
Folha descreveu repórter presa: “Terrorista”
Publicado em 2009, revisado para acréscimos em setembro de 2016
A jornalista Rose Nogueira doou sua ficha funcional da Folha da Tarde à Comissão da Verdade que investigou ações da ditadura militar.
Era um diário vespertino, já extinto, que a família Frias emprestou à ditadura para fazer propaganda do regime e divulgar falsas notícias de “confrontos” com adversários do golpe.
Era uma forma de encobrir, junto à opinião pública, os desaparecimentos ou fuzilamentos de “terroristas”.
A família Frias apoiou o golpe, tirou proveito econômico dele e emprestou a FT à ditadura.
Segundo militantes de esquerda da época, também cedeu veículos de distribuição de jornais para campanas da polícia política, além de participar da caixinha que financiou a repressão.
No depoimento abaixo, Rose descreve uma ação particularmente cruel: o jornal da família Frias a demitiu por “abandono” de emprego — notem que está escrito à caneta na ficha — apesar de saber que ela estava presa e sob tortura psicológica logo depois do nascimento do filho.
A jornalista supõe que seria uma forma de proteger a empresa, se ela por acaso desaparecesse nos porões do regime — o que aconteceu com cerca de 200 pessoas.
Rose ficou sob a guarda de um dos maiores carrascos do regime, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS.
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Fizemos a transcrição do trecho inicial da fala, com lacunas por causa da qualidade do áudio.
Recomendamos, portanto, que se ouça a íntegra:
Essa aqui é a minha ficha funcional da Folha de S. Paulo. Eu era repórter em 1969, entrei no dia primeiro de agosto de 68, fui presa no 4 de novembro. Eu era funcionária da Folha da Tarde.
O meu filho nasceu em 30 de setembro, portanto ele tinha 34 dias quando eu fui presa. Estava de licença maternidade, que até a ditadura respeitava, era de 90 dias na época.
A Folha da Tarde noticiou minha prisão por terrorismo. Estava lá todos os dias escrevendo sobre teatro, cinema, era repórter de cultura e variedade.
Mas, para poder fazer essa gracinha aqui, de me dar abandono de emprego, que eu só fui saber 20 anos depois, a Folha fez o seguinte: falseou a data do nascimento do meu filho.
Meu filho nasceu em 30 de setembro de 1969, no Hospital 9 de Julho, na rua Peixoto Gomide.
Eu fiquei internada 24 dias porque tive grande movimento de bexiga no parto.
Eu trabalhei até um dia antes dele nascer. E aqui a Folha escreve que meu filho nasceu em 9 de agosto.
Meu filho nasceu em 30 de setembro. Para que [o falseamento]? Para me dar o abandono de emprego no começo de dezembro.
Eu fui presa pelo DOPS, pelo delegado Fleury. Havia passado mais ou menos um mês da minha prisão quando eu comecei a ser mais apertada, porque eles queriam saber do frei Beto.
Foi quando apanhei, era uma sala escura, com luz forte. O tal “abandono” da Folha coincidiu com esses dias do começo de dezembro.
Eu comecei a passar mal. Eu tinha leite, sangrava, não existia absorvente, imaginem vocês que tiveram filhos, um mês depois do nascimento você ficar sem absorvente…
Nesse período, um dia eu estava com uma febre muito alta. Mandaram os médicos para me olhar.
Eu lembro que o sobrenome dele era Padilha e ele mandou dar uma injeção para cortar o leite.
A data desses episódios coincide com a data do “abandono” de emprego [que consta na ficha] da Folha.
Quando eu fui buscar a ficha da Folha para tentar me aposentar, eu passei mais de um mês deprimida.
Eu me lembro que falei para minha mãe e nós ficamos muito tristes.
Isso confirma que o que o [delegado] Fleury estava falando era uma ameaça real.
Ou seja, eu era uma candidata a desaparecimento porque eu não tinha saúde, não conseguia falar, devia pesar uns 40 quilos, era muito magra.
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