Dalva Garcia: Desfile “fashion curricular” do novo ensino médio promete arrasar…a Educação

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Por Dalva Garcia

Escolher itinerários de viagem com a mala repleta de maquiagem

Por Dalva Garcia*

Como muitos sou fruto de uma escola tecnicista.

O ensino técnico instituído pela lei 5692/71 aparecia naqueles anos de chumbo como o único caminho, não muito suave, para os filhos dos trabalhadores.

Sair da escola como um profissional sem esperar a vaga do SENAI parecia um sonho, assim como poder escolher o que estudar.

Técnico em edificações para alimentar as construções de um Brasil para frente com bola no pé, ou ainda técnico de laboratório de análises clínicas para salvar as criancinhas com lombriga que quadruplicavam nas periferias das cidades eram as opções que me ofereciam.

Saber usar a régua T que nos fazia rir por razões óbvias ou, ainda arrumar vidrinhos de laboratório era o que o antigo colegial me oferecia.

A Faculdade era sonho distante e a Universidade, espaço para os poucos doutos.

Os doutos eram vistos como filhos dos doutores: médicos, engenheiros de produção das multinacionais ou advogados. Eu não sabia que escritores podiam chegar a ser doutores e, muitos menos, filósofos ou sociólogos.

Aliás, o termo Logos era tão esquisito como essa gente, pelo menos para mim e minha gente (metalúrgicos, sapateiros, marceneiros, mecânicos de oficina automotiva, costureiras e lavadeiras)

Me via caindo com os papéis e réguas ou estilhaçando os vidrinhos e lentes do laboratório e coisas afins. Era estabanada demais.

Escolhi o magistério técnico com poucas matrículas efetuadas. Mas o curso saiu com turmas misturadas de alunas do segundo e quarto ano. Era uma coisa para ser professora de criancinha.

Achava que era mais difícil derrubar as crianças do que o compunha os demais pacotes de estudo oferecidos na minha escola.

Havia também uma suave vantagem no curso técnico de magistério: as crianças eram material mais comum, diferente de um microscópio que era disputado à tapa por poucos professores.

Lidar com as crianças era mais barato do que obter compassos e esquadros que deveriam ser comprados pelo aluno como a caneta e o papel vegetal para os projetos que nunca sairiam do papel.

Não soube de nenhum engenheiro ou arquiteto que saiu desse “antigo colegial técnico”. Conheci raríssimos pesquisadores das ciências biológicas ou humanas que não devem nada em sua jornada de estudos a esse ensino técnico que resultou em um grande fracasso.

Ninguém encontrou o tesouro depois de ter acompanhado a cartilha “Caminho Suave”.

Aliás, em época de ufanismo não me lembro das letras W ou Y no alfabeto dessa cartilha de alfabetização nos primeiros anos de ouro da militarização. A introdução da cartilha de alfabetização prometia ser a trilha secreta para o encontro de um verdadeiro tesouro: o conhecimento.

Agora, em outro século, a promessa do antigo ensino técnico e da formação para o trabalho volta às escolas.

Curiosamente acompanhado pelo retorno do nacionalismo ufanista e com um estranho saudosismo da ditadura, do civismo e do milagre econômico da década de 70.

As agruras e as consequências do “milagre” foram devidamente esquecidas ou ocultadas. A inflação galopante, o desemprego em massa e os sucessivos golpes contra a democracia da década de 80 foram rearranjados em discursos saudosistas absurdos.

Mortos e desaparecidos são mortos e desaparecidos dizem uns. Afinal, os cemitérios sequer dão conta de uma gripezinha que não deveria atingir o corpo intacto de “militarizados da nova democracia” clamada pela população dado o avanço da extrema direita.

A “nova democracia” , contraditoriamente liberal e conservadora ao mesmo tempo, pede um “novo ensino médio”, mas não se esqueceu de retomar a antiga promessa de formação para o mercado de trabalho.

Não se trata mais de escolher entre humanas (estrangulada no antigo magistério técnico), exatas ou biológicas.

Foi necessário rearrumar o quadro do conhecimento em Códigos e Linguagens, Ciências da Natureza e Matemática, todas as áreas com suas respectivas tecnologias.

A matemática deixou uma linguagem de segurança às demais ciências da natureza como era no século XVII.

Agora está reduzida aos itinerários de caráter financista como os nomeados pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) : “quem divide também múltipla” ou “ Star, a hora do desafio” cuja promessa para adolescentes é de avançar nas etapas de jogos digitais e saber viralizar informações com cálculo.

O itinerário de ciências da natureza – ainda tal qual proposto pela Seduc-SP – está estreitamente vinculado aos interesses empresariais tomado pelo discurso da “sustentabilidade” e suas cartas de intenções efetivamente restritas ao empreendedor responsável pela diversidade de negócios; não necessariamente responsável pela morte lenta e gradual do planeta.

A proposta oficial de SP chega a prometer aos adolescentes, em um esforço interdisciplinar de professores, os conhecimentos necessários na prática de construção de casas sustentáveis em uma capital de desabrigados e moradores de rua que ultrapassa 40.000 pessoas.

Mas cabe na “nova democracia” do “Novo ensino Médio” um lugar para as ciências humanas e sociais vinculadas às suas tecnologias: cidadania e liderança com cidades sustentáveis, paz e, evidentemente, um tópico para as Instituições eficazes.

Por último, a proposta de Códigos e linguagens que insinua que estar na mídia é estar no mundo e promete ao aluno as habilidades necessárias à invenção de estratégias de convencimento e persuasão próprias da publicidade.

A configuração de itinerários compostos oferece quase um passeio pelo zodíaco através de 12 itinerários a serem eleitos pelo jovem, incluindo um ensino técnico sem carga horária suficiente para o aluno ter um certificado.

Tudo o que é necessário para INOVAR, desde que o aluno saiba configurar seu “projeto de vida”, entenda o alfabeto tecnológico “digital” e eleja uma disciplina oferecida pelos professores capaz de disputar um leilão nas unidades escolares.

É o projeto Inova oferecido pelo terceiro setor: Fundação Bradesco e Fundação Airton Senna que assessoram a Secretária de Educação.

Em suma, projeto de vida, tecnologias e disciplina eletiva compõem também os itens da farta bagagem para essa viagem fascinante e sem rumo certo, uma vez que não prepara para a continuidade de estudos universitários e nem prepara para qualquer ofício.

Em suma, não falta rímel, várias tonalidades de gloss, base de diferentes texturas que exigem certa necessidade de aprofundamento dos itinerários e, claro: muito glitter…

Enfim, um currículo publicitário que faz com que alunos do ensino médio em Conselho de Escola questionem quando os professores de química, física, filosofia, matemática, literatura os ensinarão a fazer bons investimentos e a realizar o projeto de vida de enriquecer, não é para qualquer especialista em educação. Quiçá para os economistas habituados à consultoria no mercado financeiro.

Um passeio de 3 anos que chega a compor 21 disciplinas na grade escolar de um jovem.

Há nesta pesada bagagem uma multiplicidade de delineadores sem traço, sem escrita, sem leitura, sem sustentáculo para qualquer estudo.

Mas, em compensação, não falta o alfabeto com muitos y , w . Rush dividido em turnos de 7 a 8 aulas diárias. E aulas em outro horário para a expansão curricular.

Um plus no passeio do nada para lugar algum, uma pesada bagagem sem as calcinhas, cuecas ou meias para aquecer os pés.

O resto pode ser escolhido no desfile “fashion curricular” que promete arrasar… Arrasar o terreno da educação já minado desde a 5692/71.

*Dalva Garcia é professora de filosofia da rede pública de São Paulo.

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Dalva Garcia

Professora de filosofia da rede pública de São Paulo.


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