A dura rotina das trabalhadoras da morte

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Pouquíssimas mulheres trabalham no setor. Foto Alex Pazuello/Secom

Como estão as trabalhadoras da morte durante a pandemia de Covid-19

Minoria no setor, mulheres foram contratadas como sepultadoras pela primeira vez no Brasil em 2012, por meio de concurso público. Com o novo coronavírus, as poucas profissionais que ainda ocupavam essa função nos cemitérios foram transferidas para o setor administrativo — mas não deixam de ter medo e tristeza por causa da crise sanitária, tão explícita no meio em que atuam

Manuela Azenha, na Marie Claire

Patrícia* sentia-se livre enquanto caminhava pelo cemitério. O contato com a natureza e os momentos de introspecção compensavam o desgaste físico que beirava o limite. Ela “amava ser coveira”.

A familiaridade com a morte vem desde criança, quando mudou-se com os pais para a cozinha de uma igreja da periferia de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.

“Parece uma coisa louca dizer que gosto disso, né? Mas meus pais foram caseiros de igreja quando eu tinha 8 anos. Fiquei até os 15 anos morando lá, onde aconteciam muitos velórios”, conta.

Mulheres foram contratadas como sepultadoras pela primeira vez no Brasil em 2012, por meio de concurso público.

Com o começo da pandemia de Covid-19, as poucas profissionais que ainda ocupavam essa função nos cemitérios foram transferidas para o setor administrativo.

Patrícia trabalha em um cemitério público de São Paulo, cidade com o maior número de mortos por Covid-19 no país, e conta que os sepultamentos dobraram com o alastramento do novo coronavírus.

“Chega a dar um nó na garganta. Se eu me emocionar, me perdoa. É um clima de tristeza, depressão”, diz.

“Todo dia chegamos no trabalho com medo de imaginar um colega infectado, mesmo com todos os equipamentos de proteção. Depois temos medo de entrar em casa porque tivemos acesso a pessoas que faleceram da doença. Tenho pessoas do grupo de risco em casa. E você precisa chegar em casas forte, com um sorriso e dizer que vai dar tudo certo se todo mundo ficar em casa protegido, mesmo sem saber se realmente dará certo”, conta Patrícia.

Caso o número de enterros supere os 400 por dia na cidade de São Paulo, as famílias não poderão mais escolher os locais de sepultamento, exceto se tiver jazigo privado ou túmulo sob concessão da Prefeitura.

A medida faz parte do plano de contingenciamento anunciado pelo prefeito, Bruno Covas (PSDB). Apenas três cemitérios da cidade serão utilizados: Vila Formosa (zona leste), São Luiz (zona sul) e Vila Nova Cachoeirinha (zona norte).

A doença está fazendo cada vez mais vítimas. Em abril, 2.375 pessoas morreram de Covid-19 no estado de São Paulo, um aumento de mais de 14 vezes em relação ao primeiro dia do mês.

Na capital, o número cresceu dez vezes, de 114 para 1.522 vítimas da doença. E o de enterros cresceu 18%.

O decreto de Covas ainda liberou sepultamentos durante à noite e madrugada.

Em Manaus o sistema funerário entrou em colapso. Segundo o Sindicato das empresas funerárias do Estado do Amazonas, o estoque de caixões dura mais alguns poucos dias e já há fila de enterros por falta de força de trabalho.

Danyelle Soares, coordenadora dos cemitérios municipais de Manaus há 12 anos, diz que nunca imaginou um cenário parecido com o que vivem agora.

O trabalho, segundo ela, tem sido exaustivo e assustador.

Se antes a média diária era de 20 sepultamentos, agora saltou para 80. Danyelle ainda relata que houve dias em que o número chegou a 142.

“Todos nós sentimos medo. A doença é pouco conhecida e atinge cada um de um jeito. Essa incerteza mexe muito com o nosso emocional. A pressão é grande e o trabalho aumentou muito. Nosso expediente se estende noite adentro.”

De acordo com o Sindsep (Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo), dois profissionais do serviço funerário morreram até agora em decorrência ou suspeita de COVID-19 e cerca de 32 estão afastados.

Os serviços funerários tiveram a duração e os participantes reduzidos para conter a transmissão do coronavírus. O pai de Patrícia, personagem que abre este texto, era pastor nas horas vagas, entregador de marmita de manhã e motorista de aplicativo à tarde. Ele morreu pouco depois da norma ser aplicada no serviço público.

“Levou um tiro num assalto. Quando me ligaram para contar, não acreditei. No hospital pelo menos pude pegar na mão dele para me despedir, dar um cheiro no pescoço dele”, lembra.

“Já estava circulando uma norma que não teria velório de mais de duas horas e com mais de 10 pessoas. Entrei em desespero. Consegui um lugar particular que permitisse o velório a noite inteira. O corpo dele foi higienizado para podermos fazer com o caixão aberto. Fico pensando como é para uma família que não consegue isso. Que difícil não poder velar o seu familiar, não poder se despedir, o caixão fechado. É muito triste isso”, continua.

Quando começou na profissão, Patricia sofreu para ser aceita pelos colegas homens.

No cemitério onde foi aprovada, havia apenas uma outra mulher sepultadora, que desistiu no primeiro dia.

“Eles jogavam baratas e carcaças de rato em mim. Me mandavam executar serviços muito duros com a intenção de me fazer desistir. Mas sempre fui batalhadora, nunca desisti. Sofri preconceito de colegas mulheres também, me diziam que eu não ia conseguir. Nós mulheres temos um diferencial, uma sensibilidade que muitas vezes traz conforto para as famílias no momento de despedida. Nosso salário não é grandioso para ajudar os outros financeiramente, mas podemos dar o nosso melhor e isso é importante”, diz.

Na época vendedora de bilhetes na Rodoviária do Tietê, Patrícia se interessou pela profissão ao presenciar a exumação do cunhado. O marido não teve coragem, mas ela foi e ficou admirada.

Mais tarde Patricia trabalharia em sua primeira exumação — experiência que nunca esqueceu.

“Tive um chefe muito bom. Durante a exumação, fazia questão de colocar cada ossinho dentro do saquinho. Às vezes osso se mistura com a terra e é difícil de achar quando você não tem tanta experiência, mas ele dizia: ‘Você gostaria de chegar do outro lado sem um dedo? Tem que fazer tudo bem feito, procurar todos os ossos, com todo respeito'”.

Sandra*, também funcionária do Serviço Funerário do Município de São Paulo, reclama das condições insalubres de quando era sepultadora, em 2012.

Diz que faltava um local apropriado para fazer refeições, banheiro e EPI (equipamentos de proteção individual), como uniformes, botas, máscaras e luvas. Durante um período trabalhou de calça legging e tênis.

Segundo ela, as mulheres normalmente exerciam outras tarefas além de abrir covas e sepultar: “Por não saberem exatamente como fariam com a nova experiência de terem mulheres nesse cargo, fazíamos outras coisas. Plantei flores, varri o chão, lavei túmulos, carreguei caixões, sepultei e perfumei os cemitérios por onde passei”.

Formada em Letras e Recursos Humanos, ela prestou o concurso, passou e aceitou “no susto”.

“Só me certifiquei das minhas atribuições quando me deparei no cemitério. Depois fluiu com a resiliência, persistência e o amor a tudo que faço.Vesti a camisa com brilho no olhar, sorrindo e maquiada. Foi gratificante servir num momento melancólico e ser útil verdadeiramente. Há pessoas que têm medo, nojo e algumas até pensam que nunca irão precisar do Serviço Funerário, mas trabalhar com a morte é uma experiência excepcional e devemos ter orgulho de sermos servidores da última passagem nossa nessa existência”, diz.

Hoje no setor administrativo, Sandra foi liberada para trabalhar de casa há aproximadamente duas semanas.

A agente funerária Vanessa Lima, da funerária Campos, em Taboão da Serra, região metropolitana de São Paulo, diz que todos no ramo trabalham com medo de contrair a doença e infectar familiares em casa.

“Quando saímos para atender caso de Covid, pegamos máscara, macacão de TNT descartável, quatro toucas para colocar nos pés, touca na cabeça e três pares de luva. Meus pais são mais velhos e estão no grupo de risco, então para entrar em casa é uma cerimônia. Chego pela garagem e minha mãe já deixa para fora um pano com água sanitária e sabão para eu limpar o sapato. Na lavanderia eu tiro toda minha roupa, já coloco para lavar e tomo banho. Quando entro em casa mantenho uma distância de pelo menos um metro deles”.

Vanessa é responsável por fazer o registro de óbito, liberar o corpo no hospital e transportá-lo para a funerária. Em casos de óbito por Covid-19, o caixão é lacrado e o corpo é enrolado em um lençol dentro de dois sacos plásticos.

“É uma área pouco reconhecida, não ganhamos bem, mas fazemos com amor. É gratificante poder proporcionar para a família um adeus digno e só quem pode fazer isso é a gente. Estou na profissão porque sou apaixonada por essa área”, diz Vanessa.

Para Carla*, técnica em Tanatopraxia e Embalsamamento (conservação e higienização do cadáver), o ritmo de trabalho diminuiu já que os velórios foram reduzidos e até eliminados em casos de suspeita ou confirmação de Covid-19 que configuram a maior parte das ocorrências. Após o preparo do corpo, ela faz necromaquiagem, reconstrução facial e ornamentação do caixão.

“Tentamos fazer o trabalho mais perfeito possível para o último adeus. Quando chega é triste, mas melhoramos a aparência dos falecidos e as famílias ficam tão agradecidas. É cansativo, complicado, mas também maravilhoso. Não sei fazer nada além disso. Me encontrei nessa profissão”, diz Carla.

A técnica conta que na clínica particular de Guarulhos onde trabalha reforçaram os equipamentos de proteção, já utilizados mesmo antes da pandemia. Vestem viseira, máscara, bota, dois aventais, luvas, óculos, touca e mangote que cobre do pulso até o bíceps.

“O pessoal fala muito de quem está na linha de frente no combate à doença, mas é a primeira vez que alguém me pergunta do serviço e lembra da área do setor funerário. Médico e enfermeiro têm um papel incomparável, mas também estamos expostos e o medo é muito grande”, termina Vanessa.

*As personagens pediram para ter suas identidades protegidas


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Zé Maria

Menos da Metade da População Brasileira
em idade para trabalhar está ocupada

Em três meses 7,8 milhões de pessoas
saíram do mercado de trabalho no Brasil

São 87,6 Milhões de Pessoas Sem Trabalho Algum
e 85,9 Milhões (49,5%) com algum tipo de Ocupação,
Recuo de 8,3% no trimestre móvel até maio de 2020,
conforme dados da PNAD Contínua do IBGE

São os piores números da série histórica da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua,
do IBGE, que teve início em 2012.

| Reportagem: Marina Barbosa | Correio Braziliense | 30/6/2020 |

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2020/06/30/internas_economia,868056/menos-da-metade-de-brasileiros-em-idade-de-trabalhar-esta-ocupado-ibge.shtml

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