Eliakim Araujo: Armando Nogueira, um sedutor irresistível

Tempo de leitura: 4 min

Publicada em:30/03/2010

por Eliakim Araujo, no Direto da Redação

Como jornalista, Armando Nogueira foi um excelente poeta e um prosista de texto refinado. Entrou no jornalismo da TV Globo em 1966, quando o golpe militar estava ainda fresquinho, e lá ficou até 1990, quando o novo presidente, Fernando Collor, convenceu Roberto Marinho a promover Alberico Souza Cruz ao posto máximo do jornalismo global, não que tivesse qualquer objeção a Armando, simplesmente porque precisava premiar o amigo Alberico que teve participação decisiva na edição do debate presidencial e ainda palpitou nos programas especiais que transformaram Collor no indômito “caçador de marajás”.

Armando não foi demitido, pior que isso, sofreu uma “capitis diminutio”. Foi “promovido” a assessor especial da presidência, o que a plebe chama carinhosamente de “aspone”. Dedicou-se então ao jornalismo esportivo, onde, aí sim, foi um verdadeiro mestre da palavra escrita e falada. Fui revê-lo anos mais tarde apresentando um programa de esportes num dos inúmeros canais a cabo da Globo.

De Armando, pessoalmente, guardo duas passagens. Eu estava há menos de um ano à frente do Jornal da Globo quando cruzamos no corredor onde ficava a redação do Globo Repórter. Ele me parou e disse: “olha, eu quero te cumprimentar porque desde Heron Domingues não aparecia aqui um apresentador como a mesma naturalidade dele”. Heron era o ícone de toda uma geração de telejornalistas e ser comparado a ele era um elogio e tanto que elevou meu ego às alturas. Hoje, honestamente, não sei se foi sincero ou apenas uma frase de efeito com a qual seduzia todos que estavam entrando no império global.

Doutra feita, estava eu no Eng, a sala da técnica que comanda a transmissão dos telejornais, quando alguém me chamou ao telefone. Era o Armando: “Tenho uma boa notícia para lhe dar, a partir de agora você vai passar a ganhar cinco mil cruzeiros por mês”. Entre surpreso e curioso, rebati de primeira: “e o que é que vocês vão querer em troca?” Armando ficou visivelmente decepcionado com minha reação, esperava talvez um emocionado agradecimento de quem ganhava dois mil cruzeiros. Ora, pensei naquele momento, onde já se viu um patrão mais que dobrar o salário do empregado sem um motivo especial? Depois se esclareceu que eu, e todos os demais apresentadores, perdiam ali o status de funcionários da Globo e passavam a Pessoa Jurídica com contrato de firma. Na época uma novidade, hoje uma prática comum no mercado televisivo.

Mas apesar de todas as virtudes de Armando, cantadas em prosa e verso nos depoimentos de personalidades das artes, da política e do jornalismo, não dá pra esquecer que ele esteve à frente do jornalismo mais comprometido do Brasil: o que foi praticado pela Globo durante os anos da ditadura militar. O JN era conhecido como “o porta-voz do regime”. As ordens que emanavam dos governos militares eram obedecidas sem questionamento. Não me lembro, sinceramente, de ter visto por parte dos profissionais da Globo alguma tentativa de desobediência ou de driblar a censura, como fez por exemplo o Jornal do Brasil, que saiu com aquela capa histórica no dia seguinte à decretação do AI-5, 13 de dezembro de 68, iludindo os militares fardados que ocuparam as redações assim que terminou a leitura do ato discricionário.

Eu estava na TV Globo durante o primeiro mandato de Leonel Brizola à frente do governo do Estado do Rio. Entrei em maio de 83, pouco depois da posse do novo governo, e o jornalismo da Globo passava por uma grave crise de credibilidade, com seus repórteres e carros ameaçados nas ruas pela população. Pesava sobre a emissora a acusação de, junto com a Proconsult, empresa contratada pelo TRE para apurar os votos da eleição direta para governador do Estado, em 1982, tentar fraudar o resultado para dar a vitória a Moreira Franco, o candidato do regime militar, apoiado pela família Marinho. Por engano ou má-fé, a emissora divulgava números que não refletiam a verdade da apuração.

Em 1984, no episódio das Diretas Já, onde atuei como narrador em off no comício da Candelária, no Rio, a postura da Globo foi a de ignorar por completo os movimentos populares que cresciam em todo país. Mas não bastava ignorar, era proibido usar a palavra “diretas” em qualquer situação, mesmo como notícia, contra ou a favor. Até que a pressão popular tornou-se irresístivel e a emissora foi obrigada a render-se ao apelo da população brasileira.

Em 1989, no segundo e último debate entre Collor e Lula nos estúdios da TV Bandeirantes, no Morumbi, quando eu tinha acabado de deixar a Globo e estava lá representando a Manchete, observei que Lula estava visivelmente cansado e abatido. Além do esforço da reta final da campanha, ele tinha sido acusado no programa de Collor por uma ex-namorada, Mirian, de tentar convencê-la a abortar uma criança (a filha dele, Lurian). Depois se soube que a estratégia (financeira) de colocar a enfermeira Mirian no foco da mídia a três dias da votação partiu de Leopoldo, o irmão de Collor e muito amigo dos Marinho. A família Collor é dona da emissora que retransmite a programação da Globo em Alagoas. Toda essa lembrança histórica é para dizer que Lula foi mal naquele segundo debate, mesmo assim a Globo, na edição da matéria, destacou os melhores momentos de Collor e os piores de Lula.

Os que têm boa memória hão de se lembrar da severa campanha do Jornal Nacional contra o então ministro da Justiça do governo Figueiredo, Ibrahim Abi-Ackel, que ousou impedir a liberação de uma carga de equipamentos supostamente contrabandeados destinados à TV Globo. Durante várias edições, o JN acusou o ministro de envolvimento no contrabando de pedras preciosas, no qual Abi-Ackel não teve, comprovou-se depois, nenhuma participação. Mas pouca gente lembra disso. É provável até que os jovens executivos da Globo “desconheçam” o fato ou, se souberem, contem uma história diferente.

Armando Nogueira estava à frente do jornalismo em todos esses episódios nebulosos que narrei com absoluta fidelidade. De uma maneira ou de outra compactuou com esse tipo de jornalismo corporativo e subserviente.

Talvez tenha faltado em Armando a coragem de assumir sua responsabilidade como diretor de jornalismo da Globo que notoriamente era o braço da ditadura militar na mídia. Sua memória estaria resgatada para sempre se um dia ele tivesse contado toda a verdade, que apenas cumpria ordens que vinham do oitavo andar, mais precisamente da sala do Doutor Roberto. Armando, como eu e todos os que trabalharam na emissora nos anos de chumbo, fomos cúmplices do regime. Uns por total desinteresse político, outros por opção ideológica, outros ainda por necessidade profissional.

Deixo aqui minha homenagem ao Armando Nogueira, poeta, cronista e escritor de texto sensível. E um adjetivo que ainda não ouvi nos inúmeros depoimentos sobre ele: um sedutor irresistível.


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Comentários

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Luiz Clete

CORREÇÃO

Putz….escrevi o nome do Armando Nogueira erra, coloquei Aranaldo…que coisa…o Armando vivia armando no jornal nacional.

Quando Armando Nogueira morreu, a primeira coisa que lembrei foi da edição milimetricamente editado do debate de 89, sendo ele o responsavel pela criação do Jornal Nacional e, como Eliakim disse e todos nosso ja sabiamos, que esse era o porta-voz oficial do regime, não dá para não ser o Armando Nogueira com santo ou inocente. A historia sempre aparece da forma como ela foi feita, não como ela foi contada.

Essa é minha primeira participação no site depois da repaginação, Azenha, parabens, ficou muito bom.

Evaristo

A a mídia, principalmente o Juca Kfouri trataram o Armando como um santo. Quem trabalhou na Rede Globo durante todo o período da ditadura cívico-militar tem culpa no cartório. O Armando Nogueira fez o que fa hoje o willian waack, o wilian bonner e fátima bernardes, alugou o corpo do pescoço para cima. Só importa o que querem os donos da rede e os seus reais mandatários, os estadunidenses. A Rede Globo é um projeto dos Estados Unidos para dominar o Brasil. Os professores na última quarta-feira na paulista obrigaram um carro da Globo a sair do local. Eles estão descontentes com a cobertura da greve que a rede vem fazendo, defendendo José Serra. Dessa forma, acho que o repúdio à Rede Globo pelo povo brasileiro tende a crescer. O jornal SPTV é uma vergonha assim como o JN. São mentirosos e estraram de cabeça na campanha demo-tucana. É ISSO.

Luiz Clete

Quando Arnaldo Nogueira morreu, a primeira coisa que lembrei foi da edição milimetricamente editado do debate de 89, sendo ele o responsavel pela criação do Jornal Nacional e, como Eliakim disse e todos nosso ja sabiamos, que esse era o porta-voz oficial do regime, não dá para não ser o Arnaldo Nogueira com santo ou inocente. A historia sempre aparece da forma como ela foi feita, não como ela foi contada.

Essa é minha primeira participação no site depois da repaginação, Azenha, parabens, ficou muito bom.

Preocupado

Azenha! Ele foi também e continua sendo um grande plagiador que viveu e vive à sombra do Estilo Nelsonrodriguiano e, e por isso mesmo, soube competentemente enganar a todos que o elogia.

Hugo Albuquerque

Um texto de honestidade que há muito não via.

adenilde petrina

Parabéns ao Eliakim Araujo! esse relato digno feito por você dá uma visão histórica desse periodo tão triste da história do Brasil. Gostei muito e mostra o quanto é importante conhecer o passado para não errar no presente e sonhar com futuro bem melhor. O homem sem História e igual a uma bolha de sabão: não tem passado, não celebra o presente e não tem perspectiva de futuro e é incapaz de ter utopia.

Elvio Rocha

Bem, o "testamento" de Armando Nogueira parece, agora, completo. Eliakin deu o desfecho necessário, inclusive tendo a hombridade de não se isentar de culpa. Um grande jornalista, que deixou saudade na televisão, ao lado da esposa. Parabéns por este testemunho, Eliakin.

Rafael, BHte

2) Belo profissional o Eliakin e boa descrição e 'mea culpa' juntos, ele tem toda razão quando diz q o A Nogueira deveria depois de sair da Globo contar a verdadeira história do q lá se passou, esperemos q tenha deixado algo pelo menos para ser publicado após a sua morte quando não terá mais q tda de cara com nenhum dos outros, digamos, 'personagens'…

Rafael, BHte

1) Ah, depois de quase canonizado nesses últimos dias alguém finalmente deu a devida e humana de dimensão do cara! Nogueira era bom no q fazia colocou o jornalismo em outro patamar na tv brasileira, o jornalismo era de fato subutilizado e subvalorizado mas ele tem todos esses pecados aí citados, muitos de nós q o criticamos talvez fizêssemos igualito por necessidade, medo de baixar de padrão de vida e sei lá mais o quê poderia ser motivo. Armando Nogueira se preocupava com a aparência (ou só tinha liberdade para tal), com a forma, o formato, o que fazia (ou dava para fazer) era semelhante ao jornal Estado de Minas de BHte q já fez 'trocentas' reformas gráficas ganhando vários premios etc mas o 'contiudo', ah, o 'contiudo' esse continua a mesmíssima coisa de sempre.

Augusto Gasparoni

Resumindo o que o Eliakim falou:

Responsabilidade social pelo que a TV Globo fazia com a cabeça das pessoas através de suas versões das notícias, ou através de seus editoriais, foi nenhuma não é mesmo?
Lembro-me muito bem das notícias fraudadas da década de 80, contra Brizola, contra o Lula (ainda somente lider sindical), contra o PT e todo movimento sindical brasileiro, ao mesmo tempo que cortejava e enaltecia o movimento sindical do leste europeu (Polonia – Solidarnosc).
Desde aquela época, por volta de 82, abandonei de assistir ao JN, e não me arrependo, portanto, que me perdoem os que gostam de respeitar a memória de quem quer que seja, não posso admirar o passado deste cidadão, tendo em vista sua falta de compromisso, ou mesmo descaso, com a verdade e com o povo brasileiro.

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Fernando

Azenha, qual o trecho do Muito Alem do Cidadao Kane em que aparece o Armando Nogueira falando?

    sergio ribeiro

    Juca Kfouri lhe fez hoje uma homenagem dizendo que "protegeu o quanto pôde os que eram perseguidos". E que "resistiu com doçura, lealdade e solidariedade". Tudo indica que foi um mero cumpridor de ordens. Não anuiu completamente, mas também não o enfrentou o regime. Também não foram muitos que partiram para o confronto.
    Conheço-o mais como o genial cronista, um nobre poeta que deixará muita saudade.
    P.s.: o noticiário de mortes de pessoas conhecidas geralmente não me afeta em nada, mesmo de uma figura tão badalada como Michael Jackson, que nunca admirei. Porém a morte de Armando me comoveu. Que falta faz aos dias de hoje a poesia, o sentimento, o encantamento e a alegria de viver. Que pena.

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