Tarso Genro: Milei está no fundo do poço de uma esquerda envelhecida

Tempo de leitura: 3 min
Ilustração: Mihai Cauli /Terapia Política

Milei está no fundo do poço de uma esquerda envelhecida

Bolsonaro e Milei representam o fundo do poço de uma esquerda envelhecida, que não soube responder unida à retomada do fascismo

Por Tarso Genro*, em Terapia Política

O futuro presidente de um país culto e educado como a Argentina, considerados os padrões sul-americanos, confessou – entre outros atributos – inspirar-se em conversas com seu cão morto há dez anos, através de um parapsicólogo (certamente de alta capacidade cognitiva) e após confirmou que vai privatizar completamente a educação pública e a prestação de serviços de saúde, bem como extinguir o Banco Central do país.

O ex-presidente do Brasil elegeu-se convidando seus eleitores a assassinarem seus adversários; afirmou que vinha para destruir; governou exercendo ilegalmente a medicina – quebrando todos os protocolos de combate a uma pandemia – e ajudando, assim, a matar no mínimo 300 mil pessoas com a sua campanha espúria contra a vacinação.

Ambos os presidentes só venceram porque tiveram votações massivas nas classes médias, quase unânime nos setores mais ricos – empresariais ou não – bem como tiveram votações massivas em setores da população mais pobres, mais explorados e oprimidos, e também nos grupos sociais mais educados.

Tal fenômeno ocorreu tanto nas regiões em que a sociedade é mais ancorada nos patrimônios culturais da modernidade burguesa, como nos espaços em que a sociedade de classes é mais fragmentada e desorganizada.

Ambos tiveram um desempenho eleitoral extraordinário, com campanhas financiadas pelas “classes altas” de todas as regiões dos seus respectivos países.

Em 1989, Oscar Correas no seu monumental “El otro Kelsen” (Unam, México, pg 12), que é uma obra crítica da visão tradicional do materialismo histórico – tanto na Teoria Política como na Teoria do Direito – buscou superar a visão corrente de que bastava dirigir os “processos sociais” – a luta de classes, queria dizer – para que chegássemos na revolução: “para liquidar as classes, o direito e o Estado.”

Correas aduzia: “ao finalizar o Século XX, a razão retrocede, ante a aparição de outros fatores que não haviam sido tomados em conta – por serem “metafísicos” – como a vontade de poder, o inconsciente, o desejo, o mito, conceitos todos de origem irracionalista, mas cuja presença não se pode explicar sem (reconhecer) o fracasso da ciência e da técnica”.

Este fracasso da ciência e da técnica, para promoverem abundância, atributos da ideia tanto socialista como socialdemocrata, acordaria os instintos de sobrevivência naturais da espécie humana, instando que a guerra pela vida, na América do Sul deste século 21, se tornasse uma luta selvagem de “arminhas” e motosserras, transformadas em símbolos de uma ideia narcísica de poder, que as classes “altas” passaram a comandar, como revide ao crescimento de uma esquerda já em “default”.

A súbita aparição de duas personalidades políticas de extrema direita neste território, Javier Milei e Bolsonaro, só foi possível, entre outros fatores, principalmente pela nossa incapacidade de compreender uma nova situação política e geopolítica, que tornaria irrelevantes as utopias cansadas da revolução democrático-social, já então substituídas pela barbárie combativa contra o establishment.

Neste contexto, uma parte da esquerda continuou crendo no velho projeto proletário, hoje sem proletariado combativo, cuja maioria não “tugiu nem mugiu” para combater – por exemplo – a reforma trabalhista, ou mesmo para defender a democracia política em vias de destruição.

Uma outra parte da esquerda refugiou-se num identitarismo insuficiente, como se isso já revelasse o nascimento de uma nova história da esquerda.

Fernando Pessoa, num dos seus melhores poemas, diz que “há metafísica bastante em não pensar em nada”, cuja antítese poderia ser: “pensar em tudo” – só perante os fatos já realizados – pode ser uma perda grave para se ter um entendimento sólido do espírito da época.

Um outro livro publicado no mesmo ano (Alec Nove, “A economia do socialismo possível”, Ática, pg.282), mostra o vazio do pensamento revolucionário ou evolucionista-democrático, presentes no fracasso da experiência democrática de Allende.

Naquela trágica e heroica crise chilena ficou manifesto que não havia “poder efetivo para planificar, nem sequer a chamada área social, pois as forças do mercado foram desmanteladas, mas não foi introduzido nenhum substituto, criando assim o pior dos dois mundos”.

Foi a socialização da carência, com a queda da oferta dos bens necessários a uma vida digna para todos, cujo reverso bestial imediato foi um grupo de militares e civis delinquentes no poder.

Não só Bolsonaro, mas, sobretudo Milei que é mais sofisticado, são o fundo do poço de uma esquerda envelhecida, que não soube responder unida à retomada do fascismo – contido nos projetos neoliberais em curso – nem à destruição dos valores democráticos da razão iluminista transformada em mitologia do mercado, como pulsão histérica de um presente sem futuro.

*Tarso Genro é advogado. Foi governador do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, da Educação e das Relações Institucionais.

Publicado originalmente no Sul21

O artigo representa a opinião do autor e não necessariamente do Viomundo

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Comentários

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Morvan

O texto aduz, erroneamente, que a história é forjada (sob qualquer dimensão polissêmica da palavra) pela esquerda, ou seja, a direita age por reação, meramente; não advém da direita o que passamos. O ora em que a esquerda “deixar de ser envelhecida”, tudo será pão e mel. “Milei está no fundo do poço de uma esquerda envelhecida” é um ato falho, ou o pseudo engano é intencional?
Ora, não é a esquerda que está envelhecida, é a direita que sempre apresenta os mecanismos de manutenção do status quo, haja vista deter o controle da mídia, logo o da narrativa (Mussolini, em ´20 (década), já manipulava o rádio como instrumento de dominação; era a Rede Antissocial à época, quando ainda aprendíamos a entender o rádio…).
Millei e Jaircopata não são produtos da esquerda; são o “antídoto”! Não compreender isso ou mesmo tergiversar, pondo a culpa no Conan (o cachorro ectoplásmico do Millei) não resolve em nada a correlação, bem desfavorável a nós, esquerda.

A luta contra as fake news, o novo elixir da direita, é urgente. Hemos saída? É imperativo que tentemos ao menos diminuir a assimetria no jogo político, senão democracia será só uma palavra para se referir à não democracia da Grécia clássica.

Zé Maria

“No chão do Complexo do Alemão, com a voz de @TeresaCristina,
celebramos e honramos os nossos, reconhecendo em vida
suas trajetórias e legados.
Com muito orgulho que hoje entreguei a Medalha Tiradentes
e o Prêmio Marielle Franco.”
RENATA SOUZA
Deputada Estadual (PSoL/RJ)
https://twitter.com/RenataSouzaRio/status/1731845414284824638

Zé Maria

https://t.co/SSqF3sm5Pc

“Juíza Rosivan da Silva Machado, responsável pela Comarca de Neopólis,
no Leste de Sergipe, voltou à Mira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
e se tornou Alvo de uma Reclamação Disciplinar por Suspeita de atuar junto
a uma Máfia de Empresários para impedir a Titulação de Terras Quilombolas
na região com Uso de Ameaças.”

O processo no CNJ tem como pano de fundo um relatório produzido
pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
que descreve o terror imposto aos quilombolas.

A juíza Machado é apontada como a responsável por promover
“campanhas de guerra psicológica contra a comunidade, afirmando
que aqueles que se identificarem como quilombolas voltarão para escravidão, para o tronco, para chibata e perderão todos os seus direitos“.

O documento também cita o marido da juíza – Marcelino Ferreira,
que foi vice-prefeito de Brejo Grande entre 2008 e 2012, teria
usado jagunços e homens armados para coagir os moradores
“a assinarem abaixo-assinados renegando a condição de
remanescentes”, segundo o texto.

Depois de assinados, os termos seriam registrados em cartório
para contestar a titulação das terras.

A reportagem conversou com quatro membros da comunidade
que, sob anonimato, relatam episódios de ameaças e chantagem.

As represálias a quem não atendia às ordens envolviam a morte
de animais domésticos, afundamento de barcos e destruição
de plantações.

Há algumas semanas, o Incra pôs fim à longa batalha da comunidade
e publicou uma portaria em que reconhece o território como remanescente
de quilombo.

As terras já haviam sido certificadas pela Fundação Palmares há quase
duas décadas, mas continuavam expostas à especulação imobiliária
e ao avanço da carcinicultura na região.

A determinação constava em edição do Diário Oficial da União em
20 de novembro, Dia da Consciência Negra, uma data significativa
para a população afrobrasileira.

A alegria pela conquista perseguida há mais de uma década, porém,
logo foi substituída pelo medo:
Maria Izaltina Santos, a principal liderança da comunidade, voltou a
receber ameaças de morte.

Em meio ao avanço das hostilidades, dois procuradores do Ministério
Público Federal e representantes do Ibama e da Polícia Federal
estiveram na comunidade na última segunda-feira para uma visita
técnica.

Um inquérito policial foi aberto para apurar os responsáveis pelas
ameaças.

Procurada por telefone, a juíza Rosivan Machado não atendeu
aos contatos de CartaCapital.

https://twitter.com/CartaCapital/status/1731969385672196246

https://www.cartacapital.com.br/justica/juiza-acusada-de-ameacar-e-coagir-quilombolas-para-impedir-titulacao-volta-a-mira-do-cnj/

Zé Maria

.
.
Relator da Indicação de Dino para o STF
defende o Histórico Jurídico do Indicado
na Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) do Senado Federal.

Leia a Íntegra do Parecer do Senador
Weverton Rocha (PDT-MA):

https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2023/12/rendition-principal-SF230004163926.pdf

No dia 13/12, a CCJ do Senado submeterá
o candidato a uma sabatina e, em seguida,
promoverá uma votação.

Na sequência, Dino precisará de pelo menos
41 dos 81 votos possíveis no plenário da Casa.

https://www.cartacapital.com.br/justica/invejavel-curriculo-relator-da-indicacao-para-o-stf-defende-o-historico-juridico-de-dino/
.
.

Zé Maria

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O Mundo é uma Peça de Brecht.
.
.
“A Exceção e a Regra”
(moralidade em 8 quadros)

PRÓLOGO

Os Atores:
“Agora vamos contar
A história de uma viagem
Feita por dois explorados
e por um explorador.
Vejam bem o procedimento
desta gente:

Estranhável, conquanto
não pareça estranho;
Difícil de explicar,
embora tão normal;
Difícil de entender,
embora seja a regra.

Até o mínimo gesto,
simples na aparência
Olhem desconfiados
e perguntem
Se é necessário,
a começar
do mais comum.

E, por favor,
não achem natural
O que acontece
e torna a acontecer:
Não se deve dizer
que algo é natural
Numa época
de confusão sangrenta
desordem ordenada,
arbítrio proposital
humanidade desumanizada
para que imutável
não se considere nada!

BERTOLT BRECHT

Íntegra:
https://dialogosliterarios.files.wordpress.com/2013/04/a-excessc3a3o-e-a-regra.pdf

https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4821100/mod_resource/content/4/A%20EXCE%C3%87%C3%83O%20E%20A%20REGRA%20-%20BRECHT.pdf
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.

Zé Maria

Excerto

Neste contexto, uma parte da esquerda continuou crendo
no velho projeto proletário, hoje sem proletariado combativo,
cuja maioria não “tugiu nem mugiu” para combater – por exemplo –
a reforma trabalhista, ou mesmo para defender a democracia política
em vias de destruição.
Uma outra parte da esquerda refugiou-se num identitarismo insuficiente,
como se isso já revelasse o nascimento de uma nova história da esquerda.

.

Zé Maria

Será o “Fim da História”?
Ou o “Apocalypse Now”?

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