Pedro Augusto Pinho: “Mercado” ou a ignorância ao alcance de todos

Tempo de leitura: 6 min
Ilustração: Carlos Lopes

SÉRIE “CONTRIBUIÇÕES PARA A DEFESA DA PÁTRIA”

“Mercado” ou a ignorância ao alcance de todos

Por Pedro Augusto Pinho*, especial para o Viomundo

Todo processo administrativo passa por três etapas: o planejamento, a execução e a avaliação. Podem ser mais detalhadas, implícitas ou explícitas, mas elas sempre existem. Sem elas o fracasso é certo, o prejuízo, garantido.

O mundo ocidental, para este artigo, será definido como a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América (EUA), que se forma na concepção capitalista a partir do século XV.

Ela se desenvolve com as crises do feudalismo, onde se inserem pestes e as cruzadas católicas, e ganha força com a descoberta da América – pela apropriação das riquezas minerais (ouro e prata, principalmente) e vegetais (batata, baunilha, quinina, cacau, milho e outros) – e com a escravidão dos africanos.

Portanto é absolutamente falsa a “lição” de Ludwig von Mises (As seis lições, tradução de Maria Luíza X. de A. Borges, do original inglês “Economy Policy: thoughts for today and tomorrow”, para o Instituto Liberal, RJ, 1993), de que o capitalismo surge da demanda, que “existe em todos os países onde há um sistema de produção em massa extremamente desenvolvido”.

Como igualmente errônea é a pressuposição de Mises, difundida como verdade, de que “as classes governantes”, “os estadistas” não sabiam o que fazer diante de adversidades, e foi “um grupo de pessoas capaz de produzir, de inovar”, para “satisfazer a necessidade de todos” que trouxe a solução.

Apenas esses novos dirigentes e seus prepostos promoveram a apropriação, com extermínio das populações originárias das Américas (o maior genocídio na História do Mundo) e a escravidão (trazida com lucro dos habitantes da África subsaariana), promovendo o que o capitalismo faz com perfeição: a acumulação de capital.

Saiamos da fantasia para a realidade.

Examinando a realidade latino-americana, Theotonio dos Santos (Socialismo ou fascismo, Editora Insular, Florianópolis, 2018) esclarece que “o caráter expansivo e as dimensões das empresas entram progressivamente em choque com as limitações dos mercados internos, com as estruturas exportadoras e o autoconsumo”.

Por que o mercado da América Latina é limitado? Porque foi onde a escravidão perdurou por mais tempo.

No Brasil, ela ainda existe nas formas de trabalho sem qualquer garantia dos “microempreendedores individuais” (MEI), dos empregos “uberizados” e das revogações das leis trabalhistas e previdenciárias, que ocorrem desde 1990 até este 2022, com maior ou menor frequência e intensidade.

Pode-se afirmar, sem receio de incorreção, que o Brasil inicia sua trajetória de Nação Independente, a partir de 1930.

E o 7 de setembro de 1822, perguntará, motivado pelos festejos do bicentenário, o atilado leitor?

Devemos distinguir as independências e as soberanias.

Um país pode obter sua liberdade política, ou seja, passa a escolher seus governantes, pelo voto ou pela sucessão dinástica.

Mas ele tem a restrição de decisão, imposta pelo exterior, quer pela força militar, que garante a manutenção da liberdade política, quer pela econômica, que afiança os recursos para existência do país e seus dirigentes, quer pelo psicossocial, que dá a segurança espiritual, o sentimento de autonomia, pelo credo ideológico que a sociedade está imersa.

Porém, em todas estas condições não existe a Nação Soberana, mas o Estado Servil (apud José Walter Bautista Vidal).

O que ocorreu em 24 de outubro de 1930 foi a Revolução Brasileira. Políticos, militares, intelectuais, profissionais liberais, operários, estudantes, homens e mulheres em todo País se revoltaram com a submissão do Brasil a interesses estrangeiros, com a estagnação econômica, tecnológica, com a falta de autonomia decisória dos dirigentes e se levantaram com armas e coragem para constituir o novo País: a Nação Soberana.

Em 3 de novembro do mesmo ano, Getúlio Dornelles Vargas assume interinamente a presidência do País.

Duas decisões demonstram a vontade e a capacidade soberana: a criação, em 14 de novembro de 1930, do Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública e, em 26 de novembro de 1930, do Ministério do Trabalho, Indústria e do Comércio.

Pela primeira vez, o trabalho ganha a proteção do Estado. É o fim da escravidão.

O trabalho passa a ter a garantia legal, o que se concretiza, em 1º de maio de 1943, com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), iniciativa de brasileiros humanistas e progressistas e da organização dos trabalhadores, que o Ministério impulsionava e abonava.

Muitos anos depois, no período denominado da redemocratização, sindicalistas brasileiros, fazendo coro a “intelectuais uspianos” que combatiam o Estado Nacional, dirão que a CLT era o Ato Institucional (Instrumento dos Dirigentes nos Governos Militares, 1964-1985) dos trabalhadores.

Ou demonstravam ignorância ou má-fé, como muito em breve, com o “mercado” assumindo o governo brasileiro, todos constatariam.

A legislação previdenciária embora mais antiga, beneficiando os funcionários dos correios, da imprensa nacional, das estradas de ferro, da marinha, da casa da moeda e da alfândega, teve, em 1923, a Lei Eloy Chaves criando o sistema das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAP), com extensão a várias categorias profissionais até 1934.

Com a nova Constituição, as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), com o custeio tríplice, dividido entre o empregador, o empregado e a União.

Entre 19 de abril de 1890 e 30 de outubro de 1891, para atender ao positivista, republicano e militar Benjamin Constant Botelho de Magalhães, o governo do Marechal Manuel Deodoro da Fonseca (15 de novembro de 1889 a 23 de novembro de 1891) criou o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Fora a primeira vez, e por muito breve período, dezoito meses, que o Estado Brasileiro assumia a gestão da educação.

Educação, saúde e trabalho significam parte importante da cidadania. A cidadania é dever do Estado, para que possa ser universal e independer da condição do habitante do País.

Em todos os países que prezam o valor da vida e a condição de existência profícua de seus filhos, as questões da cidadania – trabalho, saúde, educação, habitação e mobilidade urbana – são responsabilidade do Estado Nacional. O “mercado”, quando atua, é de modo complementar, subordinado às diretrizes do Estado.

No início deste artigo, afirmamos que planejamento, execução e avaliação estão presentes em toda ação administrativa. O Estado sempre assumirá o planejamento e a avaliação das ações da cidadania, e de maneira a não se deixar conduzir pelas questões do lucro financeiro. O lucro é o bem estar da população; não existe maior para o País.

A cidadania é garantia do amanhã, da segurança do presente e no futuro, da pessoa e seus haveres.

Um povo sem cidadania é sujeito aos mais extremos comportamentos, à intranquilidade e incerteza que transforma irmãos em inimigos.

Por isso, para encobrir as falácias do “mercado”, da ideologia neoliberal, que se elogia a competitividade, mesmo sabendo pela teoria administrativa que a solidariedade produz maiores e mais duradouros resultados.

Outro “papa” neoliberal, além de Mises, é Friedrich A. Hayek (O Caminho da Servidão, tradução de “The Road to Serfdom” por Leonel Vallandro, para o Instituto Liberal, RJ, 1984) que confunde código ético com estrutura administrativa.

Lê-se nesse livro:

“que se deve permitir ao indivíduo, dentro de certos limites, seguir seus próprios valores e preferências em vez dos de outrem; e que, neste contexto, o sistema de objetivos do indivíduo deve ser soberano, não estando sujeito aos ditames alheios. É esse reconhecimento do indivíduo como juiz supremo dos próprios objetivos, é a convicção de que suas ideias deveriam governar-lhe tanto quanto possível a conduta, que constitui a essência da visão individualista”.

Excluídas as imprecisões conceituais, que surpreendem num doutor em direito e em ciências políticas, professor na Universidade de Chicago e na Escola de Economia de Londres, o que propõe Hayek é a guerra permanentemente entre os indivíduos.

A liberdade absoluta dos autoproclamados liberais é uma patologia.

Nenhum homem pode agir em desacordo com a sociedade. O convívio é próprio da natureza gregária, da união indispensável para superar problemas causados pelas condições geológicas e geográficas que modificam a própria vida.

Também a ausência de planejamento, do caminho a trilhar, é um convite à corrupção, ao suborno, à chantagem que atinge seus pontos mais elevados no Brasil sob os governos do “mercado”.

O brasileiro Alberto Guerreiro Ramos foi dos mais profundos analistas da organização e da administração da sociedade humana.

Observou as características que davam respostas diversas a problemas que, apenas aparentemente, eram idênticos, pois variavam conforme as condições físicas e culturais onde surgiam.

Sua obra constitui sólido referencial para análise do Estado Nacional Brasileiro (ver: A Redução Sociológica, 1958; Mito e Verdade da Revolução Brasileira, 1963; Administração e Contexto Brasileiro, 1966; e A Nova Ciência das Organizações, 1981). Dela destacamos:

a) o desejo de poder inspirou estruturas organizacionais. Por conseguinte, não existe um modelo universal e geral, existem modelos mais adequados para determinados poderes.

O “mercado” exige um sistema frouxo de controle e mutável de avaliação, pois não tem compromisso com a situação das pessoas, apenas com o lucro financeiro dos seus dirigentes, muitas vezes residentes fora dos limites do Estado Nacional. Também tem planejamento pouco eficiente, pois os objetivos explícitos não correspondem aos interesses do poder;

b) a isonomia é um conceito que se impõe nas organizações. Já era descrito por Aristóteles (“A Política”, Livro I). Esta prática associativista permite a constante atualização, a mais ampla participação nos processos decisórios, aumentando a sua adequação à realidade, reduzindo o tempo de implementação e produzindo a autogratificação entre os envolvidos;

c) a dimensão das estruturas diz mais respeito à intensidade das relações diretas do que ao porte, limites máximos e mínimos de participantes. Daí o corolário da intensidade em função dos objetivos, os empreendimentos corporativos, as propriedades coletivas, os recursos utilizados;

d) por fim a questão da cognição. Os modelos sistêmicos exigem grande diversidade de tecnologias integradas, sendo a compreensão abrangente uma imposição de eficácia.

Porém as pessoas têm percepções conforme seus desenvolvimentos, formações, e não se devem promover exclusões pelas diferenças.

Assim fortalece a habilidade administrativa para colocar estas integrações de diversos universos cognitivos numa possibilidade efetiva, onde os aspectos psicológicos ganham especial relevância.

Ou seja, o super-homem neoliberal é um coletivo integrado de ações solidárias e não competitivas!

*Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.

**Este é o segundo artigo da série “Contribuições para a defesa da Pátria”, de Pedro Augusto Pinho

Leia também:

Pedro Augusto Pinho: Golpe de 1964, eleições de 2022 e narrativas da pedagogia colonial


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Leia também