Roberto Amaral: Lula e o Brasil fragmentado

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Lula e o Brasil fragmentado

Por Roberto Amaral*

A afirmação do presidente Lula de que não existem dois Brasis deve ser lida menos como análise da realidade do que como generoso e republicano projeto de reconstrução nacional ao qual dedicará seu governo, por cujo sucesso todos torcemos, porque desafiará sua conhecida capacidade conciliatória, e porá em xeque muitos dos apoios que contribuíram para a escalada eleitoral.

O fato objetivo é que estamos em face de uma sociedade dilacerada povoando diversos Brasis.

A clivagem é política, tanto quanto econômica e ideológica, e a polarização que adjetiva o pleito presidencial é seu retrato presente, talvez o mais agudo, embora não encerre todo o drama.

Essa clivagem, porém, não é fenômeno de nossos dias: ela apenas exacerba, pondo-os a nu, os vícios de nossa formação histórica e os crimes de nossa organização político-social, cujos sinais de esgarçamento, de velha data, nos recusamos a reconhecer.

Para além dos aspectos mais clamorosos, presentes no Brasil de hoje, sua superação será obra de longo prazo na esteira da construção, coletiva, de um projeto nacional de sociedade democrática caminhando para a superação das desigualdades econômicas e sociais.

A questão imediata e crucial a considerar é a consolidação da extrema-direita, fenômeno que a todos parecia fora de cogitação. Derrotada eleitoralmente, ela sobrevive como projeto político.

Agora todos parecem preocupados com os rumos da polarização, até a direita, que, associada à clássica inconsequência dos liberais, principalmente desde 2014 com a candidatura Aécio Neves, formou uma aliança com a extrema-direita tupiniquim na expectativa de destruir o projeto petista de centro-esquerda, assim repetindo o erro crasso e fatal da socialdemocracia italiana, quando apoiou Mussolini na suposição de que o fascismo impediria a emergência dos trabalhadores e dos comunistas.

Quem não aprende com a História está fadado a repetir seus erros.

O que sucedeu é história sabida, como conhecidas entre nós são as consequências da pregação reacionária que desaguou na ditadura militar instaurada em 1º de abril de 1964, tanto quanto o desdobramento do antipetismo palmilhando o caminho do bolsonarismo, que pela primeira vez na história republicana possibilitou a conquista do poder pela extrema-direita calcada em processo eleitoral legítimo.

A liquidificação da socialdemocracia paulista e do chamado centro, e o fiasco da “terceira via”, são consequências de um mesmo fenômeno.

O curso de um processo político-social que apontava para uma experiência protofascista já ensaiada foi interrompido com a dramática vitória de Lula, que no entanto pôs de manifesto a incômoda clivagem nacional, mais ampla e mais profunda que o conflito de classes.

O que será a história no curto e médio prazo dependerá do que puder ser feito nos próximos anos.

A conciliação, indefinida, é reclamada como conditio sine qua non para a reconstrução nacional (econômica, política e ética), mas pouco avançará se governo, partidos e a sociedade organizada não se empenharem no enfrentamento à extrema-direita.

Nesta polarização há algo mais profundo do que sua aparência sugere, e seu significado não se esgota nos números do segundo turno.

O processo eleitoral, embora muito relevante, não é o fenômeno todo, e o mais ingente é identificar a trama social que o produziu.

Temos, sim, um país dividido, mas há algo mais a considerar.

Os dados do segundo turno (na contundência do seu quase-empate) revelam o que não poderíamos ignorar, tantos são os sinais recentes de desarranjo: somos um país agudamente dividido, que vê desabar os mitos da história oficial, aquela escrita pelos pensadores da classe dominante.

O Brasil dito cordial, generoso, acolhedor, é também o país da violência social e individual.

O Brasil da “democracia racial” se descobre também racista, machista, xenófobo e assim se revelou na votação do incumbente, pervadindo todo o país, superando diferenciações regionais e de classe.

A unidade nacional (social, política e principalmente ideológica) é solapada diante de “dois brasis”: um que anseia pela democracia, e outro que opta pela ditadura; um que clama pelo futuro, e outro que se cinge ao passado; um Brasil da aposta na civilização e outro do apego à barbárie.

Somos, pois, vários Brasis, sem constituir de fato uma nação, porque somos uma formação populacional querendo ser um povo, mas divididos entre uma maioria esmagadora de pobres e muito pobres, de um lado, e de outro poucos ricos que tudo podem, porque controlam a economia e a política.

É essa minoria mínima, habitante de um Brasil à parte, próprio dela, que formula as leis, que constitui o poder judiciário e aciona as forças armadas do Estado para a “manutenção da ordem”, isto é, a sustentação da sociedade fundada na exploração de classe.

Este Brasil falou forte no dia 30 de outubro. Felizmente foi contido, mas não está morto e estará vivíssimo na contestação ao governo Lula, contestação tanto mais implacável quanto mais o governo represente os anseios das grandes massas que o elegeram.

A polarização centro-esquerda + direita versus extrema-direita, nos termos em que se deu, redesenha o quadro político, mas não encerra, embora a magnifique, a divisão do país.

O pleito revelou a polarização eleitoral e esta deu os contornos dos diversos brasis e suas perigosas clivagens:

— o Brasil do Norte-Nordeste, majoritariamente pobre mas politicamente progressista, corrigindo a vontade reacionária do Sul industrializado e desenvolvido;

— um Brasil de camponeses sem terra e um Brasil do agronegócio exportador de commodities;

— o Brasil que se dilacera nas periferias, nas favelas, e no desemprego e na insegurança alimentar, e o Brasil endinheirado da Faria Lima.

Um Brasil que desmata e um Brasil que planta alimentos, um Brasil que trabalha e produz e um Brasil que acumula lucros na especulação financeira.

O Brasil das populações indígenas e o Brasil dos grileiros e dos garimpeiros clandestinos.

Afastou-se a ameaça imediata, representada pela possibilidade de reeleição do meliante; abriram-se as condições para a transição para um futuro governo de centro-esquerda, e o processo democrático tende a consolidar-se, se soubermos enfrentar os desafios postos.

A “conciliação nacional”, cujos limites devem ser discutidos com a sociedade, não pode, uma vez mais, compreender a impunidade de criminosos.

Não há “página a ser virada”, e toda iniciativa nesse sentido será recebida como uma desfeita às grandes massas que asseguraram a eleição de Lula, massas mobilizadas que serão, para além dos entendimentos de cúpula, fundamentais para a sustentação política do governo.

A história mostra, à saciedade, as consequências nefastas da conciliação como regra pétrea.

O lamentável quadro da partidarização das forças armadas do Estado brasileiro, a partir da qual foi possível o projeto Bolsonaro, é resultado da conivência da República com o crime político.

A própria sobrevivência do capitão como militar e político é exemplo contundente.

A impunidade dos militares golpistas – que depuseram Vargas, que tentaram impedir a posse de Juscelino Kubitschek e de João Goulart e afinal nos impuseram 21 anos de uma ditadura, com um rol incontável de torturados e assassinados – é a matéria-prima a alimentar o bolsonarismo, que pede a “intervenção militar” contra a democracia.

Cabe insistir: a periculosidade da extrema-direita nativa não pode ser negligenciada.

Conectada internacionalmente (com os neofascistas europeus e estadunidenses, em ascensão), ela conserva seu poder de mobilização, e sua insanidade continua sendo ouvida pela caserna; mantém bases populares e conta com o apoio majoritário e quase fanático das seitas neopentecostais; mantém-se influente no aparelho repressor em geral (polícia rodoviária, polícia federal, polícias civis e militares, milícias etc.), junto a atores do agronegócio, empresários do setor de serviços e setores da classe-média que se consideram “empreendedores”.

E permanece unificada em torno de uma liderança carismática e insensata. Governa, entre outros, os maiores Estados da Federação e fez a maioria do Congresso Nacional. É adversário que não pode ser negligenciado e travará contra o governo Lula uma oposição tanto radical quanto irresponsável, porquanto não conhece limites políticos ou éticos.

De outra parte, a direita que se aliou a Lula no segundo turno já cobra seu preço, tentando impor-lhe o programa de uma “terceira via” derrotada no processo eleitoral, assim ameaçando o governo com os riscos da frustração de seu eleitorado.

A Faria Lima, que já se assegurou da continuidade do presidente do Banco Central, quer mais: exige ser consultada sobre os gestores da política econômica.

Na contramão dessas pressões, o governo terá que ter lado, e sua opção histórica é pelos pobres e pela soberania nacional, o que vai requerer de Lula a paciente e cuidadosa construção de uma nova frente em condições de enfrentar o quadro emergencial e ao mesmo tempo apontar para os eixos centrais da nova política, o que pode implicar alterações na arca de apoios.

A sustentação do governo dependerá em muito das articulações, campo no qual Lula tem revelado sua conhecida proficiência.

Mas o presidente precisará fazer mais do que nos mandatos anteriores, muito em função do caráter de sua atual base de apoio político, desafiadoramente heterogênea.

Carecerá de amplo e permanente apoio popular, dependente de sua gestão, dependente de seu diálogo com as massas e do que lhe puderem oferecer os partidos do campo progressista, desafiados a retomar o trabalho de base e a militância política, incompatível com a burocracia pública, em momento de grave recesso do movimento sindical e de crise das estruturas partidárias.

***

Insolência – A mensagem do ainda ministro da defesa, redigida no péssimo vernáculo castrense, seria só um flato, se não fosse insolência pura. Quem atribuiu aos milicos o papel de fiscais da democracia brasileira? Fosse outro o TSE, a provocação teria sido devolvida.

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Souto Maior: É preciso apurar e responsabilizar as condutas do governo contra a democracia, direitos humanos e meio ambiente


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Zé Maria

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“Governo LULA fará um ‘Revogaço’ das
Medidas Arbitrárias do Bolsolão, em
especial na Área de Direitos Humanos.”

EMÍDIO DE SOUZA
Deputado Estadual Reeleito (PT/SP)
ex-Prefeito de Osasco/SP
GT Direitos Humanos
Equipe de Transição Gov LULA

Zé Maria

“Quando falham as Instituições,
surgem Homens Excepcionais”

“Para o novo governo, trata-se de aproveitar essas pequenas brechas
que se apresentam e recapturar os milhões de brasileiros
que se afastaram de um engajamento incondicional
com os valores republicanos e democráticos”

Por Serge Katz, Doutor em Sociologia (UFPB),

no Le Monde Diplomatique: https://t.co/Xc2TfsgXIu

https://twitter.com/diplobrasil/status/1591476164018708487

https://diplomatique.org.br/quando-falham-as-instituicoes-surgem-homens-excepcionais/

Zé Maria

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“Fascismo, Fascização e Memória Coletiva”

“A constante atenção a este amplo fenômeno pede cuidado e prática,
pois o combate a toda forma de autoritarismo se faz cotidianamente,
prática que não está flutuando ou recortada no tempo e no espaço,
mas é a construção contínua e extenuante de fazer lembrar para se evitar,
então é com urgência que devemos falar do fascismo à partir
da história e da política.”

Por Maurício Brugnaro Júnior*, no Le Monde Diplomatique

https://t.co/cga4x9vHnj
https://twitter.com/diplobrasil/status/1591828233791553536

Violento, idealista, autoritário, bufão, tradicionalista, nacionalista, pequi roído, etc.
Desde seu surgimento, o fascismo está em pauta nas sociedades contemporâneas, assim, o esforço para analisá-lo – em suas mais diversas formas de se manifestar – e combatê-lo também se faz presente e requer cada vez mais esforços.
Como bem pontuou Umberto Eco, em “O Fascismo Eterno” ([1997] 2018), ele pode se apresentar em trajes civis e variar alguns de seus aspectos, mas ainda é fascismo:

O Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis.
Seria muito confortável para nós se alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer:
“Quero reabrir Auschwitz, quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”
Infelizmente, a vida não é fácil assim!
O UrFascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes.
Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo (ECO, 2018, p. 46).

A constante atenção a este amplo fenômeno pede cuidado e prática, pois o combate a toda forma de autoritarismo se faz cotidianamente, prática que não está flutuando ou recortada no tempo e no espaço, mas é a construção contínua e extenuante de fazer lembrar para se evitar, então é com urgência que devemos falar do fascismo à partir da história e da política.

História e política se constroem concomitante no cotidiano, desde as práticas mais comuns e corriqueiras – que já contém decisões de caráter e predisposições, arcabouços, interesses e orientações sociais – até marcos políticos constitucionais, passando pelos discursos e pelas ações que afetam do micro ao macrossocial e vice-versa, isto é, tudo é político e tudo é histórico.
De certa forma, tudo é histórico-político, por assim dizer.
Então, falar sobre fascismo em 2022, cem anos após a Marcha sobre Roma, não é um acaso ou luxo intelectual, tem por objetivo manter a memória, buscar o debate e revelar um ato histórico-político para o agora, o tempo-presente [Jetzzeit], para com o passado e para um futuro possível.
Isto é, “a expectativa do novo que o futuro oferece só se cumpre através da rememoração de um passado reprimido” (HABERMAS, 1990, p. 23).

Consideramos, aqui, o compromisso político que os intelectuais devem assumir, “o compromisso político aparece normalmente em o intelectual ‘empenhado’ como o resultado lógico e legítimo de seu reflexo, ao qual confere, em contrapartida, a autenticidade de uma sanção prática” (REMOND, 1959, p. 860), e também que “todos os homens são intelectuais” (GRAMSCI, Q12, §1, pp. 1516-1517), embora nem todos exerçam a atividade intelectual no sentido estrito do termo, todos realizam atividades que requerem atividade intelectual, tal qual a política.

Características Gerais do Fascismo

Embora se tenha a Marcha sobre Roma como o marco histórico da subida ao poder pelos fascistas, a história não é estabelecida por datas, mas pela construção de processos que culminam em marcos históricos.
Estes, por sua vez, são convencionalmente datados, pois “por história é preciso entender então não uma sucessão cronológica de acontecimentos e de datas, mas tudo aquilo que faz com que um período se distinga dos outros e cujos livros e narrativas não nos apresentam em geral senão um quadro bem esquemático e incompleto” (HALBWACHS, 1990, p. 60).
Neste quadro, nota-se a necessidade do meio social passado para a construção da memória, pois “se o meio social passado não sobrevivesse para nós a não ser em tais anotações históricas, se a memória coletiva, mais geralmente, não contivesse senão datas e definições ou lembranças arbitrárias de acontecimentos, ela nos ficaria bem exterior” (ibid., p. 55).
Assim, interiorizando a história, seguimos para uma caracterização geral do fascismo.

Trabalhando sobre o início do fascismo, Ângelo Tasca destaca que “o período de agosto de 1914 a maio de 1915 foi decisivo para o destino do povo italiano.
Não tanto pelo fio condutor que une os ‘Fasci di combattimento’ do intervencionismo aos fasci de 1919-1922, quanto pela ilusão e os equívocos que até agora se instalaram na política da classe operária”, pois “o povo italiano, na sua grande maioria, não queria a Guerra” (TASCA, 2014, p. 462, tradução nossa).
Isto é, de um lado, demonstra interesses e vontades políticas do povo italiano e, por outro, de grupos de combate.
Embora exista um esforço para que aconteça o distanciamento das massas populares da política, ela somente se faz através desta, “em realidade […] a luta contra o fascismo é muito mais necessariamente uma luta de massa, quanto mais a massa está acessível ao fascismo.
As massas são hoje muito mais que o “sujeito” da história, no sentido que não se faz história sem ela”, e se não as alcançamos – enquanto parte constituinte dela – “é o fascismo que faz a história na nossa vez” (ibid., p. 512).
Essa breve contextualização política e histórica serve para que aconteça o reconhecimento que a política é um espaço comum e está em disputa, por vezes por atores democráticos, por vezes por atores autoritários.

Nesta disputa política, a ideologia assume um papel fundamental, pois a ideologia dominante “encarna-se, no seio de uma formação [social], numa série de aparelhos ou instituições: ‘as Igrejas (o aparelho religioso), os partidos políticos (o aparelho político), os sindicatos (o aparelho sindical), as escolas e Universidades (o aparelho escolar), os meios de ‘informação’ (jornais, rádio, cinema, televisão, em suma: o aparelho de informação), o domínio ‘cultural’ (a edição)”, a família, sob um certo aspecto, etc.
Tratam-se dos aparelhos ideológicos de Estado (POULANTZAS, 1978, pp. 321-322).
E numa formação social, não há apenas uma ideologia dominante, mas várias ideologias ou “subsistemas ideológicos contraditórios”, que correspondem e se relacionam às diversas classes sociais em luta.
Isto é, uma ideologia dominante só se faz dominante ao conseguir dominar outras ideologias e esses subsistemas, e busca fazer através dos aparelhos ideológicos de Estado.

Considerando as reflexões de Poulantzas sobre fascismo e ditadura, da disputa ideológica pela hegemonia referente às diversas classes e frações de classe dominante através dos aparelhos de Estado [1], adiantamos algumas caracterizações gerais sobre o fascismo.

A. “O Estado fascista é uma forma de Estado que sobressai do tipo de Estado capitalista.
Neste sentido, e sobressai apesar de tudo o que se possa ter escrito sobre este assunto, apresenta os traços próprios do tipo capitalista de Estado”.

B. “O Estado fascista é uma forma de Estado específica, uma forma de Estado de exceção, na medida em que corresponde a uma crise política” (ibid., p. 331).

Este Estado de exceção é consagrado pelo sistema jurídico, que também tem um papel político, pois o sistema jurídico capitalista “perpetua e consagra a dominação política de classe segundo modalidades particulares”, camufla, do ponto de vista ideológico seu papel segundo duas vias:

1. “O direito regula o exercício do poder político pelos aparelhos de Estado e o acesso a estes aparelhos, por meio de um sistema de normas gerais, formais, abstratas, estritamente regulamentadas, fixadas explicitamente de modo a permitir a previsão” (ibid., p. 343).

2. “O direito estabelece os limites do exercício do poder de Estado, quer dizer, da intervenção dos aparelhos de Estado” (ibid., p. 344).

Isto é, se o direito é constituído por uma classe ou frações de classes específicas e tem o poder de regular a legalidade de práticas e disputas sociais, o aparelho ideológico e repressivo de Estado passa também pelo seu domínio.
Assim a burocratização afeta o Estado capitalista, algo que é relativamente elevado num Estado de exceção, que conta com o papel das classes-apoio, principalmente a pequena burguesia, inchando de forma parasitária os aparelhos do Estado e, consequentemente, afetando sua ideologia interna, podendo influenciar na suspensão generalizada do princípio de eleições e divisões de poderes.
Tal movimento ocorre, concomitantemente, pela criação de redes políticas paralelas, alterando a dinâmica do domínio democrático-parlamentar do Estado.

Poulantzas estabelece que a ideologia do fascismo possui grande poder através de alguns aparelhos de Estado específicos, a saber:
a) o partido fascista;
b) a família;
c) o aparelho de informação e de propaganda.
Então, “partido-família-propaganda, são aqui o tríptico dominante dos aparelhos ideológicos de Estado” (ibid., p. 357).

Trazemos, agora, reflexões de Umberto Eco sobre o “fascismo eterno”, ou Ur-Fascismo.

De modo objetivo, vamos às características:
a). o fascismo possui o culto à tradição;
b) consequentemente, o tradicionalismo implica a recusa da modernidade, principalmente à recusa ao espírito moderno iluminista, alcançando um “irracionalismo”;
c) esse “irracionalismo” depende de um culto da ação pela ação sem nenhuma reflexão;
d) pensar e cultura, em sentido amplo, são identificadas como uma forma de castração;
e) possui um nacionalismo, e quem fornece a identidade nacional é a construção do outro como inimigo, criando em seus seguidores o sentimento de estarem sitiados, fazendo-os emergir uma conspiração pela xenofobia;
f) pregam a glória da guerra e são contra o pacifismo;
g) criam um herói, isto é, há um culto ao heroísmo;
h) o fascista transfere sua vontade de poder para questões sexuais, “seus jogos de guerra se devem a uma invidia penis permanente”;
i) falam uma “novilíngua”, a la 1984, de Orwell;
j) o Ur-Fascismo está ao nosso redor, “às vezes em trajes civis” (ECO, 2018, pp. 35-47).
Enfim, o modus operandi fascista acontece através de uma teoria-prática que começa com “atos de fala ética e politicamente empobrecidos” (TIBURI, 2016).

Fascização e a Destruição da Alteridade

Poulantzas distingue o processo de fascização em quatro períodos:
a) O período que vai do início do processo até o ponto de “irreversibilidade”, aqui o fascismo é um fenômeno evitável e resistível, curiosamente não coincide com a chegada do fascismo ao poder, pois a chegada é um último ato formal [como notamos com a Marcha sobre Roma];
b) O período que vai do ponto de irreversibilidade à chegada do fascismo ao poder, aqui destaca-se mais seu caráter político difundido nas práticas sociais que a chegada ao poder em si ;
c) O primeiro período do fascismo no poder, neste momento, o fascismo se vê obrigado a assumir compromissos e ilusões que ainda eram de seu começo;
d) O período de estabilização do fascismo, neste momento, começa a “depuração […] das suas origens de classe, […] o que se manifesta, aliás, em depurações maciças e sangrentas nas suas próprias fileiras (POULANTZAS, 1978, pp. 72-73).

Durante o início do processo de fascização, destaca-se uma radicalização dos partidos burgueses na direção de formas de Estado de exceção, quaisquer que sejam, buscam, sobretudo, um endurecimento do Estado para restaurar sua direção e hegemonia na cena política.
Partidos burgueses que compõem a classe ou frações de classe dominante com sua ideologia, que passa a ser comprada por outras classes, como a pequena burguesia, ou seja, há o domínio e o “cimento” de uma ideologia sobre outras.

Durante este processo, enquanto ainda há a forma “democrático-parlamentar” de Estado, há movimentações institucionais em sistemas paralelos ocultos, “que vai do aparecimento de grupos de pressão e de milícias privadas como núcleos de reorganização política até a instalação de verdadeiros circuitos paraestatais”; e de um “recrudescimento do papel do próprio aparelho de Estado – exército, polícia, tribunais, administração” (ibid., p. 80).

Em suma, há distorção entre o poder real e o poder formal de uma sociedade, há, também, uma crise ideológica e uma ruptura do laço “representantes-representados” que passa a afetar toda a estrutura social que sofre influência das ideologias dominantes e/ou estão em contato com os aparelhos de Estado, direta ou indiretamente.
Por fim, é de enorme importância esclarecer que “o fascismo sobe ao poder de modo perfeitamente constitucional”.
“Hitler e Mussolini chegam ao poder ‘respeitando’ as formas de Estado ‘democrático-parlamentar’”; “o fascismo não teria chegado ao poder sem a ajuda decisiva do aparelho repressivo de Estado na luta travada contra as massas populares”; “o fenômeno de distorção entre poder formal e poder real, manifesta no Estado ao longo de todo o processo de fascização” (ibid., p. 358).

A Construção de uma Memória Coletiva

O fascismo atua pelo medo e pela eliminação do outro.

Primeiramente, acontece a negação do outro, seja no cotidiano em que práticas não sejam “reguladas”, seja no domínio da lei, gerando indiferença, invisibilidade, a construção de um inimigo e, por fim, sua eliminação.
É, em suma, a destruição do exercício da alteridade.
Segundo Michèle Ansart-Dourlen, “o poder de negação do outro não se manifesta apenas pelas ameaças de violência física, mas por uma violência de natureza simbólica – o desprezo aos valores próprios de outras culturas – que pode desencadear um ódio gerador de fanatismo” (ANSART-DOURLEN, 2009, p. 28).

Para isso, evocamos a valorização da memória coletiva sendo construída escovando a história a contrapelo.
A memória coletiva “é uma corrente de pensamento contínuo, de uma continuidade que nada tem de artificial, já que retém do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que a mantém” (HALBWACHS, 1990, p. 82).
Em sua construção, o presente não se opõe ao passado, pois a memória de uma sociedade “estende-se até onde pode, quer dizer, até onde atinge a memória dos grupos dos quais ela é composta” (ibid., p. 84).
Não podemos perder de vista que a “destruição potencial do gênero humano influi e influirá na vida e nos fragmentos da memória, respectivamente, de todas as gerações futuras e passadas”, pois nossa “capacidade de contaminar o presente, o passado e o futuro é incomparavelmente maior que a nossa fraca imaginação moral” (GINZBURG, 1998, p. 216-217 apud DE DECCA, 2009, p. 387).

Retomando o início: violento, idealista, autoritário, bufão, tradicionalista, nacionalista, pequi roído, etc., sob diversas características e variações, o fascismo está presente, talvez a serpente, ao eclodir de seu ovo, tenha deixado outros, e estes, por sua vez, fizeram o mesmo.
O fascismo está à espreita através de mecanismos aqui mencionados – e outros que não foram também.
“Enganar-se atualmente, e ser incapaz de descobrir a realidade de um eventual processo de fascização, não pode ser desculpável, se é que alguma vez o foi.
O fascismo, como, de resto, os outros regimes de exceção, não são ‘doenças’ ou ‘acidentes’: não é só aos outros que acontecem”(POULANTZAS, 1978, p. 385).

Apesar da atualidade do tema, não encerro esse escrito com um sentimento de derrota – de atenção, cansaço, mas também força, sim –, mas finalizo – não o debate – esse trabalho com uma mensagem de Foucault:
“Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária” (FOUCAULT, 1977, pp. XI-XIV).

Nota
[1] Por ‘aparelhos repressivos de Estado’, considera-se:
o exército, a polícia, a administração, os tribunais, etc.
Por ‘aparelhos ideológicos de Estado’, considera-se:
a escola, a igreja, etc.
No entanto, devido a movimentações internas, há ideologia nos aparelhos repressivos e vice-versa, pois sujeitos que os compõem são seres com diversas conexões, culturas e interesses.

* Maurício Brugnaro Júnior é Graduando em Ciências Sociais no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP);
Membro do ‘Laboratório de Pensamento Político’ (PEPOL/Unicamp), e
Pesquisador-Associado do ‘Núcleo Práxis de Pesquisa, Educação Popular e Política’ da Universidade de São Paulo (USP).

Referências Bibliográficas:

ANSART-DOURLEN, Michèle. A noção de alteridade: do sujeito segundo a razão iluminista à crise de identidade no mundo contemporâneo. In: NAXARA, Márcia Regina Capelari; MARSON, Izabel Andrade; MAGALHÃES, Marion Brepohl (orgs.). Figurações do outro na história. Uberlândia, EDUFU, 2009.

DE DECCA, Edgar Salvadori. Alteridade, moral e justiça: as implicações morais da distância, segundo Carlos Ginzburg. In: NAXARA, Márcia Regina Capelari; MARSON, Izabel Andrade; MAGALHÃES, Marion Brepohl (orgs.). Figurações do outro na história. Uberlândia, EDUFU, 2009.

ECO, Umberto. O fascismo eterno [recurso eletrônico] / Umberto Eco ; tradução Eliana Aguiar. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2018.

FOUCAULT, Michel. Preface in: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press, 1977, pp. XI-XIV.

GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere: volume secondo, volume terzo. Torino: Einaudi
Editore, 1977. (Edizione critica dell’Istituto Gramsci).

HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, Lds., 1990.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais LTDA., 1990.

POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo: Martins Fontes, 1978.

TASCA, Angelo. Il fascismo in tempo reale 1926-1938. Feltrinelli Editore Milano, Fondazione Giangiacomo Feltrinelli, Annali Anno Quarantottesimo, 2012, Prima edizione: dicembre 2014

TIBURI, Marcia. O jogo de linguagem fascista. Revista Cult, Home, 24 de janeiro de 2016. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/o-jogo-de-linguagem-fascista/

https://diplomatique.org.br/fascismo-fascizacao-e-memoria-coletiva/

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