Roberto Amaral: É hora de passar a caserna a limpo (pois amanhã será tarde demais)

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Foto: Ricardo Stuckert/PR

É hora de passar a caserna a limpo (pois amanhã será tarde demais)

Por Roberto Amaral*

A história de nosso país, na qual o povo não tem o registro de agente, é a história da casa-grande e de seus herdeiros – os filhos da lavoura do açúcar e do café e do escravismo que hoje habitam a Faria Lima como sócios menores do grande capital –, atravessada pela erva daninha da conciliação, que é sempre a concertação dos interesses da classe dominante: deixar tudo como está para ver como fica.

Quando o desenvolvimento das forças sociais reclama a ruptura, as conveniências de classe impõem a negociação rasteira (ou o recuo histórico), o diktak que vem de cima, como foi construído o país.

Sai de cena o estadista e as luzes iluminam os procuradores do statu quo. Vence a “pequena política”, anatematizada por Gramsci.

Assim o poder evita as mudanças, sejam econômicas ou políticas, e se assegura de que a natureza do mando continuará incólume.

A política de permanente conciliação é a avenida por onde trafega a impunidade que na vida militar construiu a indisciplina e as insurgências que destroem a ordem constitucional e a democracia.

A intentona de 8 de janeiro, seus antecedentes e suas principais consequências (muitas ainda distantes de superação) não devem ser vistos nem como fatos isolados, nem como pontos fora da curva.

São o resultado do processo histórico que trouxe a república até aqui. Mudar esse curso é um imperativo de salvação nacional.

As investigações levadas a cabo pelo STF e pela Polícia Federal, nada obstante sua extraordinária importância, revelam, para a história, o consabido: a maquinação golpista das forças armadas: delas, coletivo, corporação, instituição republicana; delas como um só sujeito.

Registrem-se, porém, dois fatos novos, alvissareiros na crônica de nossa república permanentemente infante: 1) a decisão de investigar os crimes políticos perpetrados contra a democracia, e 2) como desdobramento, a comprovação fática e documental dos delitos, confirmando a autoria coletiva.

O que o já apurado e conhecido põe a nu não são crimes de “comandantes desgarrados”, expelidos pelo corpo degenerado como mecanismo de autodefesa, como era a encomenda do sistema, regra aplicada para os insurretos militares de todas as intentonas, levantes e golpes militares que pontilham a república, desde os golpes de Deodoro e Floriano.

É de supor, se os fatos não nos estiverem iludindo, que desta feita a conciliação não escreverá o enredo e que a vitória não será da impunidade, a erva daninha que transformou as forças armadas do Estado brasileiro em uma confraria de indisciplinados, sempre pronta para rasgar a Constituição e pondo por terra a legalidade democrática.

Comunidade que se organiza à parte tanto da sociedade quanto da república, construindo um mundo isolado em si mesmo, com regras próprias, valores próprios e objetivos próprios, desapartados do sentimento nacional.

Não há, aqui, espaço suficiente para o registro dos delitos da caserna e dos nomes dos militares que, nada obstante o crime de lesa-pátria, permaneceram em suas fileiras, fazendo longa carreira, muitos coroados como heróis e líderes.

Talvez uns poucos exemplos possam ser esclarecedores. Arrolo um só.

Em 1937, muito antes de ser cunhada a expressão fake news, um falso plano comunista de tomada do poder (divulgado como Plano Cohen), foi o pretexto de que se utilizaram Getúlio Vargas e os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra para darem o golpe de Estado que instaurou a ditadura do Estado Novo (1937-1945).

Sua redação foi obra da invencionice criminosa do então capitão, integralista e antissemita, Olímpio Mourão Filho, que em abril de 1964, agora general e comandante de tropa em Juiz de Fora, marcharia contra a Guanabara no exercício militar concertado pelos estados maiores das três forças para depor o presidente da República e instaurar, como se sabe, a ditadura de 1º de abril (instaurada no Dia da Mentira para “restaurar a democracia”), cujo prontuário de 21 anos de crimes e exorbitâncias compreende cassações de mandatos, prisões, aposentadorias, exílios, tortura e assassinatos sem conta que o país, até hoje, não pôde apurar.

A intentona de 8 de janeiro, o clímax (mas não necessariamente o desfecho) de mais de quatro anos de conspirações e atentados à Constituição, presidida pelo capitão proscrito e levada a cabo com generais asseclas (como os deploráveis Augusto Heleno e Braga Neto).

Ela é simplesmente o coroamento da aventura militar que levou ao poder a direita protofascista.

A operação de estado-maior foi detonada em 2 de abril de 2018 com a intervenção do então comandante do exército, o indisciplinado general Eduardo Villas Bôas, intimidando por meio de um tweet um STF sem músculos, naquele então dominado pelo medo (em depoimento ao CPDOC da FGV, o ex-comandante do exército diz haver discutido o teor do tweet com seus auxiliares imediatos e com três ministros do governo Temer).

Ao assegurar-se da inelegibilidade de Lula, o velho e enfermo general despedia-se da vida pública atapetando a aventura de seu pupilo, já então abraçado pelo que há de mais atrasado na classe dominante brasileira, os especuladores de todas as bolsas e o agronegócio troglodita – em suma, os adversários de quaisquer avanços sociais, econômicos e políticos que de alguma forma, a mais tímida que seja, acenem em favor da classe trabalhadora e dos pobres em geral.

O governo, uma enciclopédia de desmandos, constituir-se-ia como um valhacouto de irresponsáveis, conspiradores e depravados, como ficou documentado pelo registro da reunião ministerial de 22 de abril de 2020.

Fosse naquele então o Brasil um país organizado por instituições maduras amparadas na opção democrática de sua gente (coisa que, infelizmente, ainda não é), e aquela súcia teria saído do Palácio do Planalto para o xadrez. Foi a primeira oportunidade perdida pela República para se salvar.

Perdeu uma segunda, quando o Presidente Lula, nos tempos imediatos à posse, decidiu não enfrentar a questão militar, e seu ministro da defesa – bem escolhido para esse fim – decidiu negociar e compor com os conspiradores, de que resultou a permanência de oficiais golpistas em posições estratégicas para a segurança da república e do governo. Deu no que deu.

Salvaram a ordem democrática a incompetência dos meliantes e a recomendação da Casa Branca (revela o noticiário internacional), desaconselhando seus pupilos a tomarem assento na aventura.

Um dos que teriam bem compreendido os sinais de Tio Sam seria o comandante do exército, que o inqualificável Braga Neto chamaria de “cagão”.

Um país sério, ou que pretenda o autorrespeito e o respeito da comunidade internacional (no momento em que escrevo o presidente Lula está no Egito, para participar de reunião da Liga Árabe), não pode deixar suas instituições e seu povo à mercê dos generais ou coronéis ou capitães mal formados, mal preparados e mal treinados, medularmente autoritários, descomprometidos com a Constituição e a democracia e ao mesmo tempo, contrariando o passado das corporações, benevolentes com os interesses estrangeiros que coartam a economia nacional e aprofundam a desigualdade social.

Ao tempo em que nos põe de joelhos na soleira do mundo civilizado, a corporação militar foge de sua única missão (e justificativa para existência dispendiosa em país que ainda combate a fome) que é a de nos defender contra possível inimigo externo.

Opta pela guerra interna (para tanto foi criada a Escola Superior de Guerra, cópia subdesenvolvida da War College e inventada a doutrina da segurança nacional), e assim elege seu povo como inimigo natural.

Instrumento da guerra ideológica ditada por um EUA sempre beligerante, adota como princípio os ditames da finada Guerra Fria e a divisão do mundo em blocos incontornáveis.

Sem nos ouvir, nos dita a opção nacional nesse divórcio, e para fazê-la valer é capaz de rasgar a Constituição, depor presidentes e impor ditaduras.

A abolição em 1888 nos livrou dos capitães-do-mato; o parco desenvolvimento capitalista colocou em cena, dominando o palco, os guardiães do conservadorismo.

Assim, nosso futuro continua sendo o passado, como, sem fazer piada, nos lembrou, no século passado, o filósofo carioca Millôr Fernandes.

O insondável processo histórico nos oferta mais uma vez (e a prudência aconselha não abusar dos bons fados) a oportunidade de a república – quando completa 135 anos de instituição, e a poucos dias de lembrar, para condenar, os 60 anos do golpe de 1º de abril de 1964 – rever o papel que as forças armadas do Estado brasileiro têm desempenhado até aqui, e a partir dos interesses de nosso povo decidir que forças armadas precisamos ter para defender nossos interesses, que começam pela salvaguarda da liberdade, da democracia, da igualdade social, do desenvolvimento e do progresso, bem como a busca da paz interna, e da paz como guia de seu papel no concerto das nações.

Até aqui, porque o país não diz de que forças armadas precisa, as corporações ditam que Brasil devemos ter. À imagem e semelhança de suas deformações ideológicas.

Louvem-se a ação e a coragem do STF de hoje, e a ação até aqui profissional da PF, ambas instituições que sempre estiveram a serviço do conservadorismo.

Se os fatos caminharem segundo a trilha que se vê traçada, os muitos delitos serão apurados e seus responsáveis – puros meliantes, financiadores de baixo e alto coturno, militares de todas as patentes, comandantes e simples serviçais como o Major Cid, ajudante de ordens e valet do capitão expulso das fileiras como mau militar – serão julgados e punidos. Não é pouco, posto que muda o caminhar da história até aqui.

A punibilidade substituindo a impunidade, ademais de dever do Estado de direito, evitará a continuidade da indisciplina militar e da recorrência golpista.

É muito, mas ainda não é tudo, pois o fundamental é a república definir que forças armadas deseja. Um olhar para o futuro a partir da revisão histórica.

***

Rabo preso – Enquanto investigações fecham o cerco em torno do ex-presidente, seus cúmplices e asseclas, os jornalões suplicam em uníssono para que a Justiça pegue leve com a súcia, e que o planejamento de golpe de Estado não seja considerado crime. O que temem os senhores da mídia?

Mãos sujas – Diante da carnificina a que a chamada comunidade internacional assiste impassível e omissa, o debilitado presidente dos EUA reclama, reiteradamente, de que Israel está matando muitos civis inocentes.

E ao mesmo tempo anuncia (com o aval do Congresso) uma ajuda bilionária para que Israel siga matando civis inocentes. Afinal, a economia da superpotência ainda tem no sangue estrangeiro um insumo fundamental…

*Roberto Amaral foi presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ministro da Ciência e Tecnologia do governo Lula. É autor do livro História do presente- conciliação, desigualdade e desafios (Editora Expressão Popular e Books Kindle).

* Com a colaboração de Pedro Amaral.

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Gerson Almeida: Paulo Guedes no golpe vai muito além do silêncio cúmplice na reunião

Lelê Teles: O incauto culto ao inculto cadáver insepulto

Milly Lacombe: Teria sido um golpe miliciano com apoio liberal

Roberto Amaral: Lula e a extorsão da casa grande


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Zé Maria

“Esse prefeito se comporta
como ‘Tchutchuca do Bolsonaro’,
não como Prefeito de São Paulo”.

GUILHERME BOULOS
Deputado Federal (PSOL/SP)
Pré-Candidato à Prefeitura de SP.
Em Discurso no Ato Público (22/02/2024)
em Parelheiros, na Zona Sul da Capital.
https://twitter.com/CartaCapital/status/1760781973860073745

Zé Maria

https://t.co/R6XgSGrmPr

Além de Bolsonaro, PF intima Generais
para depor simultaneamente sobre
tentativa golpe de Estado em 2022

Dando Prosseguimento à Operação Tempus Veritatis
que investiga a Trama Golpista de 2022, o ex-Presidente
Jair Bolsonaro (PL) foi intimado a depor na Polícia Federal,
na quinta-feira (22), às 14h30, em Brasília.

Além do Asno Mitológico, Outros Dez Investigados também
devem prestar Depoimento na mesma ocasião, entre os quais:

1) General Augusto Heleno (ex-Chefe do GSI);

2) General Mário Fernandes (ex-Chefe-Substituto
da Secretaria-Geral da Presidência da República);

3) General Paulo Sérgio Nogueira (ex-Ministro da Defesa);

4) General Walter Braga Netto (ex-Ministro Chefe da Casa Civil
e ex-Candidato a Vice-Presidente da República na Chapa Presidencial encabeçada pelo ex–Presidente Jair Bolsonaro );

5) Almirante Almir Garnier (ex-Comandante da Marinha);

6) Cel. Cleverson Ney Magalhães (Coronel do Exército e
ex-Oficial do Comando de Operações Terrestres).

7) Anderson Torres (ex-Ministro da Justiça); e

8) Valdemar Costa Neto (Presidente do PL, Partido pelo qual o
ex–Presidente Jair Bolsonaro concorreu à Reeleição em 2022).

https://twitter.com/DCM_online/status/1759662470010921329

https://www.diariodocentrodomundo.com.br/pf-intima-10-participantes-da-reuniao-golpista-de-bolsonaro-a-depor-veja-quem-sao/

Zé Maria

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“Amanhã apresentarei ao Senado, visando às assinaturas
de apoio, Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
deixando claro, definitivamente, que juízes, promotores ou
militares que cometerem delitos graves devem ser EXCLUÍDOS
do serviço público.
E não ‘aposentados compulsoriamente’ ou beneficiados
mediante ‘pensão por morte ficta ou presumida’.

Não há razão para essa desigualdade de tratamento em relação
aos demais servidores públicos que, por exemplo, praticam crimes
como corrupção ou de gravidade similar.”

FLÁVIO DINO
Senador da República (PSB/MA)
Ex-Ministro da Justiça.
https://twitter.com/FlavioDino/status/1759283805918052450
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Zé Maria

Excerto

“Um país sério, ou que pretenda o autorrespeito
e o respeito da comunidade internacional …,
não pode deixar suas instituições e seu povo
à mercê dos generais ou coronéis ou capitães
mal formados, mal preparados e mal treinados,
medularmente autoritários, descomprometidos
com a Constituição e a democracia e ao mesmo
tempo, contrariando o passado das corporações,
benevolentes com os interesses estrangeiros
que coartam a economia nacional e aprofundam
a desigualdade social.

Ao tempo em que nos põe de joelhos na soleira
do mundo civilizado, a corporação militar foge
de sua única missão (e justificativa para existência
dispendiosa em país que ainda combate a fome) que é
a de nos defender contra possível inimigo externo.

Opta pela guerra interna (para tanto foi criada a
Escola Superior de Guerra [ESG], cópia subdesenvolvida
da ‘War College’ e inventada a ‘doutrina da segurança nacional’),
e assim elege seu povo como inimigo natural.

Instrumento da guerra ideológica ditada por um EUA
sempre beligerante, adota como princípio os ditames
da finada Guerra Fria e a divisão do mundo em blocos
incontornáveis.

Sem nos ouvir [os Brasileiros e Brasileiras], nos dita a
opção nacional nesse divórcio, e para fazê-la valer
é capaz de rasgar a Constituição, depor presidentes
e impor ditaduras.

A abolição em 1888 nos livrou dos capitães-do-mato;
o parco desenvolvimento capitalista colocou em cena,
dominando o palco, os guardiães do conservadorismo.

Assim, nosso futuro continua sendo o passado, como,
sem fazer piada, nos lembrou, no século passado,
o filósofo carioca Millôr Fernandes.

O insondável processo histórico nos oferta mais uma vez
(e a prudência aconselha não abusar dos bons fados) a
oportunidade de a república – quando completa 135 anos
de instituição, e a poucos dias de lembrar, para condenar,
os 60 anos do golpe de 1º de abril de 1964 – rever o papel
que as forças armadas do Estado brasileiro têm
desempenhado até aqui, e a partir dos interesses de nosso
povo decidir que forças armadas precisamos ter para
defender nossos interesses, que começam pela salvaguarda
da liberdade, da democracia, da igualdade social, do
desenvolvimento e do progresso, bem como a busca da
paz interna, e da paz como guia de seu papel no concerto
das nações.”

Mestre Roberto Amaral

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Zé Maria

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“O que se vê habitualmente é a luta das pequenas ambições
(do próprio interesse particular) Contra a Grande Ambição
(que é Inseparável do Bem Coletivo)”.
ANTONIO GRAMSCI
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A Pequena Política, a Grande Política e a Nossa Ambição

Por Mauro Luis Iasi, no Blog da Boitempo

É bastante conhecida entre nós a diferenciação que Antonio Gramsci propõe entre a pequena e a grande política.
Para o comunista sardo, a pequena política seria aquela do dia a dia, da intriga, das disputas parlamentares, dos corredores e dos bastidores; enquanto a grande política estaria ligada à fundação e conservação do Estado, à manutenção de determinadas estruturas econômico-sociais ou sua destruição.

A distinção entre pequena e grande política poderia ser definida de forma sintética na dimensão da ação que se manifestaria no “interior de uma estrutura já estabelecida”, portando, seu limite último é a luta pela predominância “entre as diversas frações de uma mesma classe política” (Cadernos do Cárcere, vol. 3, p. 21).
Em outro texto, Gramsci já havia argumentado que a própria classe trabalhadora quando impõe a si mesma o limite da luta às fronteiras da ordem instituída acaba por se degradar em um mero segmento da classe dominante em luta pelo controle do governo do Estado burguês.

Neste presente momento, entretanto, nos interessa um outro aspecto desse fenômeno descrito por Gramsci.
Para ele, faz parte da chamada grande política, isto é, da ambição de manter o Estado e a ordem que ele garante, a permanente tentativa de “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo à pequena política”, ou, ainda, o diletantismo que tenta colocar aspectos da pequena política como central na ambição de reorganização radical do Estado (idem, p. 22).

Nosso saudoso Carlos Nelson Coutinho já havia anunciado isso na precisa afirmação de que estaríamos vivendo sob a “hegemonia da pequena política”.

Há, no entanto, gradações e nuances tanto na dimensão da grande como da pequena política.

Gramsci, no que diz respeito à política do proletariado, parece identificar a pequena política às questões “parciais e cotidianas”, por isso se dar no interior da ordem instituída, enquanto associa à dimensão estratégia da transformação da ordem econômico-social a grande política.
Mas há questões cotidianas que se articulam de forma diversa com as dimensões estratégicas e que o próprio Gramsci valorizava muito, como a luta por salários, pelas condições de trabalho, pelo estabelecimento de uma cultura operária, entre muitas outras.

Neste sentido, nos parece que o traço que distingue a pequena da grande política não pode ser entendido superficialmente como a dimensão cotidiana daquela que se projeta na luta entre as classes pelo poder político.
Estou convencido que o comunista italiano tem em mente a distinção que em outra parte ele identifica como a “pequena e a grande ambição”, no sentido preciso do fundamento dos interesses em jogo.

Vejamos mais de perto esta distinção.

Desde os remotos tempos da Grécia Antiga, Aristóteles já propunha como critério do juízo das formas políticas e sua degeneração a natureza do interesse: se particular ou público.
Desta maneira, mesmo o governo monárquico exercido por apenas um governante poderia ser virtuoso se visasse o interesse da Polis e não o do governante.
Nesta direção, quando Gramsci nos fala da pequena política, ele visa elucidar os interesses de classe envolvidos numa ou noutra manifestação prática.
Por exemplo, quando deputados negociam seus votos em relação à destruição da previdência social em troca de verbas liberadas para suas emendas orçamentárias eles têm em mente seus interesses imediatos de sobrevivência no parlamento, a relação com suas “bases” e financiadores; ao mesmo tempo o governo quer responder à pauta de exigências de seus verdadeiros donos (em última instância o capital e suas demandas de valorização que implicam na destruição das políticas públicas), daí as intrigas e bastidores escabrosos que acompanhamos.
Tudo isso consiste no cenário da pequena política e de seus pequenos atores, como o presidente da Câmara dos Deputados alçado à estatura de um grande articulador da República.

É aqui que vemos como circo da pequena política opera ideologicamente: reparem o procedimento de colocar a pequena política no centro das atenções, como se fosse a condição para que toda vida pudesse seguir adiante.
Querem nos fazer crer que tal reforma seria a condição para evitar a destruição eminente do país, para a volta dos empregos, para a mítica retomada da economia…
Nos parece claro, contudo, que colocar esse elemento da pequena política em evidência serve na verdade ao propósito de ocultar o cenário geral da luta e as intenções envolvidas.

Assim como o cotidiano da classe trabalhadora passa por demandas imediatas como dissemos, o cotidiano da ordem do capital também tem suas demandas, tais como “sanear” financeiramente o Estado para manter o fluxo adequado do fundo público para a o insaciável apetite do capital financeiro.
Ninguém diria que as classes dominantes estariam perdendo tempo buscando realizar a reforma trabalhista, a reforma da previdência, a reforma tributária e fiscal, destruindo as universidades públicas e o SUS, ao invés de estar se ocupando de seus objetivos estratégicos de garantia e manutenção da ordem capitalista e seu Estado, uma vez que parece evidente que é através destas ações táticas – isto é, a garantia das condições essências ao processo de valorização com as taxas de lucro adequadas – que os objetivos estratégicos são garantidos.

Poderíamos dizer que as classes dominantes operam a pequena política com a intencionalidade da grande política, ainda que seus atores mais imediatos e serviçais dedicados, como o imbecil atualmente alojado na Presidência da República, possam estar restritos aos limites de seus interesses mais imediatos.

No que diz respeito à classe trabalhadora temos aí um grande problema.
Não pela natureza das lutas particulares que temos que enfrentar (lutar contra a reforma da previdência, defender a universidade pública, lutar por moradia, por terra, saúde, educação, salários e condições de trabalho, etc.), mas pela intencionalidade dessas ações, em outras palavras pelo caráter de nossa “ambição”. Como vimos, um elemento essencial da grande política na perspectiva da manutenção do Estado e de sua ordem é “excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”.

A pergunta essencial passa a ser: qual é nossa ambição, ou em outras palavras, o que queremos?

Vejam a armadilha.
É evidente que não queremos a reforma da previdência, ou os termos da barbárie que se estabeleceram com a reforma trabalhista, mas, isso não significa que antes destes ataques a gente desfrutava de um sistema previdenciária incrivelmente justo e uma proteção trabalhista majestosa.
Evidente que devemos defender as universidades públicas deste projeto asqueroso que recebe a enganosa alcunha de “Future-se”, mas isso não significa que é ele que impõe à universidade as práticas privatistas, a venda de serviços e a disputa entre professores num balcão de recursos pautado por uma suposta meritocracia, na verdade uma perversa lógica concorrencial e individualista.
É difícil convencer meus colegas professores universitários da necessidade de barrar uma reforma da previdência quando eles que entraram depois de 2012 já sofrem com a imposição (a palavra é esta, imposição brutal e autoritária) de ter que se aposentar pelo teto da previdência e complementar com um regime misto de capitalização.
Para não falar deste monstrengo que é a EBSERH e a partilha da universidade pela lógica das fundações e suas parcerias privadas.

É inquestionável que a política de destruição ambiental deve ser contida, mas antes de correr à casa do(a) Ministro(a) da Agricultura na busca de um agronegócio civilizado e sustentável seria prudente lembrar qual foi efeito prático de uma política que privilegia o agronegócio em detrimento de uma reforma agrária radical e popular produziu em termos de desmatamento e crescimento da violência no campo.

Em poucas e diretas palavras: nossa ambição é voltar a governar ou transformar os fundamentos econômico-sociais da ordem capitalista e construir as bases para um Estado dos trabalhadores do campo e das cidades?

Como o pronome “nós” é bastante abrangente, diria que coexistem estas duas ambições em nosso ser de classe.
Todos nós lutamos (uns mais decididamente que outros) contra os ataques deste desgoverno, mas nossas intencionalidades se distinguem entre os que assim fazem para voltar ao governo e os que pautam a necessidade de ir muito além disso e criar as bases de um poder popular.

Neste cenário, infelizmente, ainda estamos presos aos limites da hegemonia da pequena política, muito preocupados em responder às bobagens de Ricardo Salles, Abraham Weintraub, Damares Alves, Ernesto Araujo e o chefe dos palhaços que ocupa a presidência da república (com letra minúscula mesmo), ou gastando nossas energias com a troca de afetos entre Freixo e a maluca da JanaÍna Paschoal, ou ainda movendo nossa solidariedade ao conservador presidente de direita da França por que se chocou com a sólida estupidez do inominável miliciano brasileiro.

O problema é que todas essas maluquices deles são emanações da pequena política articuladas nos quadros de uma grande política, enquanto que as nossas… bem, as nossas se articulam no que poderíamos chamar de, no máximo, uma “política média”: resistir aos ataques, sobreviver para continuar lutando.
Neste momento, somos uma classe sem grandes ambições.
A hegemonia ainda é da pequena política.

https://blogdaboitempo.com.br/2019/08/30/a-pequena-politica-a-grande-politica-e-a-nossa-ambicao/

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