Carta aberta ao governador Tarso Genro, do Rio Grande do Sul
De: Vila Vudu, São Paulo
Em: 10/5/2011
Quem puder, envie, por favor, ao governador Tarso Genro (não temos o endereço dele)
Sancione a “Lei da Língua” do Deputado Carrion, Governador!
Imagine-se que Newton (o dos Principia) recebesse, um belo dia, uma carta de um dos professores da Igreja do século 17, que lhe dissessem que “não se atreva!” [a escrever leis sobre os céus], porque só Deus é autoridade para escrever leis sobre os céus.
O absurdo seria o mesmo, se um gnomo, um dia, escrevesse à presidenta Dilma e lhe dissesse que “não se atreva!” [a escrever leis sobre a Floresta Amazônica], porque só os gnomos são autoridade para escrever leis sobre florestas.
Esses exemplos caricatos são úteis, porque fazem aparecer o absurdo evidente: primeiro, porque em todos os casos, nas sociedades humanas, sempre há e sempre haverá quem se interesse por legislar sobre o mundo social. Evidentemente, quem se interesse por legislar sobre línguas, tem e deve ter perfeito direito democrático de fazê-lo. A ideia de que “não se atreva a legislar” sobre isso ou aquilo é doideira – quando não é o liberalismo conservador mais leviano e arrogante –, ou de professores de igrejas e igrejinhas, ou de gnomos.
Em segundo lugar, também é perfeito absurdo pretender que “não se legisla sobre língua”.
A língua é construto social, só existe inteira dentro da sociedade da qual é parte constitutiva e potência constituinte. Assim, a língua está sujeita, como todos os construtos sociais e potências constituintes, às vicissitudes em função das quais a humanidade se faz leis.
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Portanto, pode-se definir como direito inalienável das sociedades (1) legislar sobre o que bem entenderem; e (2) legislar sobre língua, se uma ou outra sociedade entender que alguma lei sobre língua é necessária ou útil.
O argumento de que não se poderia legislar sobre língua, porque a língua “é viva”, como escreveu o professor Idelber Avelar em “Carta aberta ao Governador Tarso Genro” (em http://contextolivre.blogspot.com/2011/05/carta-aberta-tarso-genro-sobre-lingua.html, e adiante, cortada-colada para referência) é tão completamente absurdo quanto pretender que não se poderia legislar sobre a preservação da Floresta Amazônica. A Floresta Amazônica e todos os seres que nela e dela vivem, afinal, são tão perfeita e absolutamente “vivos” quanto qualquer língua e seus falantes. Ou que não se poderia legislar sobre a preservação de tartarugas e golfinhos, sob o argumento segundo o qual, de tão “vivos” que são, poderiam ser deixados entregues às forças… da seleção natural.
O argumento segundo o qual a vida é viva e, por isso, poderia ser deixada, rendida, à “natureza”, é tão epistemologicamente e historicamente e linguisticamente ridículo, que quase nem se vê o quanto é reacionário. É perfeita, rematada – e muito reacionária – bobagem.
Verdade, mesmo, é que já se legislou, com efeito muito produtivo, até sobre língua dita “morta”: Israel fez exatamente isso, com extraordinário, sensacional sucesso, ao fazer do hebraico dado como língua morta, a língua vivíssima que hoje já é primeira língua de milhões de falantes. O que Israel fez fê-lo por lei e não teria feito sem leis (aliadas a muito bom saber lingüístico, claro, de lingüistas que JAMAIS diriam que “não se legisla sobre língua” – o mantra tolo, a asnice oficial, de parte significativa da patética ‘linguística’ brasileira).
Verdade é que, exatamente ao contrário do que nunca se cansam de repetir alguns linguistas brasileiros, o mundo está cheio de “leis sobre línguas”, sempre requisitadas pelas sociedades como instrumento necessário.
Há milhares – sim, senhor! Milhares – de leis sobre língua, produzidas em todo o planeta, exatamente em 318 países, reunidas, por exemplo, na página “L’Amenagement Linguistique dans le Monde”, mantida pela Université Laval, do Canadá, na Internet, em http://www.tlfq.ulaval.ca/AXL/. Essa página é gigantesca, e os interessados encontram lá leis sobre línguas, para todos os gostos.
Assim se dá por provado que, sim, se legisla sobre língua. E que se pode legislar muito democrática e muito legitimamente sobre língua –, exatamente o contrário do que ensina o prof. Idelber Avelar, dentre outros ‘inteligentíssimos’ ou metidos a.
As leis de língua podem ser abordadas a partir de uma posição política e, também, a partir de uma posição científica. Nos dois casos, claro, a discussão pode ser complexa, mas a evidência de que uma discussão seja complexa jamais foi argumento democraticamente válido para fugir da discussão e pretender ‘resolver’ a questão por argumentos de autoridade.
Um caso de lei de língua abordada por posição política clara pode ser lindamente exemplificada pelo discurso dos guerrilheiros angolanos que, um dia, souberam que havia em discussão no Brasil uma lei apresentada como “de preservação da língua portuguesa do Brasil”. Aqueles atormentados guerrilheiros angolanos correram a se manifestar contra a tal lei.
Rejeitavam a lei que lhes parecia reacionária, e, claro, pediram outras leis, que mais lhes interessavam. Disseram que:
[Guerrilheiros de Angola, em 1979] “Não, não, de jeito nenhum! Essa lei é inadmissível! Se a língua portuguesa for muito protegida, estamos é danados, nós, de vez! Cá em Angola, só os ricos falam português. Os pobres falam mais de cem línguas nativas, e esse, aliás, é um dos motivos pelos quais pouco se entendem entre si e absolutamente não se entendem com os ricos. E os vendedores planetários de armas só falam inglês.
Então, por favor, quem quiser ajudar Angola, que escreva logo uma lei que obrigue as escolas a ensinar todas as línguas a todos os pobres: o português dos ricos, faz favor, para todos; e o inglês dos comerciantes de armas, no mínimo, só para nós, para que eles nos engambelem menos facilmente. Sendo possível, ok, que ensinem inglês para todos. E além dessas duas línguas, e também para todos, e para que não se percam as línguas tradicionais que já estão por um fio, e nas quais os pobres somos criados – que ensinem também línguas tribais, todas, para todos.
Sendo possível, escrevam também uma lei que obrigue as escolas a alfabetizar as crianças nas línguas de suas respectivas tribos. Onde e quando as línguas tradicionais tribais não conheçam a escrita, chamem linguistas competentes que construam grafias. A grafia, afinal, sempre é artificial e sempre aparece muito depois da língua falada. Os tais linguistas que trabalhem e façam serviço útil aos pobres, afinal, prá variar!”
Outro bom exemplo de lei de língua, também proposta como ativa militância política democrática e de resistência cultural e política, é o que se vê no Brasil, no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas.
Ali, em 2002, escreveu-se, votou-se e aprovou-se muito democraticamente – belo trabalho das comunidades indígenas locais e do Instituto de Investigação e Desenvolvimento de Políticas Lingüísticas (Ipol) a pedido da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) – uma lei que co-oficializa as línguas Nheengatu, Tukano e Baniwa: a lei municipal 145/2002, aprovada no dia 22/11/2002, proposta pelo vereador indígena Camico Baniwa. Por essa lei, tornaram-se “línguas co-oficiais”, naquele município, as línguas ali faladas. As populações indígenas ganharam o direito de ter seus filhos alfabetizados nas suas línguas tradicionais e em português. As placas de rua são obrigatoriamente apresentadas nos dois (e mais) idiomas locais.
E há, na cidade, jornais absolutamente diferentes, um para cada idioma ali co-oficial.
É muito mais do que há, por exemplo, em São Paulo, uma das mais pujantes metrópoles do planeta, mas onde, desgraçadamente, tooooooooooooooooooooodos os jornais e noticiários de televisão são absolutamente idênticos (e identicamente desdemocráticos e desdemocratizatórios).
A lei de língua de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Brasil, como se vê, é lei que foi requisitada e conquistada por uma comunidade social humana vivíssima, e lei perfeitamente democrática.
A possibilidade de legislar-se sobre língua, apresentada e defendida como “posição científica”, também se comprova em magníficos trabalhos no campo da lingüística séria – em muito diferente da lingüística leviana e pretensiosa que se ensina no Brasil.
Há sólidos trabalhos de lingüística, com declarado conteúdo político, que fortemente recomendam que os países defendam por lei, seus idiomas locais ou nacionais, no caso de que os sintam cultural ou politicamente (ou, até, militarmente!) ameaçados. Nesses casos, fala-se de “políticas linguísticas de democratização e preservação de idiomas que se sintam ameaçados”.
O exemplo mais famoso desses estudos, no mundo – embora continue perfeitamente ignorado na ridícula linguística brasileira –, é o trabalho do Professor Robert Phillipson, dinamarquês, exposto em seu livro, de 1992, Linguistic Imperialism (sem tradução para o português, apesar de ser item obrigatório de bibliografia especializada em universidades de todo o planeta).
Bom resumo do seu pensamento atualizado encontra-se na conferência que o prof. Phillipson fez no simpósio “DUO IV Dialogue under occupation”, Washington DC, 2-4/6/2010, “Americanisation and Englishisation as processes of global occupation” [“Americanização e anglicização como processos de ocupação global”] (em http://www.cbs.dk/en/Research/Departments-Centres/Institutter/ISV/Menu/Staff/Menu/Videnskabelige/Videnskabelige/Professor-Emeritus/phillipson, PDF, em inglês). No resumo dessa conferência, escreveu o prof. Phillipson, ano passado:
“Os que defendem o idioma inglês como universalmente válido, aí incluída a atual moda na lingüística aplicada, de analisar o inglês como “língua franca”, veem o inglês como lingua nullius [língua de ninguém], separada das forças que comandam sua expansão política. A integração da educação superior na Europa, está sendo coagida a seguir um único padrão, segundo o qual “internacionalização” seria sinônimo de “formação em inglês”. Alguns países europeus, contudo, já começam a construir políticas para o idioma de modo a assegurar que o inglês seja mantido como língua assessória. Linguistas críticos, que lutam a favor de maior justiça social, já trabalham para demonstram como a ocupação, física e mental, está sendo legitimada, além de militarmente, também pelo idioma; e que é possível construir políticas linguísticas de resistência local.”
E é nesse contexto de resistência política e cultural – resistência democrática e legítima, que nada tem de xenófoba, resistência tão legítima quanto é legítima a luta dos indígenas do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que visam à preservação de seu idioma histórico e cultural tradicional – que se inscreve o projeto de lei 156/2009, de autoria do Deputado Raul Carrion (PCdoB).
Esse projeto de lei, que aguarda – e conta com – a sanção do governador Tarso Genro, “institui a obrigatoriedade da tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua portuguesa, em todo documento, material informativo, propaganda, publicidade ou meio de comunicação através da palavra escrita no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul”, e foi aprovado dia 19 de abril pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
Diferente do prof. Idelber Avelar, que ouve cantar vozes “modernas” na oposição a essa lei, nós só ouvimos, na oposição a essa lei de resistência política também pelo idioma, as vozes do mais lamentável conservadorismo arrogante, mal disfarçado sob véus ‘linguísticos’, e de uma tão duvidosa e suspeita quanto só autoproclamada “esquerda”.
É “meio irresistível dar algumas risadas”, na escrita enrolada do professor Idelber Avelar, não, evidentemente, da lei, mas dos saberes autoproclamados do professor Idelber, que se apresenta como alguém que conheceria “algo acerca de como funciona o idioma”.
A nenhum dos indígenas do Alto Amazonas, que lutaram muito para ver protegidas por lei as suas línguas históricas tradicionais e venceram sua luta, jamais ocorreu apresentar-se ao mundo como alguém que conhecesse “algo acerca de como funciona o idioma”. Aquelas pessoas, os indígenas falantes e os lingüistas empenhados que trabalharam para construir e fazer aprovar aquela lei, apresentaram-se ao mundo e à luta, no máximo, como falantes política e democraticamente empenhados numa duríssima, dificílima, luta política. Não há melhor saber do que esse, em matéria de “como funciona o idioma”.
E esse bom saber reivindicou a proteção da própria língua. É o que conta. O resto, como ensinou Mao Tse Tung, “só a luta ensina” (e, como samba, não se aprende na escola nem em cursos de lingüística no Brasil).
Esperamos pois, governador Tarso Genro, que o senhor sancione a lei recém aprovada. Com isso, o Rio Grande do Sul estará na vanguarda nacional da luta pela preservação da língua portuguesa do Brasil, orgulhosamente posto ao lado dos valentes indígenas de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas.
Com essa lei aprovada, sancionada e vigente, o Rio Grande do Sul estará também na vanguarda nacional da luta de resistência contra o imperialismo lingüístico. Até no Department of International Language Studies and Computational Linguistics da Universidade de Copenhagen, Dinamarca, haverá muita gente que saberá nos aplaudir. Os mesmos, precisamente, que aplaudiram os indígenas de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas. E, isso, ainda sem dizer que os indígenas de São Gabriel da Cachoeira também muito aplaudirão o governo democrático do Rio Grande do Sul. O que mais se poderia desejar, em matéria de legitimação democrática?
E a “esquerda” que riu da lei do Deputado Carrion, que ria. (O que mais, cá entre nós, se poderia esperar dessa “esquerda” já completamente endireitada?! Eles que vão rindo… Eles e o galaico-português metido a ‘erudito’ e só reacionário, lá deles!)
Assina: COLETIVO DE TRADUTORES VILA VUDU
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PARA REFERÊNCIA:
Carta aberta a Tarso Genro: Sobre a língua viva não se legisla. Vete a lei, Governador
De: Idelber Avelar
Em: http://contextolivre.blogspot.com/2011/05/carta-aberta-tarso-genro-sobre-lingua.html
Excelentíssimo Governador Tarso Genro:
Eu e uma legião de eleitores de esquerda fomos surpreendidos, no dia 19 de abril, com a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, do projeto de lei 156/2009, de autoria do Deputado Raul Carrion (PCdoB), que “institui a obrigatoriedade da tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua portuguesa, em todo documento, material informativo, propaganda, publicidade ou meio de comunicação através da palavra escrita no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul”. Foi o estranho dia em que a direita representou a voz da sensatez. Apesar de que, felizmente, não está claro que o Sr. sancionará essa nociva e inútil lei, o Sr. condenou as chacotas e declarou que só as pessoas “muito caipiras” podem se opor às tentativas de defesa do vernáculo. Começo esta carta aberta atendendo o seu pedido de que a matéria seja tratada com seriedade, embora, que fique dito, para quem conhece algo acerca de como funciona o idioma, é meio irresistível dar algumas risadas de uma lei como esta. Noto, no entanto, minha discordância com seu uso do termo “caipira”. Em seu sentido pejorativo—que eu costumo evitar, aliás–, “caipira” é, segundo Houaiss, o “acanhado, pouco sociável”, enfim, justamente aquele que constrói cercas em volta de si mesmo. Caipiras são, portanto, os defensores da lei.
Tenho esperança de que o Sr. consultará alguns dos extraordinários profissionais do Instituto de Letras da UFRGS ou da Faculdade de Letras da PUC/RS — duas instituições de ponta, que estão entre as melhores do Brasil, tanto em literatura como em Linguística — antes de sancionar essa sandice. Sim, porque de sandice se trata.
A Linguística, como qualquer outra disciplina, possui diversas correntes e debates internos. Mas há um postulado do qual nenhum linguista discordaria: a língua é organismo vivo, em constante transformação. O dicionário é só uma sistematização pontual — um recorte — da coleção de vocábulos utilizados pelos falantes da língua em determinado momento. Essa coleção vai mudando, com a queda em desuso de algumas palavras e a incorporação de outras. É um processo natural da língua. Nele, os chamados estrangeirismos aparecerão sempre. Especialmente num mundo globalizado, eles são inevitáveis e, acima de tudo, não reguláveis por decreto, ainda mais um decreto estadual. Os próprios mecanismos internos da língua se encarregam de incorporar alguns, expelir outros, aportuguesar outros. Aliás, se formos ser rigorosos e eliminar todos os estrangeirismos, terminaremos onde? No tupi-guarani ou na passagem da vulgata latina ao galaico-português?
PS do Viomundo: O leitor Eric adverte que o texto de Idelber Avelar, conforme reproduzido no texto da Vila Vudu, é incompleto. Aparentemente foi reproduzido de forma incompleta pelo Contexto Livre. Seguimos o link oferecido por ele, para reproduzir o texto completo:
Carta aberta a Tarso Genro: Sobre a língua viva não se legisla. Vete a lei, Governador
02 de maio de 2011 às 14:28, blog Outro Olhar, da Revista Forum
Excelentíssimo Governador Tarso Genro:
Eu e uma legião de eleitores de esquerda fomos surpreendidos, no dia 19 de abril, com a aprovação, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, do projeto de lei 156/2009, de autoria do Deputado Raul Carrion (PCdoB), que “institui a obrigatoriedade da tradução de expressões ou palavras estrangeiras para a língua portuguesa, em todo documento, material informativo, propaganda, publicidade ou meio de comunicação através da palavra escrita no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul”. Foi o estranho dia em que a direita representou a voz da sensatez. Apesar de que, felizmente, não está claro que o Sr. sancionará essa nociva e inútil lei, o Sr. condenou as chacotas e declarou que só as pessoas “muito caipiras” podem se opor às tentativas de defesa do vernáculo. Começo esta carta aberta atendendo o seu pedido de que a matéria seja tratada com seriedade, embora, que fique dito, para quem conhece algo acerca de como funciona o idioma, é meio irresistível dar algumas risadas de uma lei como esta. Noto, no entanto, minha discordância com seu uso do termo “caipira”. Em seu sentido pejorativo—que eu costumo evitar, aliás–, “caipira” é, segundo Houaiss, o “acanhado, pouco sociável”, enfim, justamente aquele que constrói cercas em volta de si mesmo. Caipiras são, portanto, os defensores da lei.
Tenho esperança de que o Sr. consultará alguns dos extraordinários profissionais do Instituto de Letras da UFRGS ou da Faculdade de Letras da PUC/RS—duas instituições de ponta, que estão entre as melhores do Brasil, tanto em literatura como em Linguística—antes de sancionar essa sandice. Sim, porque de sandice se trata.
A Linguística, como qualquer outra disciplina, possui diversas correntes e debates internos. Mas há um postulado do qual nenhum linguista discordaria: a língua é organismo vivo, em constante transformação. O dicionário é só uma sistematização pontual—um recorte—da coleção de vocábulos utilizados pelos falantes da língua em determinado momento. Essa coleção vai mudando, com a queda em desuso de algumas palavras e a incorporação de outras. É um processo natural da língua. Nele, os chamados estrangeirismos aparecerão sempre. Especialmente num mundo globalizado, eles são inevitáveis e, acima de tudo, não reguláveis por decreto, ainda mais um decreto estadual. Os próprios mecanismos internos da língua se encarregam de incorporar alguns, expelir outros, aportuguesar outros. Aliás, se formos ser rigorosos e eliminar todos os estrangeirismos, terminaremos onde? No tupi-guarani ou na passagem da vulgata latina ao galaico-português?
Vamos aos exemplos.
O Sr., que é colorado, se lembra da época em que os termos “córner” e “escanteio” coexistiam na língua portuguesa. Houve época em que era só “córner”. Com o tempo, os dois foram coexistindo e hoje “escanteio” parece ter se imposto, embora “córner” ainda seja compreensível para a maioria dos fãs de futebol. Aliás, “futebol”, um dia, foi gravado “football” e era um puro estrangeirismo. Será que a língua portuguesa estaria mais autêntica e protegida se usássemos “ludopédio”? Ora, a grafia de “football” foi aportuguesada e hoje ninguém pensa mais nisso. É a língua, Governador. Por outro lado, “match”, que era o termo usado nas publicações esportivas brasileiras dos anos 20, morreu mesmo, substituído por “jogo”, “partida”, “certame” ou “peleja”, sem que nenhum Carrion tivesse aparecido para decretar seu fim. Os próprios mecanismos que regem a interação real entre os falantes—estudados pela sociolinguística e pela pragmática—se encarregam da triagem. Muitas vezes, a grafia estrangeira permanece, sem dano nenhum ao idioma, como é o caso, aliás, dos dois gigantes gaúchos, o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e o Sport Club Internacional.
“Abajur”, não muito tempo atrás, era “abat-jour”. Algum Carrion da época teria nos obrigado a usar “quebra-luz” e, assim, privado os falantes da língua de um enriquecimento lexical, que hoje nos permite designar um objeto específico, sem nenhuma ambiguidade. “Sutiã”, até outro dia, era “soutien”, e a vernaculização do estrangeirismo nos poupou do “sustenta-seios” que o PCdoB teria preferido.
Imagine, Governador, se o Deputado Carrion tivesse assessorado a administração das capitanias hereditárias e proibido os estrangeirismos na época. Não teríamos hoje a marca lexical mais distintiva da língua portuguesa, que não é “saudade” coisa nenhuma, mas a indefectível “bunda”. Só nós a possuímos. Foi um presente maravilhoso do quimbundo, e que hoje é tão brasileiro como o samba–outro estrangeirismo, aliás. Os hispanos não têm “bunda”. Usam “culo”, o que, sabemos, não é a mesma coisa. Dá para imaginar, Governador, uma língua portuguesa sem bunda?
O Deputado Carrion, inclusive, demonstra ignorância da língua que quer defender. Em sua justificativa ao projeto, ele declarou que não vai ao shopping center, e sim ao centro comercial. Ora, essas duas expressões não são sinônimas! “Shopping center” é parte da língua portuguesa, e quem o diz é o dicionário Houaiss, que em sua edição de 2008 reconheceu o uso dos falantes reais, como fazem sempre os bons dicionários, e registrou: “shopping center: centro comercial de arquitetura específica”. Qualquer falante brasileiro, pelo menos das áreas urbanas, sabe disso, mesmo que intuitivamente. Mas a esquerda legislativa do Rio Grande quer abolir esse saber natural dos falantes por decreto. O Deputado Carrion afirmou que só nos EUA ele iria ao “shopping center”. Teria dificuldades, pois o que, em língua portuguesa, é “shopping center”, na língua inglesa, pelo menos nas variações dialetais estadunidenses, chama-se, em geral, “mall”, da mesma forma como o que designamos como “outdoor” em português é chamado de “billboard” em inglês. É o que ficou imortalizado como “a contribuição milionária de todos os erros” pelo genial Oswald de Andrade, escritor que confiava na nossa capacidade de absorver, incorporar, processar e transformar tudo, sem medo e sem complexo de inferioridade. É um autor que o PCdoB deveria ler com mais frequência.
O PCdoB, partido que eu respeito e ao qual é filiada a minha atual representante na Câmara dos Deputados—já que o PT-MG meteu-se em tucaníssimos enredos–, tem, no entanto, essa estranha mania de decretar o que é e o que não é autenticamente brasileiro, como se o comunismo tivesse sido invenção tupiniquim. As cotas para as indústrias cinematográfica e televisiva brasileiras, por exemplo, são temas que podem ser debatidos seriamente. Decretar uma cerca em volta do idioma, não. Como afirmei num texto anterior, projetos desse tipo são de mastodôntica ignorância:
a) sociolinguística, porque ignoram que sobre a língua viva não se legisla.
b) filológica, porque não sabem que a evolução da língua inclui a incorporação de vocábulos estrangeiros.
c) pragmática, porque ignoram que cada falante, individualmente, tenderá a ter a capacidade de selecionar os estrangeirismos adequados para cada contexto e, no caso de não fazê-lo, a própria interação subsequente com os outros falantes atuará, corrigindo-o.
d) psicolinguística, porque querem cercear legislativamente o leque de escolhas lexicais do falante da língua.
A língua portuguesa vai bem, Governador, obrigado. Cada vez mais enriquecida pela interação com as outras. Não deixe que a esquerda do Rio Grande pague esse mico. Consulte o seu companheiro de lutas, Olívio Dutra, que é formado em Letras. Vete essa nociva, inútil, xenofóbica e medrosa lei.
Atenciosamente,
Idelber Avelar




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