalariam banheiros únicos, as meninas aprenderiam a ser lésbicas, os meninos, gays! O plano foi amplamente discutido entre educadores da cidade nas conferências da educação, aliás, eles próprios sugeriram seguir os PCN no que tange à educação sexual e à igualdade de gênero, aí um bando de chucros ignorantes que são vereadores, seduzidos pelo discurso homofóbico do deus dessas lideranças religiosas, temendo perder votos, aprovam por unanimidade a retiradas dos termos. Eu fico triste, mas, por outro lado, nosso movimento tem se fortalecido. Onde vamos parar?

    Carlos Salgado

    Isabela, é doído pacas…
    Sobretudo porque é um debate sério e que protege no “ninho” uma grande parcela da sociedade que sofre muito ao longo da vida.
    Tudo isso sem dizer do processo civilizatório que as medidas inclusivas em geral representam, mulheres, imigrantes, negros, homossexuais, deficientes físicos, mentais. O caminho é em geral pedregoso e o saldo civilizatório é sempre muito positivo.
    Mas acho que toda a força dessas lideranças, meio conservadoras meio canalhas, de que você e a Elisabete trataram está baseada no medo, a base deles tem medo, muito medo, foram educados assim e não conhecem o diferente.
    Não tenho solução para o problema, mas tenho certeza que ela passa por esvaziar este medo e por consequência essas lideranças.
    Um abraço, e força na luta, sempre!

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