Aloy Jupiara e Chico Otavio: Em troca de repressão a adversários, ditadura abriu espaço para bicheiros assumirem o Carnaval do Rio
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“Os porões da contravenção”, de Aloy Jupiara e Chico Otavio
Por Cláudia Lamego, no site da editora Record
reprodução parcial
Aloy Jupiara leu num documento que um agente da repressão virara segurança de um bicheiro. Chico Otavio entrevistou o coronel reformado Paulo Malhães e descobriu que ele era um dos mais importantes elos entre a ditadura e a contravenção no Rio de Janeiro.
A partir dessas e de outras informações os dois jornalistas decidiram investigar a fundo as relações entre o jogo do bicho e a repressão. O resultado foi, primeiro, uma série de reportagens sobre o assunto que ora deságua no livro “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado”.
Com uma farta pesquisa em arquivos e jornais da época e entrevistas com militares, sambistas, historiadores e advogados, entre outras fontes, os dois autores revelam na obra como os agentes da ditadura passaram a atuar no crime organizado, em aliança com os bicheiros, após o desmonte do aparelho de repressão a partir do fim dos anos 70.
Esses últimos se beneficiaram da benevolência dos governos militares para garantir segurança, território e organização para seus crimes. A troca de favores era macabra: depois de fazerem desaparecer corpos dos inimigos políticos da ditadura, os agentes da repressão também matavam e torturavam os inimigos ou quem estivesse no caminho dos contraventores.
Sem serem incomodados pela repressão, e atuando em favor dela, por meio dos esquadrões da morte, por exemplo, os bicheiros ganharam poder. Mas faltava a fama e o prestígio: ela veio quando passaram a ocupar um dos mais representativos espaços da cultura carioca: as escolas de samba.
O negócio também se expandiu e eles passaram a explorar as máquinas de caça-níqueis. Três nomes sobressaem nessa história: Anísio Abraão David, capo da Beija-Flor, Castor de Andrade, “dono” da Mocidade Independente, e Capitão Guimarães, este egresso do Exército, que “tomou” a Vila Isabel do então presidente Miro, que se “instalou” depois no Salgueiro.
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Como surgiu a ideia de fazer a série de reportagens que deu origem ao livro “Os porões da contravenção” e quais foram os maiores desafios para verter as matérias para o livro?
Aloy: Partimos de pontos diferentes. A motivação de Chico Otavio veio de contatos com Paulo Malhães, da vontade de desvendar aquele personagem, o que fizeram durante o regime e depois dele, instalado na Baixada Fluminense.
A minha foi movida por outra curiosidade. Lendo um documento vi uma referência a um agente da repressão que virara seguranças de um bicheiro. Falei sobre isso com Chico. Seria um caso isolado? Pensamos então na segunda metade dos anos 70, os anos que viram o desmonte do aparelho repressivo, o começo de uma guerra de poder na contravenção e a ascensão de escolas de samba bancadas por bicheiros, como a Beija-Flor e a Mocidade.
Mergulhamos na investigação – analisamos documentos em arquivos; entrevistamos militares, sambistas, advogados; lemos jornais da época; consultamos historiadores – e constatamos que agentes da repressão, torturadores, foram cooptados pelo jogo do bicho e isso levou a contravenção a um novo patamar, a uma nova forma de organização, a se estabelecer como crime organizado. O maior desafio foi conseguir colher depoimentos daqueles que participaram da aliança bicho-repressão.
Como o trabalho da Comissão Nacional da Verdade facilitou o trabalho de apuração do livro? Acham que ainda há o que ser investigado, arquivos a serem abertos, depoimentos a serem dados?
Chico Otávio: Há muito a ser investigado e esclarecido. A Comissão Nacional da Verdade deve ser vista como o início de um trabalho, não seu fim. Com certeza há arquivos que ainda não revelados e pessoas que se mantêm em silêncio sobre a repressão no regime militar.
O livro mostra não só a associação entre os contraventores e os homens dos porões da ditadura como também deixa clara a impunidade aos chefões, que eram monitorados pelos órgãos de informação e poderiam ter sido reprimidos. A ditadura decidiu fazer vista grossa e, apesar de eles terem sido presos algumas vezes, nunca cumpriram as penas por crimes como os assassinatos dos desafetos e o contrabando. Vocês enxergam nessa omissão a origem de tantos problemas de segurança e violência que a população do Rio enfrenta hoje?
Chico Otávio: Foi um jogo de mão dupla, uma lavava a outra. A ditadura se valeu dos bicheiros, os bicheiros se valeram da ditadura.
Ainda que monitorados pelos órgãos de informação, bicheiros estiveram livres para erguer impérios do jogo a partir de uma guerra nas ruas pela tomada de territórios.
Excluindo a prisão de bicheiros após o AI-5, o regime militar não viu ou não quis ver perigo no bicho, não avaliou a periculosidade dos bicheiros e de sua aliança com agentes da repressão, isso que tornou o jogo a organização criminosa, estruturada como a máfia, que é hoje.
O jogo do bicho e o carnaval são duas “instituições” da cultura carioca. Os bicheiros “tomaram” as escolas e criaram a LIESA numa tentativa de serem aceitos pela sociedade, mas também para terem poder de decisão sobre o dinheiro do carnaval. Como vocês veem a relação da imprensa, dos governos e dos fãs com as escolas de samba que são dirigidas por bicheiros que já foram acusados de crimes e até presos? Como explicar essa contradição entre a tradição do carnaval e a influência negativa dos contraventores?
Aloy: A ideia de que o carnaval não sobrevive sem os bicheiros é um clichê recorrente. As escolas são instituições que nasceram como espaço de convivência, lazer e arte dos sambistas.
Quando o desfile das escolas se popularizou, atraindo a classe média, cresceu e virou espetáculo, os bicheiros se apropriaram de agremiações para ganhar exposição, tentar limpar a imagem e passar a ser vistos como mecenas.
Eles se aproveitaram da falta de recursos dos sambistas, que não tinham como bancar carnavais cada vez mais caros. Os bicheiros tinham capital de giro, o dinheiro da jogatina; com ele, as escolas não precisavam esperar a subvenção pública para começar a fazer as alegorias e fantasias.
O poder nas escolas, claro, mudou de mãos. Sambistas tradicionais, como as Velhas Guardas, foram afastadas da tomada das decisões. Antes, eles falavam, ouviam e decidiam. Quem passou a decidir foi o banqueiro do bicho.
Como o carnaval é uma disputa e os sambistas querem que suas escolas sejam campeãs, aceitaram o jogo. Conversando com sambistas mais velhos a gente vê como essa situação é triste: muitos não se sentem valorizados, se consideram colocados de lado; há quem conte que foi barrado ao entrar nas quadras porque os seguranças não sabiam quem eram (muitas vezes esses sambistas são filhos ou netos de fundadores das escolas). Mas há o medo: como se opor a um bicheiro?
Como enfrentar alguém que vive cercado por seguranças, muitos deles policiais? Atualmente, quando tantas empresas investem milhões em patrocínios de enredos, quando o poder público reconhece que as escolas ajudam a mover a economia da cidade, os sambistas não podem gerir e tomar as decisões nas escolas que seus avós e pais criaram porque a contravenção ergueu um muro em torno de um “negócio” que considera seu.
O livro “Os porões da contravenção” surgiu de uma série de reportagens para o jornal O Globo. Num ano de crise nos meios de produção do jornalismo, especialmente dos jornais impressos, o que significa pra vocês a realização de um livro que junta os ingredientes clássicos do jornalismo: uma boa pista, muitas fontes, extensa apuração e um texto bem escrito?
Chico Otavio: A palavra e o sentimento são de realização mesmo. Esperamos que os leitores gostem. Queríamos contar uma história que ainda não tinha sido contada. Contar histórias é o nosso trabalho diário.
A crise no meio jornal não é uma crise da notícia, mas do meio, do modelo de negócio. As pessoas querem, cada vez mais, estar bem informadas, e há diferentes plataformas onde elas podem buscar a informação. Isso nos motivou. Nós acreditamos na força da reportagem.
PS do Viomundo: No livro O Lado Sujo do Futebol, escrito em parceria com Leandro Cipoloni, Amaury Ribeiro Jr. e Tony Chastinet, tratamos da relação entre o então presidente da CBF, João Havelange, o bicheiro Castor de Andrade e o então superpoderoso da Globo, Boni. Além do Carnaval, os bicheiros também lavaram dinheiro no futebol. O repórter André Caramante comprou e leu o livro dos colegas Jupiara e Chico Otávio e diz que é um daqueles que você começa a ler e não consegue parar.
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