Democracia: E o Golfo estremece de medo

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Democracia: e o Golfo estremece de medo

24/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online

Um espectro ronda o Golfo Persa: a democracia [1].

Nessa 3ª-feira, nada menos que 20% da população do Bahrain reuniu-se na rotatória Lulu (Pérola) em Manama na maior manifestação contra a monarquia feudal, ação intimamente conectada à grande revolta árabe de 2011. Amostra de toda a sociedade bahraini – professores, advogados, engenheiros, suas mulheres e filhos – numa marcha infinita, em volta do monumento, coluna compacta nas cores vermelho e branco, da bandeira nacional.

Na 5ª-feira, havia motivos para crer que a revolta alcançara o santo graal, i.e., a Casa de Saud, quando 100 jovens saíram às ruas de Hafar al-Batin, nordeste da Arábia Saudita, exigindo o fim dessa monarquia feudal encharcada em petróleo. O extraordinário é que tenha acontecido justamente quando o “Guardião das Duas Mesquitas Sagradas”, rei Abdullah da Arábia Saudita, 85 anos, voltava para casa depois de três meses de tratamento médico e cirurgia nos EUA e convalescença no Marrocos – em plena onda de massiva propaganda do regime, completada com toques de orientalismo, como um homem vestido de branco dançando danças tradicionais beduínas sobre tapetes especialíssimos.

Para a Casa de Saud, a revolta é o pesadelo absoluto: como todo o mundo já está sabendo, um Bahrain microscópico, de maioria xiita, mas também microscópica, faz fronteira com a região da Arábia Saudita, de grande maioria xiita, onde está o petróleo.

Mas não surpreende que a revolta tenha eclodido nem bem o rei Abdullah pôs o pé nos seus tapetes, e apesar de toda a ação preventiva para evitar que surgissem espasmos pró-democracia entre as massas, com lançamento de um programa de 35 bilhões de dólares, que inclui um ano de benefícios para jovens desempregados, além da criação de um fundo nacional de desenvolvimento que permitirá que os jovens comprem casa, abram pequenos negócios e casem.

Em teoria, a Arábia Saudita prometeu nada menos que 400 bilhões de dólares em programas, até o final de 2014, para melhorar a educação, a saúde pública e a infraestrutura. Economista-chefe do Banco Saudita Fransi, John Sfakianakis, diz, eufemisticamente, “o rei tenta criar ampla via para o enriquecimento, sob a forma de bem-estar social”.

Como sempre, todos os eufemismos param na política: não se vê sinal algum de qualquer investimento real na direção de atender as aspirações políticas dos súditos – partidos políticos, sindicatos e qualquer tipo de manifestação pública continuam totalmente proibidos. E não se vê qualquer sinal, tampouco, de que o rei esteja preocupado com os enormes problemas sociais – da repressão policial, à intolerância religiosa – exatamente os problemas que o encurralaram e obrigaram a tentar seu gambito multibilionário da “ampla via”.

Adivinhem, então, quem se apresentou para dar as boas vindas ao rei Abdullah e discutir “a crise” – palavra-código para “A Grande Revolta Árabe de 2011”? Acertaram: o monarca feudal sunita vizinho, rei King Hamad al-Khalifa, do Bahrain.

Assassinato soft, com nossa trilha sonora

A narrativa inventada no ocidente, à Disneyworld, de que o rei Hamad seria “reformista progressista”, interessado em “fazer avançar a democracia” e “preservar a estabilidade” foi totalmente detonada quando o exército real realmente mercenário atirou, com munição real, usando armamento antiaéreo, de APCs, contra manifestantes que levavam flores, ou quando helicópteros marca Bell, americana, sobrevoaram e perseguiram pessoas, sem parar de atirar.

Mensagem pelo Twitter, semana passada, vinda da jornalista bahraini Amira al-Husseini, resumiu tudo: “Também amo o Bahrain. Nasci no Bahrain. Meu sangue é bahraini – e vi meu país assassinado hoje, à vista dos próprios filhos.”

A rebelião xiita contra a dinastia al-Khalifa de mais de 200 anos – invasores, vindos do continente –, está em andamento, de fato, há décadas; inclui centenas de prisioneiros políticos em quatro prisões, na cidade e nos arredores da capital Manama, presos e torturados por “conselheiros” jordanianos; e um regime cujo exército é composto, basicamente, de soldados punjabi e baloques paquistaneses.

Demorou um pouco – mas, então, aconteceu aquele telefonema estratégico de Washington, que deu ânimo para que al-Khalifa se decidisse a tratar do assunto da matança com um pouco mais de aplicação.

O relato de como a política externa dos EUA agilmente se adaptou à Grande Revolta Árabe de 2011 oferece algumas lições. Hosni Mubarak expulso do Egito e o rei Hamad do Bahrain são “moderados” e certamente não são “o mal”. Afinal, um foi e o outro é, respectivamente, pilar da “estabilidade”, como se lê em MENA (Middle East-Northern Africa)

[em http://en.wikipedia.org/wiki/2010–2011_Middle_East_and_North_Africa_protests ].

Por outro lado, Muammar Gaddafi da Líbia e Bashar al-Assad da Síria são realmente péssimos, porque não se submetem nunca aos diktats de Washington. A escala moral que determina a resposta dos EUA é diretamente proporcional a o quanto o monarca ditador feudal em questão comporte-se como sátrapa a serviço dos EUA.

Assim se explica a instantânea repulsa (que o Departamento de Estado manifestou anteontem e o presidente Obama só hoje, 5ª-feira) aos ataques de Gaddafi contra seu próprio povo, enquanto a mídia-empresa nos EUA e legiões de analistas de think-tanks disputam entre eles a glória de ter encontrado o adjetivo que mais elaboradamente ensina a crucificar Gaddafi. Ninguém é melhor que essa gente, quando se trata de denunciar ditador que não se encaixa no modelo de lacaio que os EUA prefiram.

Simultaneamente, não se ouviu no MENA nem um pio quando o aparelho de repressão de Hamad – parcialmente importado da Arábia Saudita – matou seus próprios cidadãos na rotatória da Pérola. OK, terrorista reabilitado, Gaddafi sempre foi doido, mas ao Bahrain aplica-se todo um longo mantra, como “aliado próximo” dos EUA; “nação pequena mas estrategicamente valiosa”; lar da 5ª Frota, essencial para garantir que o petróleo continue a fluir pelo Estreito de Hormuz; defesa contra o Irã etc.

Seja como for, mesmo depois do massacre, Sheikh Ali Salman, líder do maior partido de oposição, xiita, o partido al-Wefaq, e também Ebrahim Sharif, líder do partido secular Wa’ad, e Mohammed Mahfood da Sociedade de Ação Islâmica, todos aceitaram encontrar-se com o Príncipe Coroado Salman bin Hamad al-Khalifa, para um diálogo proposto pela monarquia.

Husain Abdullah, diretor de Americans for Democracy and Human Rights no Bahrain, não está convencido: “Não sei se a própria família reinante, eles próprios, merecem alguma confiança para algum diálogo sério, porque, se se assiste à televisão do Bahrain, nada se vê além de ataques sectários contra a multidão que permanece na praça-rotatória Lulu.”

Para Abdullah, o que está de fato acontecendo é que “mais e mais pessoas estão exigindo abertamente o fim do regime, por meios pacíficos, e querem que o Bahrain seja governado pelo povo do Bahrain. Além disso, há conclamação séria de desobediência civil completa (não parcial, como até agora), em todo o país, para expulsar do país a família reinante, como foi feito na Tunísia e no Egito.” Não surpreende que a Casa de Saud esteja em pânico.

O levante dos 70% de xiitas do Bahrain, mais alguns poucos sunitas – o mantra principal do protesto era “Nem xiitas nem sunitas. Todos bahrainis” – começou como movimento de direitos civis. Mas o príncipe coroado melhor fará se concordar rapidamente – ou a coisa ali também se transformará em revolução. Por enquanto, há muita retórica sobre “estabilidade”, “calma”, “segurança”, “coesão nacional”, mas nada de sério sobre reforma eleitoral e constitucional.

Há razões para crer que Salman – aconselhado pelos sauditas – talvez tente uma saída à Mubarak e faça algumas promessas vagas para algum futuro distante. Todos sabemos como a coisa acabou, na praça Tahrir.

Os manifestantes começaram por pedir primeiro-ministro eleito, monarquia constitucional e o fim da discriminação contra os xiitas. Agora, Matar Ibrahim, um dos 18 deputados xiitas do Parlamento, já diz que há um abismo de distância entre os manifestantes da rotatória da Pérola e os deputados da oposição que se reuniram com o Príncipe Coroado. A palavra de ordem que mais se ouve na rotatória da Pérola já é “Fora, Fora Khalifa”.

Milhares de trabalhadores da fábrica gigante de alumínio Alba já deixou claro que um poderoso sindicato e vários movimentos sindicais já apoiam os manifestantes em sua maioria xiitas. O presidente do sindicato de trabalhadores da Alba, Ali Bin Ali – que é sunita, mas isso nada muda – já alertou que há greve organizada para eclodir a qualquer momento.

Queremos nossos direitos sociais

Se houver mudança democrática de regime no Bahrain, os megaperdedores serão a Arábia Saudita e os EUA.

O Bahrain é caso clássico de colusão entre o império das bases dos EUA e uma ditadura/monarquia feudal sem sal. Naturalmente, o chefe do Estado-maior dos EUA favorece a “ordem-e-estabilidade” comandada pela ditadura – e o mesmo aconteceu com o velho poder colonial britânico; os massacres de civis no Bahrain e na Líbia chegam até vocês por especial cortesia da Royal Military Academy Sandhurst e dos sistemas BAE [para saber o que é, veja http://www.baesystems.com/ (NTs)].

O rei Hamad é formado pela Escola Militar de Alto Comando dos EUA (orig. US Army Command and General Staff School) em Fort Leavenworth, Kansas, e “tem papel destacado na direção da política de segurança do Bahrain” – como se leu em telegrama de 2009 publicado por WikiLeaks. Foi ministro da Defesa de 1971 a 1988 e é fã do armamento pesado dos EUA.

O Príncipe Coroado, renomado por sua “abordagem muito ocidental”, por sua vez, estudou na escola que o Departamento de Defesa mantém no Bahrain e graduou-se na American University em Washington. Tradução: dois vassalos cabeça-de-Pentágono, estão hoje encarregados de fazer reformas democráticas no Bahrain.

A Grande Revolta Árabe de 2011, por todas as razões específicas nos diferentes países, não é, não, de modo algum, sobre religião (como Mubarak, Gaddafi e Hamad tentaram fazer parecer que seria). É revolta da classe trabalhadora, diretamente provocada pela crise global do capitalismo.

Choque de civilizações, fim da história, islamofobia e outros conceitos igualmente tolos estão mortos e enterrados. As pessoas querem direitos sociais, querem navegar em águas da democracia política e da democracia social.

Nesse sentido, a rua árabe é hoje a vanguarda do mundo. Se al-Khalifa não entender, será arrancado de lá.

[1] Ecoa, nessa frase, a primeira linha do Manifesto Comunista, Marx e Engels, 1948: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo [em http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf (NTs)].


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Comentários

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Andre

Lula e Amorim deixaram de indicar um brasileiro para indicar um apaziguado de Mubarak:

"O candidato de Lula e Amorim preso por corrupção

Na última eleição para o comando da Unesco, em 2009, o Brasil surpreendeu: preteriu a indicação do brasileiro Márcio Almeida – então diretor-adjunto do órgão – e preferiu apoiar o controvertido ministro da Cultura do governo Mubarak, Farouk Hosni. Lula e Celso Amorim perderam a parada (mais uma): Hosni foi derrotado pela búlgara Irina Bokova. Isso é passado. O que é novidade é que Farouk Hosni está hoje preso, acusado de corrupção."

Por Lauro Jardim

    JotaCe

    Caro André,

    Você acha que o tal Farouk Hosni foi realmente candidato indicado apenas por Lula e Amorim? Abraços,

    JotaCe

ebrantino

Com as luzes do Oriente, voltemos ao Brasil.
O Brasil, hoje, tem petroleo. E tudo indica que esse petroleo, "em boas mãos", isto é, na mão das multi, seria de grande valor aos EUA. Para nós o que indica isso ? PERIGO Á VISTA. Será intensificado o esforço de criar a tal "Oposição Confiavel", Direita Civilizada, Terceira Via, Partido da Alternância do Poder (sic), a migração dos demos para o PSB, pruridos e espasmos na "Ultra Esquerda, Verdes, e outras Veredas DVERSIONISTAS, Voto Distrital, Parlamentarismo, ou qualquer coisa que divida a atual aliança no poder, de características muito moderadas, mas assim mesmo independente do imperialismo e que mantém o controle estratégico do Petroleo e Energia, e administra com reais benefícios ao pais e ao Povo. Na atual situação internacional, SÓ CABEM DOIS PARTIDOS, no Brasil, – a coalizão que está no governo, nacionaizante e popular, e seu oposto – o projeto neo-liberal desnacionalizante, à moda modelo da dependencia, do inominavel FHC. Prestemos atenção – No momento, não há terceira via – Ebrantino

Carlos

A "revolução" fomentada pela senhora Clinton, para os Estados Unidos colocarem o seu pessoal, um em cada país "liberto" pelo povo. Isso é mais grave. Governo-marionete americano, eleito pelo povo, portanto, com legitimidade. Esse é o objetivo dessas rebeliões. Com certeza, brevemente, estará na américa latina. Os alvos agora seriam Venezuela, Bolívia, Equador, Nicaragua(fica pertinho de Honduras) entre outras. E, finalmente, em Cuba. Este é o grande momento de interferir em Cuba. Não há momento melhor. O "grande" lema: Precisamos destituir todos os ditadores e tiranos de todos os países do mundo. Para que o mundo seja "livre".

Frederico Francine

É pessoal! Parece que a Juventude do Oriente Médio vai tomar o seus destinos nas próprias mãos. Aquilo ali tá igual um dominó, vai cair um por um. Não ficará pedra sobre pedra. A Arábia Saudita depois do Kadafi será bola da vez. Não vai dar pra os EuA acudirem todos. Talvez eles acudam somente a Arábia Saudita e ainda por cima terão de fazer muitas concessões.

Antonio Alves

A mídia não informou nada sobre ataques aéreos, exército de mercenários paquistaneses, presos políticos e tortura no Bahrain, país do ditador AMIGO dos EUA, aliado do Obama.
Por conta dessa DITADURA da mídia, que esconde de nós a realidade cruel existente nos países desses ditadores AMIGOS da “democracia” norte americana, ficava parecendo então que presos políticos só havia só em Cuba, país que há mais de quarenta anos sofre com o embargo e as humilhações impostas pelos EUA.
Finalmente, com a chegada da Internet e junto os BLOGS PROGRESSISTAS, estamos derrubando também a DITADURA dessa mídia medíocre.

    JotaCe

    Caro Antonio Alves,

    Realmente, os blogues progressistas têm dado uma enorme contribuição ao desmistificarem a sórdida manipulação da notícia praticada pelo PIG em nome da ‘liberdade de imprensa’. Contudo, é bom lembrar que, vez por outra, alguns desses blogues se comportam quase como a grande mídia. De uma forma geral, o poder de fogo deles ainda é limitado, e pequeno demais pra suportar a reação do PIG infiltrado em todas as áreas do Poder. Tal situação só terá conserto quando os blogues ditos ‘sujos’ se reunirem numa associação que os proteja em suas atividades. Abraços,

    JotaCe

Fernando

Ai ai, as pessoas continuam achando que democracia é ter um sistema eleitoral…

    Luís

    Então quer dzizer que de 1964 a 1985 não teve ditadura no Brasil?

    Ai ai, esses anarquistinhas idiotas (desculpem-me pela redundância).

    Fernando

    Idiota é você.

    E por acaso acha que desde então o Brasil é democrático? Oito anos de FHC era democracia porque você votou nele?

    Vá a Cuba conhecer uma democracia, seu tucano ridículo.

    Marcos C. Campos

    Onde ainda existe uma Monarquia Absolutista Feudal seria um bom começo que houvessem eleições.

Estados Unidos e Israel enfrentam seu pior pesadelo: a democracia árabe! | ESTADO ANARQUISTA

[…] Pepe Escobar, Asia Times Online pelo Viomundo […]

Regina Braga

E naõ é, que no blog do pig,foi notíciado que o EUA manipula a mídia e que vai invadir a Líbia…Lá vai o EUA para mais uma luta humanitária…Como saõ humanistas os americanos? E ai,Patriota!!!???Foi sedutor ser chamado de homem bonito,pela Hillary…Mas,será que tbém é um homem de princípios?

Kleber

Só espero que a revolta não chegue no Qatar, porque se chegar, o governo vai fechar a Al Jazeera…

Marat

O déspota da Arábia Saudita, que se traveste de rei, e somente é "rei" porque é protegido dos EEUU, nos mostra que, para os EEUU e seus parasitas europeus, petróleo e democracia são incompatíveis.

    Marat

    Não, o barbudo ai em questão não é o Jean-Paul Marat. Essa foto eu copiei de um arquivo jpg, por conta de uma questão paralela, e foi inserida às pressas… Aliás, Gustavo, muito obrigado por me fazer pensar em algo que eu nem sonhei: Colocar uma ilustração de Marat, que, pelo que vi na Internet, e em alguns livros, era terrivelmente mais feio que o senhor barbudo ai… Mas, eu vou ver se escaneio alguma ilustraçao dele, ou, quem sabe, de uma guilhotina, e trocarei, assim que tiver um tempo…
    Abraços, e desculpe pela falha lamentável…

    Marat

    rsrsrsrsrs, meu caro, a idade me fez esquecer até de quem é o quadro. Se não me engano é do Van Gogh. Mas eu vou tomar uns Ginkgo Bilobas, para ver se lembro – rsrsrs
    Abraços…

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