Paulo Nogueira Batista Jr.: Lula acerta na economia?

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Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil e reprodução de rede social

Lula acerta na economia?

Por Paulo Nogueira Batista Jr.*

Nas primeiras semanas de governo, o Presidente da República agiu com rapidez na área econômica.

Autorizou diversas medidas e emitiu opiniões sobre a política econômica, dando sequência ao que fez na campanha eleitoral. Se ele vem acertando ou não, é objeto de intensa controvérsia.

A ortodoxia econômica, inclusive e destacadamente a turma da bufunfa e seus numerosos porta-vozes na mídia, parece cada vez mais inquieta.

Esperavam um Lula mais dócil, mais parecido com o Lula 1 do tempo da dupla Antônio Palocci/Henrique Meirelles – período em que os economistas desenvolvimentistas, por sua vez, estavam furiosos, criticando publicamente o governo. Eu mesmo mandava ver, até com certo exagero, diria em retrospecto.

O Lula 3 se configura agora como independente e assertivo na área econômica, e mesmo mais do que o Lula 2, do período Guido Mantega, que já causava certos arrepios. O barulho é atualmente bem intenso. Fazer o quê?

A insatisfação nas hostes mercadistas deve ser enfrentada com paciência e tranquilidade. Com diálogo e medidas consistentes, essas reações talvez possam ser mitigadas. Não acredito muito, confesso, mas manifesto a esperança.

Se fosse economista, o Lula atual seria um desenvolvimentista, keynesiano e heterodoxo.

Não é à toa que a turma da bufunfa dá “arrancos triunfais de cachorro atropelado”, como diria Nelson Rodrigues.

Não sendo economista, é natural que o Presidente dê escorregões quando entra na seara econômica com mais especificidade. Trato de alguns deles na sequência. No fundamental, porém, ele está acertando.

A controvérsia suscitada pelos primeiros passos do governo é vasta. Vou tratar apenas de certas questões relacionadas ao Banco Central (BC), à política monetária e à política fiscal.

Causou celeuma, por exemplo, a opinião do Presidente sobre a sacrossanta autonomia do Banco Central.

Lula lembrou que no Brasil “se brigou muito para ter um BC independente”, mas que, com sua experiência, pode dizer que é “uma bobagem achar que um BC independente vai fazer mais do que do que quando era o Presidente da República quem indicava”.

E acrescentou: “Duvido que o atual presidente do BC seja mais independente do que foi Meirelles’’, observando ainda que o BC, embora independente, não tem cumprido as metas de inflação nos anos recentes.

Está certo o Presidente?

Basicamente, sim, ainda que não em alguns pontos mais específicos. O BC brasileiro se tornou autônomo, não independente. Na literatura acadêmica – que presidente nenhum tem obrigação de conhecer – “independente” é o BC que fixa as próprias metas de inflação; “autônomo” o que busca as metas fixadas pelo governo.

No Brasil, é o Conselho Monetário Nacional (CMN) que fixa as metas e o intervalo em torno do centro das metas.

Mas isso é, em parte ficção, o que dá razão a Lula. A influência do BC no CMN é grande, pois tem um dos três votos e exerce a secretaria. Na prática, o BC fixa as metas para si mesmo, pelo menos em certos períodos.

Já escrevi sobre isso (ver “Conselho Monetário e Banco Central – uma revisão necessária”, 30 de maio de 2022; na íntegra, ao final).

Agora, pelo que sei, o CMN será integrado pelo ministro Fernando Haddad, que o preside, pela ministra Simone Tebet e pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto.

Admitindo-se que a Tebet siga uma linha mais conservadora, Haddad será minoria no CMN. E o BC talvez tenha condições, na prática, de continuar fixando as próprias metas.

Outro ponto é que, diferentemente do que sugere a fala de Lula, o presidente e os diretores do BC continuam sendo indicados pelo Presidente da República.

O que mudou? Com a lei de autonomia, aprovada durante o governo Bolsonaro, o comando da autoridade monetária tem mandatos fixos, não coincidentes com o do Presidente da República.

Lula sabe disso, com certeza. O que ele quis dizer? A meu juízo, que o atual presidente do BC não será mais independente do que foi Henrique Meirelles, presidente do BC durante o Lula 1 e o Lula 2.

Lei de autonomia ou não, Roberto Campos Neto terá de coordenar a política monetária com a política fiscal e outros aspectos da política econômica, como ocorre, aliás, em todos ou quase todos os países. Espero que isso aconteça realmente. Veremos.

Lula declarou, ainda, que uma meta de inflação excessivamente ambiciosa atrapalha o crescimento econômico. “Por que não estabelecer 4,5%, como fizemos nos meus mandatos anteriores?”, indagou.

A controvérsia a esse respeito é internacional e ocorre também nos países desenvolvidos, onde também se questiona se os bancos centrais não fixaram metas de inflação excessivamente ambiciosas.

A opinião do Presidente da República é defensável – conta com apoio de muitos especialistas tanto aqui como no exterior.

No Brasil, as metas atuais são de 3,25% para 2023 e de 3% para 2024. Este é o centro das metas, que têm um intervalo de 1,5 ponto percentual para cima e para baixo em torno desse centro.

Seria perfeitamente razoável, na próxima ocasião em que o CMN se reunir para tratar do tema, aumentar um pouco o centro da meta de 2024 e 2025, digamos para 3,25% e o intervalo para 2 pontos percentuais.

O teto da meta ficaria assim em 5,25%. Um ajuste minimalista que, entretanto, reduziria a pressão para que o BC mantivesse juros altos demais, prejudicando o crescimento, o emprego e as finanças públicas.

Repare, leitor(a), que a taxa básica de juro fixada pelo BC afeta as finanças públicas direta e indiretamente, por pelo menos dois canais: diretamente, via custo da dívida pública interna; indiretamente, via produto e emprego.

No campo fiscal, o governo Lula tem tomado decisões importantes. Destaco duas.

Primeira: no conjunto de iniciativas fiscais anunciadas pelo ministro Fernando Haddad em janeiro, foram propostas, por Medida Provisória, mudanças o âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), que corrigem distorções gritantes.

A mudança mais significativa foi a volta do chamado voto de qualidade, isto é, voto de desempate da União.

Durante o governo Bolsonaro, havia sido aprovada no Congresso uma medida que suprimia o voto de qualidade e dava ganho de causa ao contribuinte em caso de empate no CARF.

Num Conselho paritário, com número igual de membros da Fazenda e dos contribuintes, essa medida vinha levando a derrotas sucessivas da União.

A Medida Provisória de Haddad suscitou protestos das grandes empresas e dos advogados tributaristas que ganham fortunas defendendo essas empresas. Bom sinal? Ou ótimo?

Segunda decisão: a manobra inteligente e habilidosa de eliminar o famigerado teto de gastos, criado no governo Temer, já na PEC de transição.

Ficou estabelecido que nova regra ou âncora fiscal, definida em lei complementar, substituirá o teto constitucional de gastos. Ponto. De 2024 em diante, o teto Temer deixa de existir. Um drible sensacional, daqueles de deixar o adversário no chão.

Em resumo, Lula está batendo um bolão como economista.

***
Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”.

*Paulo Nogueira Batista Júnior é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

Foto: Agência Brasil

Conselho Monetário Nacional e Banco Central – uma revisão necessária, por Paulo Nogueira Batista Jr.

Passaram a boiada. Não só no tema ambiental, como no campo da moeda e do câmbio.

Por Paulo Nogueira Batista Jr., no GGN, em 30 de maio de 2022 

Fala-se muito em revisão do arcabouço fiscal e da legislação trabalhista a partir de 2023, admitindo-se, claro, que o atual Presidente da República não seja reeleito. Perfeito. Mas não vamos esquecer que seria preciso rever também o arcabouço monetário. Muita barbaridade foi feita nessa área nos últimos anos. (Aliás, em que área não?!)

Passaram a boiada. Não só no tema ambiental, como no campo da moeda e do câmbio. Vou ser modesto, leitor.

Nem quero discutir hoje a autonomia do Banco Central (BC), que prevê mandatos fixos e não coincidentes com o do Presidente da República para o presidente e os demais diretores da autoridade monetária.

Se for de fato eleito, Lula herdará, para a fase inicial do seu governo, o presidente e a maioria dos diretores indicados por Bolsonaro/Guedes. Porém, Lula e seus porta-vozes já deixaram claro que pretendem conviver com isso. O candidato não tem ânimo ou não se sente em condições de políticas enfrentar essa parada.

Mesmo assim, há muito que pode e deve ser feito na área monetária. Refiro-me a dois temas interligados: a) a composição do Conselho Monetário Nacional (CMN); e b) a lei do marco cambial.

Ampliação do Conselho Monetário Nacional

O CMN é o órgão que dá instruções ao BC e toma outras decisões importantes.

Fixa, por exemplo, as metas de inflação para o BC e orienta o sistema financeiro. As dificuldades aqui residem, por um lado, na composição inadequada do CMN e, por outro, no seu esvaziamento por decisões recentes.

O CMN tem atualmente apenas três membros: o Ministro da Economia, o Secretário da Fazenda do Ministério da Economia, subordinado ao primeiro, e o Presidente do BC.

O Ministro da Economia preside o CMN e a sua secretaria é exercida pelo BC.

Quem tem o mínimo de traquejo sabe que exercer a secretaria de um órgão dá controle da agenda e do encaminhamento dos temas, conferindo muito poder e influência. Assim, o BC tem um dos três votos e o comando da agenda. Na prática, dá instruções a si mesmo.

Desde o Plano Real, o CMN era integrado pelo Ministro da Fazenda, o Ministro do Planejamento e o Presidente do BC, com secretaria do BC. Lula e Dilma não mexeram nisso. Houve cogitações de ampliar o CMN em 2004 e 2005, com apoio do Conselho do Desenvolvimento Econômico e Social, da CUT, da Fiesp e da CNI, mas o assunto acabou não avançando.

Com a fusão dos ministérios da área econômica no governo Bolsonaro, o que era ruim ficou pior. Desapareceu não só o Ministério do Planejamento, mas também o da Indústria e Comércio e até o do Trabalho.

Imagino que um eventual governo Lula desfaria essa ineficiente centralização da área econômica nas mãos de um ministro só, recriando os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O do Trabalho já foi recriado nesse meio tempo.

Pois bem, por que não incluir no CMN, além do Planejamento, os ministérios da Indústria e Comércio e do Trabalho?

E, quem sabe, também o da Agricultura?

E porque não tornar o CMN ainda mais representativo, incluindo um representante da área empresarial e outro dos trabalhadores e, talvez, alguém da área acadêmica?

O governo eleito conservaria a maioria, mas daria voz e voto a representantes da sociedade. O CMN passaria então a ter oito ou nove membros. Para evitar um possível viés inflacionário, pode-se prever que a secretaria continue com o BC e que o Ministro da Fazenda, além de presidir o CMN, tenha um papel claramente preponderante, algo como o poder de vetar determinadas decisões, por exemplo.

Lembro que na época da ditadura, nesse ponto mais democrática, o CMN era muito mais amplo. Desde os tempos da sua criação em 1964 até 1994, o CMN contava com a presença de ministérios setoriais, de presidentes de bancos públicos e de representantes do setor empresarial e dos trabalhadores.

Reverter o esvaziamento do Conselho Monetário Nacional

A ampliação do CMN não seria suficiente, entretanto. Ocorre que, no governo Bolsonaro, o CMN foi esvaziado com a transferência de funções estratégicas para o BC. Veja o absurdo, leitor. Decisões estratégicas foram transferidas para um BC autônomo em relação ao governo eleito.

Pelo novo marco cambial, aprovado praticamente sem discussão pelo Congresso em 2021, o BC ficou autorizado a liberalizar as transações internacionais de capital, a seu critério, podendo no limite decretar a conversibilidade plena da moeda nacional.

Ora, medidas desse podem ser defensáveis ou não, há controvérsias entre economistas, mas são inegavelmente de enorme importância, de difícil reversão, e não podem ficar nas mãos exclusivas da combinação de financistas e tecnocratas que costuma comandar o BC – agora com mais independência em relação ao poder político.

O BC ficou também autorizado a ampliar as hipóteses de uso interno da moeda estrangeira, recebendo carta branca para regulamentar contas em moeda estrangeira, inclusive quanto aos requisitos e procedimentos para sua abertura e movimentação.

De novo, cabe frisar, a seu critério exclusivo, sem passar pelo crivo do CMN ou de mais ninguém. O risco é que a economia brasileira possa ser paulatinamente dolarizada, seguindo o caminho infeliz da maior parte dos países latino-americanos.

O BC merece respeito, tem um bom quadro de funcionários e, regra geral, desempenha com competência e seriedade suas atribuições. A lei do marco cambial tem certamente aspectos positivos, de modernização e simplificação das transações com moeda estrangeira.

Mas é preciso separar o joio do trigo. Manter as mudanças que trazem eficiência, abandonar as que criam vulnerabilidades para a economia brasileira e trazem o risco de dolarização.

Por competente que seja, o BC não deve poder tomar decisões monetárias e cambiais que afetam o futuro do País, de forma profunda e difícil de reverter, por decisão autônoma, à revelia do poder político eleito. Não funciona assim em parte alguma do mundo, até onde sei.

Caberia devolver, portanto, a um CMN ampliado e mais representativo, as responsabilidades indevidamente transferidas ao BC.Essa revisão do arcabouço monetário seria um passo importante para corrigir distorções introduzidas no passado recente.

***

Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 27 de maio de 2022.

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Comentários

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Pedro de Alcântara

Essa conversa interminável sobre política monetária, inflação, taxa de juros, economia, mas que nunca entra em considerações sobre a produção, me faz lembrar o conto do russo Michael Saltykov, Um Mujick e Dois Funcionários.

Zé Maria

Ê Raro encontrar um País como o Brasil
em que a Política Monetária e Cambial,
para controlar a Inflação, mata o Povo de Fome.

    Zé Maria

    E o que é mais Sarcástico:
    não controla a Inflação.

    Zé Maria

    Para que haja Controle do Aumento de Preços,
    o Manual Neoliberal manda aumentar a Taxa Básica de Juros,
    desde que haja Inflação de Demanda,
    o que evidentemente não é o caso do Brasil,
    precisamente porque há cada vez Menos Consumo de Produtos,
    pois a População não tem Poder Aquisitivo nenhum.

    Assim, é dessa forma, com a Conversa Enganosa do Aumento da Taxa de Juros para supostamente controlar a Inflação,
    que o Mercado Financeiro se apropria do Orçamento Público e provoca o Endividamento Interno,
    uma vez que a taxa básica de juros (SELIC) é um dos principais indexadores de Remuneração da Dívida Pública Interna (DPI); um outro indexador da DPI, veja só, são os Índices de Preços ao Consumidor (IPC, IGPM, INPC, etc),
    daí que não é interessante ao Mercado reduzir a Inflação.

    Portanto, a Elevação da Taxa de Juros, para Controle da Inflação, é uma Grande Mentira no Brasil.

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