Uma leitura distinta dos resultados do primeiro turno

Tempo de leitura: 4 min

Voto em Marina não é ecológico, mas também não evangélico

Antonio Luiz M. C. Costa, na CartaCapital, em 5 de outubro de 2010 às 19:04h

A religião e a legalização do aborto se tornaram os grandes temas nacionais, capazes de decidir os rumos da eleição presidencial, conforme parecem defender alguns comentaristas? Parece-nos antes que isso é um mal-entendido, que se for levado a sério pode distorcer terrivelmente os rumos de campanhas e de programas políticos. Considere-se, para começar, a distribuição geográfica, por atacado, dos votos em Marina.

Como se sabe, os votos de Dilma, assim como os votos de Lula em 2006, concentram-se em um arco leste-norte, que vai do Espírito Santo e norte de Minas ao Amazonas, com centro de gravidade no Nordeste. Os votos de Serra, assim como os votos em Alckmin de 2006, concentram-se em um eixo que sai do Sul, tem o centro de gravidade em São Paulo e se estende ao Mato Grosso, com alguns enclaves nas fronteiras nortistas do agronegócio (interior do Pará, Acre, Roraima). A maior diferença em relação ao quadro do primeiro turno de há quatro anos é que o Rio Grande do Sul, em boa parte, “avermelhou”.

O voto da Marina, tido como “verde” – mas só em um sentido convencional, já que só secundariamente tem algo a ver com ambientalismo e menos ainda com a pequena votação do Partido Verde a cargos no legislativo – concentra-se principalmente na fronteira entre as regiões “vermelha” e “azul”: no Sudeste e Centro-Oeste – Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, Tocantins – embora também sejam significativas, e muito importantes em termos absolutos, as votações em São Paulo, Paraná e nas metrópoles do Nordeste, nos “corações” políticos dos adversários.

Em grandes números, 25% da votação de Marina veio de São Paulo, 28% dos outros estados do Sudeste, 21% do Nordeste, 11% do Sul (principalmente Paraná), 8% do Centro-Oeste e 7% no Norte – muito pouco, por sinal, de seu estado natal, o Acre. Suas votações mais fracas foram as dos estados mais pobres do Nordeste, Maranhão, Piauí e Alagoas (também Sergipe, exceção nesse aspecto) e dos estados politicamente mais polarizados ou com intensas disputas de terras – Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso, Rondônia, Pará – onde há menos espaço para conciliação e “terceira via”.

Só por isso, já é de se pensar que Marina ocupa de fato o espaço que reivindicou ao longo da campanha: de um progressismo moderado, uma terceira via “centrista” entre o PT e o PSDB. Impreciso, com certeza, mas igualmente são imprecisas as ideias políticas de uma parcela importante do eleitorado, chamada “nova classe média”, a classe C ascendente.

É uma camada principalmente urbana, que progrediu em relação aos pais pobres e mal educados, tem certa educação, até superior, está decentemente empregada e precisa cada vez menos de programas sociais como o Bolsa-Família, do SUS ou de novos projetos de saúde e saneamento. Ao mesmo tempo, é mestiça, não está à vontade com a “alta cultura”, tem gostos populares e se sabe desprezada pela elite tradicional. Não se identifica totalmente com as prioridades da esquerda – redução da desigualdade e crescimento econômico – mas também não com as da direita – conservação de privilégios disfarçados em competência e meritocracia. Busca um meio-termo que, assim como Marina, não sabe definir com precisão e chama de “mudança”.

É uma camada que se identifica mais com a história pessoal de Marina, uma ex-empregada doméstica alfabetizada pelo Mobral que “subiu na vida”, fez curso superior e uma carreira política pacífica e respeitada, do que com a carreira de um integrante convencional da elite política como Serra ou com o passado combativo de uma ex-guerrilheira como Dilma. Que tem um vago receio do “comunismo” e do MST e se esforça por se diferenciar das “massas” pobres e turbulentas e hesita em dar um cheque em branco a Dilma e ao PT. Não é a parcela da opinião pública mais conservadora, nem a que tem seu voto definido pelo padre, pelo pastor ou pela questão do aborto. Estes provavelmente votaram em Serra.

Esta interpretação se reforça quando se desce ao detalhe dos votos por município. Recife, capital do estado natal de Lula, não tem uma proporção excepcional de evangélicos pelos padrões brasileiros: apenas 17,6%. Mas 37% dos recifenses votaram em Marina (42% em Dilma, 19% em Serra). Já o município pernambucano de Abreu e Lima, o mais evangélico do estado (31,2%) teve 27% de votos em Marina, 52% em Dilma e 15% em Serra.

No Rio de Janeiro, Marina teve 29% em um município de alta concentração de evangélicos (30%) como Belford Roxo, 32% na capital (17,7% evangélica) e 37% em Niterói (15,3% evangélica), enquanto Dilma teve 57%, 43% e 35%, respectivamente, nesses municípios (e Serra 12%, 22% e 25%).

A abstenção acima do esperado explica alguma coisa? Não. Se alguém achou surpreendente que a soma de ausências, votos nulos e brancos no Nordeste tenha chegado a 29,34%, devia pensar de novo, pois no primeiro turno de 2006 foi 27,01%. Esses 2,33% de diferença – mesmo que fossem todos votos em Dilma, o que é muito improvável – não explicam por que a votação nela ficou algo abaixo de 60% nos principais estados, em vez dos mais de dois terços que se chegou a esperar. No conjunto do país, o não comparecimento às urnas foi 16,75% em 2006 e 18,12% em 2010: um aumento de apenas 1,37%.

Pode ser, porém, que os institutos de pesquisa tenham deixado de levar em conta as diferenças históricas de comparecimento entre as regiões ao ponderar as médias nacionais das intenções de voto e com isso tenham superestimado a votação em Dilma. Se fizeram isso, poderiam ter evitado o erro. Nos EUA, como em muitos outros países, as pesquisas sempre indagam ao eleitor se ele pretende votar. O fato de o voto ser teoricamente obrigatório no Brasil não justifica negligenciar o fator abstenção.

O mais importante, porém, é que candidatos, partidos e analistas percebem que a decisão do segundo turno não depende de propaganda religiosa ou anti-religiosa, de se ser contra ou a favor da legalização do aborto, mas de convencer um eleitorado centrista e flutuante, desconfiado tanto da esquerda quanto da direita, de que seus interesses práticos e racionais estão mais de um lado que de outro. É muito mais fácil para Dilma do que para Serra – até porque a vitória de Dilma depende de conquistar apenas 16% do voto em Marina, mesmo sem contar os 1% de Plínio que, no segundo turno, poderão votar nulo ou em Dilma, mas jamais em Serra. Mas superestimar a importância do voto religioso e conservador só vai atrapalhar.

Antonio Luiz M.C.Costa é editor de internacional de CartaCapital e também escreve sobre ciência e ficção científica.


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Comentários

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mariazinha

Para os demotucanoides é interessante mudar o foco pois eles não possem nenhum gabarito para governarem e não podem apresentar nada; isto, não acontece com D. DILMA que possui inúmeras realizações e poderá mostra-las amplamaente.
É necessário mudar o foco da campanha, COMO???????

luiz pinheiro

Uma reflexão bastante lógica do Luiz MC Costa. A dúvida que me fica é a seguinte: esse "eleitorado centrista e flutuante, desconfiado tanto da esquerda quanto da direita", urbano, mestiço, em processo de ascensão social, ainda não percebe que Lula foi muito melhor para ele do que FHC? Se percebesse, votaria em Dilma, não em Marina. Se não percebe, então, apesar de todo o esforço nesse sentido, o PT ainda não conseguiu demonstrar, de forma suficiente, como a política econômica de Lula é muito mais efetiva e democrática que a de FHC.

glauber

Concordo plenamente e acho que temos que mudar o eixo de discussão da campanha para o que realmente interessa: a manutenção da melhoria da qualidade de vida e a diminuição da desigualdade social.

M Peres

Finalmente alguém faz uma análise lúcida do fenômeno Marina. Ela cresceu no vácuo de propostas para a nova classe média. Não são tocados pelo Bolsa Família, saneamento, combate à miséria, pois ascenderam e não percebem a complexidade desses temas. Tem medo de Serra e da privataria. Boa parte dessa nova classe média emergiu dos concursos públicos realizados nestes últimos 4 anos, logo, sabem muito bem o que Serra fará.
Por isso, digo e repito, Serra não tem chance. Eles sabem disso melhor do que ninguém. O que eles querem é desestabilizar. Enfraquecer Dilma para evitar as reformas, a Ley de Medios, etc.

    Marcelo

    Correto. Sabemos que na guerra da comunição ganha quem controla a pauta. Discutir o aborto, religião e coisas tais é o que o Serra quer. É PRECISO FOCAR NO QUE NÃO INTERESSA AO SERRA: A OPÇÃO PELO POVO E O FUTURO DO PAÍS !!! A direita é um tigre de papel que está urrando e assustando porque o poder lhe escapa! Subestimar o inimigo é muito perigoso, sobrestimar o inimigo é mortal!

maisquesaco

Azenha, o futuro da direita está em candidatos diretamente absorvidos da mídia?

Uma espécie de joint-venture para salvar os dois, em épocas de percalços, para enfrentar a nova "maioria silenciosa" que defende conquistas do Estado de Bem-Estar Social?

Depois do Rush Linbaugh e do Glen Beck serem ventilados, temos esse Lou Dobbs, ex-CNN, que tem um discurso anti-imigrantes (ele diz ser contra somente os ilegais – ahã!) montado numa lógica racionalista frágil, mas que compensa essa falta com bordões de fácil assimilação para explicar rapidamente os problemas da imigração dum ponto de vista, em teoria, humano: o problema são os empregadores de ilegais, não os próprios imigrantes. A partir do bordão, ele desenvolve mais algumas groselhas para dar "consistência", em geral se tornando mais e mais complexas, terceirizando para o telespectador a não compreensão do tema. Que, supostamente, é muito simples, não viu o bordão?

Claro que um cara desses não resiste dois segundos a alguém com traquejo em comunicação, principalmente televisivo, mas ele tem ao seu lado o pessoal que gosta de repetir bovinamente "ensinamentos" (antigamente se chamariam "informações de almanaque") para mostrar alguma erudição, além dos replicadores puros e simples.

Ei-lo num momento de dificuldade captado pela Nation:
http://www.thenation.com/article/155209/lou-dobbs

Acompanhemos a evolução deste caso… aparentemente, se não houver conotação sexual, os escândalos nos EUA não afligem muito os políticos… vide Bush que ainda consegue sair de sua caverna e dar palestras para quem quiser pagar, além de ter sido reeleito no meio do pepino da Enron.

Eugênio

É estranho NINGUÉM achar que pode ter havido SABOTAGEM e TRAPAÇA através das URNAS ELETRÔNICAS.

A "BOCA de URNA" do dia das ELEIÇÔES (03/10/2010) apontavam DILMA ROUSSEFF vitoriosa no PRIMEIRO TURNO e o que aconteceu?? Em uma semana DILMA perdeu "5 PONTOS", SERRA aumentou "7 PONTOS" e MARINA "8 PONTOS", só nesta contagem simples SÃO 20 PONTOS EM UMA SEMANA pró SERRA.

LÓGICO, desculpas foi o que não faltou: Aborto, Erenice…

SABOTAGEM E TRAPAÇA EM URNA ELETRÔNICA NÃO ACONTECE?????????????

Que o diga os persas e sua Bushehr.

    francisco.latorre

    pertinente.

    muito pertinente.

    ..

childerico IV

Geração de emprego: Lula 15 milhões X FHC 5 milhões
A partir desta quarta-feira, a Carta Maior publica uma série de artigos do economista José Prata Araújo, fazendo uma comparação entre os governos Lula e FHC. Araújo apresenta números e resultados dos dois governos, procurando apresentar os dois caminhos que estarão diante da população brasileira no dia 31 de outubro. No primeiro artigo ele aborda o tema da criação de empregos. O Brasil está entre dois caminhos, assinala. O de Dilma e Lula representa mais desenvolvimento econômico, mercado interno de massas, distribuição de renda, e mais empregos formais. O outro caminho, representado por Serra e FHC, já é conhecido dos brasileiros: baixo crescimento, privatizações, poucos empregos e flexibilização da CLT e da carteira assinada.
José Prata Araújo (*)
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMos

blogdofelicio

O Estado do Acre mostra à “REALIDADE”

Certo conselheiro disse: seja um bom filho, um bom aluno, um bom esposo, um bom pai, um bom empregado ou bom patrão e terás aconchego quando precisares. Alguém fora disso; provavelmente, deixou de fazer ou cometeu – algo, o qual se justifica a rejeição. Neste sentido, à candidata do PV Marina Silva, não foi bem acolhida na terra natal. E, isso ela o deveria explicar, baixo rendimento eleitoral, recebido no seu estado. Assim também, se justificar com os demais eleitores que, o crescimento, fenomenal eleitoral, o qual provocou o segundo turno nas eleições para presidente, não foi um mero produto, fabricado pela a imprensa, cujo seu objetivo, atendeu aos organismos de comunicações, os quais claramente se manifestaram contrario ao governo atual e a favor de SERRA. E, essa razão, todos sabem que, o referido candidato vivia em um momento de estagnação em ralação as pesquisas até então apresentadas. E, que de fato, essas pesquisas de opinião, não apresentavam a ele, nenhuma possibilidade de chegar ao segundo turno, de modo que, não dependesse dos outros candidatos. Por isso, questionamos o fabuloso crescimento da candidata do PV na reta final do primeiro turno. Deixou uma grande dúvida em relação ao mérito dessa imediata ascensão política, pelo fato de não sabermos exato, se é próprio dela, ou de parte da imprensa. À minha critica é diretamente, em parte da imprensa, cuja meu vê, não vem se comportando com neutralidade nesse processo político. Admiro a candidata Marina e lamento pelo fato dela ocasionalmente ter sido usada neste processo eleitoral e que, da forma como sucedeu, ficou claro que, o verdadeiro alvo dos interessados, seria levar à candidatura JOSÉ SERRA ao segundo turno. http://www.blogdofelicio.wordpress.com

childerico IV

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMos

David Zylberstajn, ex-genro de Fernando Henrique Cardoso e assessor técnico para a área de energia da campanha de José Serra à Presidência da República, aconselhou o tucano a desistir da proposta do governo Lula de modificar o modelo de concessão de campos de petróleo para o modelo de partilha, no caso dos blocos do pré-sal. Além disso, criticou o aumento da participação do Estado na empresa. "Não tem que existir estatal comprando ou vendendo petróleo", disse. No governo FHC, Zylberstajn queria encolher a Petrobras, vendendo refinarias. E por pouco a empresa não passou a se chamar Petrobrax.
Redação

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