
A campanha eleitoral e chute na canela do estereótipo de gênero
por Marina Lacerda*
É a segunda vez em que não uma, mas duas mulheres figuram no centro do debate presidencial no Brasil. Evidente que isso contribui para a igualdade de gênero, ao demonstrar que as mulheres podem ocupar relevantes espaços de poder.
Mas o avanço simbólico não é assim linear. Quando Dilma se apresentou como candidata aos eleitores em seu programa de TV da semana passada, eis que surge alguém que acorda cedo, trabalha muito, tem uma vida normal, “cozinha”, “trata do jardim” e “cuida da residência oficial com esmero de qualquer dona de casa” (!).
Só depois de pagar esse pedágio do estereótipo de gênero é que seus marqueteiros podem colocá-la como a Chefe de Governo e de Estado que é. Só depois do estereótipo somos chamados às políticas públicas que a mulher forte capitaneou em seu mandato, e que ela é mostrada, enfim, como um “coração valente”.
Em seu segundo programa Dilma é aquela figura forte que fez “n” obras de infraestrutura. Mas antes e depois de ser tomada como grande realizadora, sua campanha precisa deixar bem claro não esquecer que ela é mulher e, como tal, tem seu lugar. Assim é que, no terceiro episódio, a candidata segue sua sina: é chamada para falar “sobre seu neto e a cozinha do Palácio da Alvorada”.
Ela diz que faz um bom bacalhau no final de semana. Aparece servindo café e fala da sua rotina como avó. Mais uma vez, só depois de pagar o tributo de gênero é que a presidenta aparece num posto essencialmente masculino, como Chefe de nossa República em fóruns internacionais.
A pesquisa Mulheres nas eleições 2010 apontou que o uso de caricaturas desse tipo é uma estratégia para dialogar com uma sociedade machista. Se existe a avaliação de que esse tipo de exposição da Dilma é necessário eleitoralmente, também temos que reconhecer que seu efeito simbólico é terrível. É como se se dissesse que à mulher só é possível participar dos espaços de poder se ela continuar sabendo muito bem que seu reino é o doméstico.
Marina Silva não fez nenhuma pregação a respeito nos pouco mais de dois minutos dedicados à propaganda eleitoral que teve na semana que passou. Mas a coordenadora de seu plano de governo, Neca Setúbal, fez afirmações bastante contundentes, em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues (Folha de São Paulo). Para ela, “Dilma reproduz uma liderança masculina”. Sua linha de raciocínio é obtusa: o “século 21 é o século do novo” e nos coloca o desafio de construir uma sociedade com “um olhar muito mais feminino. A mulher é que dá à luz”. Dilma reproduz o masculino porque é “aquela pessoa dura, que bate na mesa, que briga, que fala que ‘eu vou fazer, eu vou acontecer, eu sei’”.
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É claro que atributos da sensibilidade são importantes no universo da política – como em qualquer outro. Aliás, a maior liderança política das últimas décadas no Brasil, Lula, é marcadamente um ser intuitivo. E é um homem. Mas apontar essa característica como um dever das mulheres é dizer que, se não for assim, são menos legítimas para posições de poder. Trata-se de um chute na canela. Um golpe baixo. Um desserviço ao esforço de décadas das mulheres de conquistarem o espaço público.
Sustentando a concepção do “novo” século XXI está um discurso obscurantista conservador, que atrela normativamente o feminino à maternidade; uma perspectiva essencialista que aprisiona as mulheres a uma suposta natureza, que apenas serve para justificar a distribuição desigual e injusta do trabalho ao longo do tempo e que, por isso, vem sendo contestada de forma persistente pelo feminismo. Nem as mulheres são naturalmente dóceis nem os homens são naturalmente brutos.
Nem as mulheres devem ficar vinculadas inexoravelmente à dedicação à família nem cabe só aos homens gerir a coisa pública.
É verdade que existem, na teoria feminista, correntes “diferencialistas”, que defendem a positividade das particularidades de homens e de mulheres. Algumas teóricas entendem que a esfera pública deve ser redefinida a partir da experiência da maternidade, centradas na ideia de que a relação da mãe com seus filhos não se compreende em termos de interesses instrumentais e de ganhos individuais. Para outra teórica, a civilização ocidental é vociferada de forma masculina; a presença de mulheres na política traria importante voz diferente.
Ainda que se aceite que existe uma contribuição particular que as mulheres podem oferecer, isso não significa que devem se comportar de determinada forma que atenda a requisitos afetivos. Como outras correntes do feminismo enfatizam, essas identidades essencialistas precisam ser desconstruídas. As mulheres não podem ser definidas a partir do papel que ocupam na reprodução. E podem ser o que bem entendem, sem precisarem dizer que se preocupam com a casa ou se mostrarem dóceis para isso.
O déficit de participação de mulheres na política é um fenômeno mundial. E como é óbvio – e reafirmado pelas pesquisas – isso se deve à divisão sexual do trabalho: às mulheres, o cuidado para com a família, o trabalho doméstico; aos homens, as interações mais amplas e o espaço público. Isso, porém, não explica tudo.
O Brasil tem uma participação de mulheres na política tão pequena que é ridícula se compararmos. Segundo a União Interparlamentar, no mundo, em média, as câmaras de deputados possuem 22,3% de representação feminina. Nas Américas, 25,6%. No Brasil, ínfimos 8,8%. Média menor inclusive do que aquela dos Estados Árabes (17,8%). No Iraque, são 25,3% da câmara baixa; na Arábia Saudita, onde as mulheres não podem sequer dirigir, são 19.9%! Permanecem em aberto na literatura as razões dessa proporção tão pequena no Brasil.
Apesar disso, integramos o seleto grupo de países que têm uma presidenta. Isso contribuirá simbolicamente para a igualdade de gênero tanto mais quando menos se estereotipar a figura da mulher, sob pena de se manter seu confinamento no espaço doméstico. Deve-se avançar no sentido de ser irrelevante a diferença entre os gêneros para a atuação na esfera pública. Do contrário, serão sempre intrusas – ou, na melhor das hipóteses, convidadas excepcionais – na condução dos temas que dizem respeito à coletividade.
O período de campanha é, de certa forma, um vale-tudo. Mas deveria ser encarado como um momento de formação dos cidadãos. Uma boa contribuição que as candidaturas poderiam dar ao Brasil é estabelecer um jogo justo em relação às questões de gênero, deixando de lado os golpes baixos que só servem para estigmatizar e reforçar a subordinação feminina.
Marina Lacerda é mestra em Direito Constitucional pela PUC/Rio e doutoranda em Ciência Política pelo IESP/UERJ.
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