Argemiro Ferreira: O fantasma da UDN

Tempo de leitura: 6 min

Revista Carta Capital, 19/09/2010

O fantasma da UDN

De como o PSDB acabou por ocupar, com extrema naturalidade, o papel que em outros tempos coube à direita golpista.

No Brasil, um Alzheimer singular, indiferente à idade, apaga a memória de políticos da oposição e do jornalismo a serviço deles. Em razão do fenômeno, uma geração menos jovem, resistente àquele mal, tenta, nem sempre com sucesso, devolver-lhes a memória recordando lições da história recente – como fez há dias o professor Fábio Wanderley Reis.

O desconforto desse cientista político, estudioso das posições tucanas, ficou claro. Repreendeu a pressa dos partidos de oposição e sua mídia, ao denunciar uma mexicanização no País. Eles veem o PT em duplo papel de vilão: além de ser um novo PRI, ainda persegue o modelo chavista. Lula e o PT são bem menos ambiciosos: optaram por vitórias limpas em duas eleições, governo com 80% de aprovação e o respeito internacional.

Antes o presidente amargou três derrotas na oposição. Não tinha provado o gosto do poder. Mas, em vez de pregar um golpe, retomou a construção partidária com a força crescente dos militantes. Por que o PSDB, que governou em dois mandatos – de 1995 a 2002, graças a eleições vencidas no primeiro turno – está sem condições de recuperar a Presidência pelo voto, mesmo tendo trabalhado no projeto de “20 anos no poder?” E por que, se era parte da esquerda ao nascer, apresenta-se como a direita arrogante que execrava?

A origem da contradição vivida pelos tucanos pode ser o oportunismo da aliança profana em 1994 com o PFL – que já fora Arena e PDS, e agora virou DEM. Por mais que este mude o disfarce, fingindo-se liberal, social, democrático (o codinome atual, irônico, é “Democratas”), nunca deixará de ser o partido da ditadura, a direita escarrada.

Último rebento a se separar do PMDB de Ulysses, o PSDB saiu, como o PT de Lula, do ventre dos “autênticos” – única esquerda tolerada pelo regime, exatamente por ser parte do único partido da oposição legal. Para compensar as dores do parto, os tucanos vieram com plumagem europeia – social-democracia com acadêmicos e intelectuais em vez de sindicatos.

Tinha, sim, havido namoro entre a elite acadêmica politizada – ou, pelo menos, parte dela – e líderes sindicais que a princípio evitaram os partidos e só depois sonharam em criar o deles. Como parte do processo, FHC debateu com eles. Achava não ter chegado o momento de enfraquecer o PMDB, ainda a bandeira maior da oposição. Houve reuniões em São Paulo. Ao fim de uma, em 1978, dirigentes sindicais foram levados por Lula a um comício de FHC, pressionado por ele a se candidatar ao Senado em sublegenda do PMDB. O que o tornaria suplente e, depois, senador – em 1983, quando Franco Montoro, eleito governador, deixou-lhe o mandato restante.

A razão ostensiva de outra reunião, num hotel de São Bernardo, em 1979, foi a discussão ampla – com meia centena de líderes sindicais, uns 70 intelectuais e mais de cem parlamentares – sobre a natureza de um partido dos trabalhadores. Circulou o documento “PT, Saudações”. Mas FHC influiu para a decisão ser adiada: achou estreita a ideia de partido “classista”. Quando afinal o PT foi criado, em 1980 (com reconhecimento oficial no início de 1982), FHC optou por ficar no PMDB, com gente que considerava conservadora, como Montoro – o mesmo que, ironicamente, acabaria por deixar o partido em 1988, juntamente com ele, para fundar o PSDB.

Pelo menos até 1994, FHC parecia considerar-se de esquerda. O New York Times optou pelo rótulo “centro-direitista” (às vezes, “direitista”). Foi corrigido uma vez pela embaixada brasileira, que invocou sua militância anterior na esquerda. No National Press Club, de Washington, ele próprio chegou a citar, com orgulho, o trabalho de jornalista no semanário esquerdista Opinião. Quando FHC e o PSDB assumiram a virada à direita? O plano original pode ter sido outro: ampliar o partido e livrar-se da companhia incômoda do PFL-DEM. O PSDB cresceu, tornou-se o maior no Congresso, mas não o suficiente para dispensar o aliado. Ao contrário, precisou de mais penduricalhos – para aprovar obscenidades como a emenda da reeleição.

Um colunista encantou-se com autoflagelações divertidas de FHC. Como esta, num jantar: “Tenho de sair agora. Não posso me atrasar para a vaia que vou receber amanhã em Recife”. E esta confissão: “O FH que vocês conhecem é melhor que o presidente. O presidente tem cada aliado! Como cidadão sou mais seletivo nas minhas companhias”. Eram mesmo más companhias. Ele e o PSDB fizeram opções. Colados ao PFL, viraram à direita, à sombra da moeda, contaminaram-se. Incapazes de mudar o aliado, foram mudados por ele.

Na eleição de 1998, acusaram Lula e o PT de tramar a desvalorização do real. Uma correção, necessária, acabou adiada por razões eleitorais, o que envenenou o segundo mandato. Em 2002, ficou complicado. Ante o crescimento do rival, com José Serra já candidato, o PSDB abraçou a tática do medo ao começar a especulação contra a moeda. Excedeu-se. Por razões puramente eleitorais, alimentou o fantasma de que Lula seria a catástrofe. Mas ocorreu o inverso: a derrota tucana acalmou os mercados e expôs a leviandade dos governistas.

O partido dos “20 anos no poder” descobriu então duas coisas:

1. Sem o controle do governo não ganha eleição (até com ele pode perder).

2. Aliado ao PFL-DEM, perde a identidade.

A vitória de 1994 tinha sido menos de FHC, substituído por Rubens Ricupero (e depois Ciro Gomes) do que do presidente Itamar, que sem ele lançou e defendeu o real. A Ricupero, por obra e graça da antena parabólica, ficamos devendo a confissão explícita sobre o arsenal tucano de truques sujos: “O que é bom a gente mostra; o que é ruim a gente esconde”. Faltou um grão-tucano confessar (pela antena) mais truques, como a apropriação do real ou as assinaturas de FHC (já candidato e fora do governo) no dinheiro novo.

Restaria ao PSDB, finda a eleição, a busca de nova identidade. Qual seria ela? A vocação governista é sugerida nas três primeiras letras da sigla. O velho PSD ganhava eleição até com derrota de seu candidato – caso de Cristiano Machado em 1950, quando o partido aderiu a Vargas por baixo do pano e enriqueceu o vocabulário político com o verbo “cristianizar”. A presença de Aécio Neves, neto e herdeiro político de ilustre raposa pessedista (Tancredo, último ministro da Justiça de Vargas), reforçaria a tese, não fosse sua habilidade política tão rejeitada no PSDB. Mas a cadeira garantida no Senado e a possível reeleição do sucessor à frente do governo de Minas o deixam com cacife – se é que vale a pena ficar e mudar a imagem do partido.

Capaz de milagres, Tancredo Neves perdeu uma eleição em 1960 para o governo de Minas e no ano seguinte governou o Brasil como “premier” – graças à sua solução para a crise da renúncia de Jânio. No tabuleiro de xadrez dos anos 1980, deixou o PMDB e criou o PP. Voltou atrás depois e viu cair-lhe no colo a eleição indireta, com a derrota das Diretas de Ulysses. O estilo Aécio, oposto a um PSDB udeenizado e golpista, privilegiaria acordo e não confronto. O avô sempre teve a UDN como adversária. Sofreu ao lado de Vargas o assalto final dos golpistas sem votos. A aposta tucana, menos nas urnas do que no golpe apoiado no poder da mídia e na ilusão do tapetão judiciário, pode recomendar rumo diferente a Aécio.

Difamação, preconceito, arrogância e ódio são ameaças a qualquer partido político. A falta de votos alimenta golpismo, denuncismo e escandalização. A UDN das vestais, dos bacharéis e dos intelectuais, antecedeu os tucanos. E antes dela houve os derrotados da República Velha, inventores das cartas falsas de Artur Bernardes em 1922, inspiração da Brandi de Lacerda. O PT enfrentou, em 2006, a denúncia do dossiê, que só na semana passada o STF afinal mandou arquivar – por absoluta falta de provas, apesar de bancado na articulação midiática Globo-Veja-Folha-Estadão para forçar o segundo turno. O repeteco do denuncismo em 2010 vem da mesma mídia tucana, buscando igual efeito.

Sob o impacto da morte de Vargas, a UDN golpista perseguiu JK e Jango até o golpe de 1964. Coube a Afonso Arinos de Melo Franco reconhecer, anos depois, o horror de seu partido às reformas: “Por trás da luta pela legalidade e contra Getúlio, de que fui porta-voz, havia, também, a recusa do partido, militarista e conservador, em aceitar a fatalidade de certas mudanças”. As sucessivas derrotas nas urnas empurram o PSDB para rota semelhante. Uma diferença sutil em relação ao passado é que as vivandeiras que antes frequentavam os quartéis, hoje momentaneamente imunizados pela memória da ditadura militar, passaram a buscar os aquários nas redações. Sempre em nome da “ética”, da revolta de 1922 ao golpismo de 2010.

Uma oficialidade militar jovem, os tenentes, marcou todo o período anterior à Revolução de 1930. Entre eles, Eduardo Gomes, um dos 18 do Forte em 1922, candidato derrotado da UDN à Presidência em 1945 e 1950. Houve causas nobres, mas não a daquela revolta de 22 – mera resposta à “ofensa” de Bernardes ao marechal Hermes – em cartas falsas. Para os tenentes, o fato de presidir o Clube Militar fazia de Hermes, um ex-presidente da República, comandante do Exército. Mas o marechal foi preso e o clube, fechado. Não se sabe de inquietação militar no atual ano eleitoral, mas o clube continua o mesmo. Metralha e-mails raivosos com a palavra de oficiais da reserva nostálgicos da ditadura.

“Talvez se queira udeenizar de vez, tentar chamar os militares”, escreveu Fábio Wanderley Reis, numa provocação ao partido sem identidade, às vésperas de nova derrota. Ele acha “marchas da família” difíceis hoje. Além disso, não se fabricam Vernon Walters como antigamente. Nem Lincoln Gordons. No elenco golpista, ficaram os sem-voto de sempre – e a mídia com o sonho do tapetão.


Argemiro Ferreira – Jornalista, escreve regularmente para o diário Tribuna da Imprensa Rio de Janeiro, desde a década de 1980. Autor dos livros Informação e Dominação, Caça às Bruxas – Macartismo: Uma Tragédia Americana, O Império Contra-Ataca – As guerras de George W. Bush antes e depois do 11 de setembro.


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Comentários

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El Cid

pra quem tiver estômago, o vice do Serra:

[youtube C5uhsjW2iGE http://www.youtube.com/watch?v=C5uhsjW2iGE youtube]

[youtube xx8xM3BioTk http://www.youtube.com/watch?v=xx8xM3BioTk youtube]

Baixada Carioca

Miro é um puta ativista! O camarada me deixou com saudades dos tempos em que o PT era mais efetivo nas ações…

    Conceição Lemes

    Baixada, vc não estaria confundindo o Argemiro (Miro) Borges, do Barão de Itararé, com o Argemiro Ferreira? abs

    Baixada Carioca

    Acho que sim Conceição. Pensei que fosse o do Barão de Itararé. Querendo, pode deletar a mensagem. Mas fiz uma baita confusão sim. Obrigado por me esclarecer.

ValmontRS

O meu palpite é que os tucanos entram em célere processo de extinção a partir deste ano. A maior parte dos seus quadros deverá acompanhar Aécio Neves, sob nova denominação partidária, e o DEM provavelmente mudará de nome mais uma vez, agregando a juventude "neocon", ruralistas e os caciques da extrema direita.
Agora, o capítulo realmente emocionante será o que se refere ao comportamento do partido da velha mídia (PIG, para os íntimos) até o fim do próximo ano. Será que as forças progressistas conseguirão vencer o atraso de tantas décadas do absolutismo midiático?

Por enquanto o PIG está partindo para o "ataque preventivo", na tentativa de demonizar os setores que se lhe opõem. Mas muita água ainda vai rolar até que alcancemos avanços na democratização da comunicação no Brasil.

    Baixada Carioca

    Os próprios tucanos rejeitam a demonização, embora o demônio seja o próprio candidato que mente de tal maneira que não percebe mais o que é real e o que é ilusório. Criei um vídeo para responder aqueles que os tucanos fizeram para espalhar o medo e o terror entre os eleitores. Um minuto de imagens sobre um Jingle de 1989 para mostrar que "o PT é bom de governo!". Eu os convido a assistir no Baixada Carioca.

ValmontRS

Admirável o artigo. Parabéns pelo post, Azenha.
O PSDB nasceu em cima do muro e lá permaneceu até que se associou ao PFL/DEMO e gradualmente assumiu a sua verdadeira identidade como representante da elite empresarial e agrária. Esse partido NUNCA se identificou com qualquer movimento popular, mas apresentava-se com uma máscara de "bonzinho" que, amparada no prestígio de alguns de seus integrantes (Covas, FHC, Montoro, etc.) enganou muita gente por algum tempo.

Hoje o PSDB não faz mais do que revelar definitivamente a sua verdadeira identidade e vocação e é neste mesmo momento que ele se desmantela, como um vampiro atingido pela luz. …

Flavio

Caro Argemiro, cadê voce,teu blog táparado no tempo, o ultimo artigo foi sobre o Samuel Guimarães.

Diga prá nós se voce está escrevendo em algum lugar para termos o prazer de continuar a acompanhar suas excelentes análises da vida política

Marcos C. Campos

O problema é que durante a era FHC se acostumaram com o $$$ farto das privatizações irresponsaveis; e ainda escutamos se dizer que tudo de bom que Lula fez começou com FHC; e querendo continuar a festa, pois a grana veio sem esforço sem trabalho, tentam o caminho mais fácil : golpe.

"Esqueceram de combinar com os russos", no caso o povo brasileiro, que não viu cor da grana na era FHC. E que gostou da politica de crescimento com distribuição de renda da era Lula, prometida desde os tempos dos militares no poder, que queiram ou não, estes, os militares, tiveram o apoio do povão …

Resumindo: grana fácil na era FHC levou à udenização do PSDB.

paulo chacon

As duas pessoas decentes do psdb(minúsculo mesmo) morreram. Montoro e Covas. Só sobrou o lixo.

Ary

Deveremos esperar mais alguns anos para que a morte leve estes senhores e fiquemos mais ou menos livres destes fantasmas.

Rúben Rodríguez

Meu caro, Argemiro Ferreira, um dos maiores jornalistas de todos os tempos. Peço-lhe todas as vênias.
O primeiro governo Lulla, foi apoiado e governado no colo do ACM. Nesse segundo mandato, governa com Sarney, Jader Barbalho, Renam Calheiros, Collor e sucedâneos. No mundo político não têm santos.
As grandes reformas não foram feitas, os bancos ganharam muito nesse governo. Cadê a reforma tributária, política, jurídica, social, educacional, trabalhista, financeira. Reforma agrária? Nem pensar.

Coitado do povo. Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega.

    Carlos Cruz

    Concordo plenamente! O atual governo é conservador, vai tentar se manter no poder sem as reformas necessarias ao desenvolvimento economico e social do pais, e aliando-se com quem for preciso..

    ValmontRS

    Discordo plenamente. :))))
    O carlismo na Bahia, hoje, está totalmente ultrapassado, derrotado e fadado à extinção.
    Talvez Lula tenha decepcionado quem esperava uma revolução armada, mas é fato inconteste que ele produziu mudanças notáveis nos rumos do Brasil. Mudanças que serão muito mais evidenciadas a partir da eleição de Dilma Roussef. (Espero que não tenhamos que retornar à velha e ultrapassada discussão "reformistas x revolucionários".)

Gilson Raslan

Pelo que me consta, Argemiro Ferreira não é daqueles que os DEMOTUCANOS chamam de blogueiros sujos. Sendo assim, ante esse belíssimo artigo, FHC deve estar envergonhado das atitudes UDENOFASCISTAS que seus companheiros e ele próprio estão usando nesta campanha eleitoral.

Ramalho

Como sempre, Argemiro, uma enciclopédia jornalística, enriquece a reflexão, que, neste caso, é sobre o momento político nacional. É sempre bom poder contar com a opinião de Argemiro.

Domngos

As atitudes do PSDB nestas eleições enfraquecerão ainda mais suas raízes no Brasil, ele será um partido sem povo. Caminha do centro para se isolar na direita e terá o voto da elite atrasada que sonha reviver a casa grande bem distante da senzala.

antonio f. siqueira

Aprecio o trabalho do jornalista Argemiro Ferreira. Em virtude, de mudanças em meu computador, perdi o endereço eletrônico dele.
Costumava sempre abrir do blog do Argemiro. Gostaria, se possível, se alguém tiver o endereço eletrônico dele, peço a gentileza de enviar-me.

    Ramalho

    Eis o endereço: http://argemiroferreira.wordpress.com/.

    Infelizmente, Argemiro não tem mais publicado comentários em seu blog. Também eu aprecio muitíssimo as reflexões dele e, igualmente, sinto falta de seus artigos.

    Abço.

    Gilson Raslan

    Atendendo o seu pedido, vai aqui o endereço do blog do Argemiro Ferreira
    http://argemiroferreira.wordpress.com/

Alexandre Figueiredo

Ainda sobre meu comentário, o fantasma udenista assombra o PSDB porque este vive uma reação simbiótica com o DEM. No fundo, compartilham dos mesmos decadentes princípios, e atuam com a mesma fúria reacionária.

Alexandre Figueiredo

Pelo programa político e pelo fato de que seus integrantes são netos dos antigos políticos, o DEM não é mais do que a mais recente encarnação da UDN, um partido que trocou de nome para manter seus princípios, mudando para continuar sempre o mesmo.

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