Marcelo Zero: Um novo Chernobyl na Ucrânia pode sacrificar até mesmo a saúde de suas crianças

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Em 26 de abril de 1986, explodiu o reator 4 da usina nuclear, que ficava na cidade de Pripyat, a cerca de 20 km Chernobyl, na extinta União Soviética, atual território ucraniano. Chernobyl foi o maior acidente nuclear da história. Na imagem acima, sala de um jardim de infância abandonado. Foto: ©Steve Morgan/Greenpeace

Um Novo Chernobyl na Ucrânia

Por Marcelo Zero*

O Reino Unido anunciou que enviará munição de urânio empobrecido para as forças ucranianas.

Trata-se de uma provocação séria, que pode contribuir decisivamente para a escalada do conflito na Ucrânia. As consequências mais dramáticas, contudo, poderão ser médicas e sanitárias.

Mas, afinal, o que é o urânio empobrecido?

Na natureza, o urânio existe em três formas isotópicas, U-238, U-235 e U-234, com porcentagens de massa no urânio natural de 99,284%, 0,711% e 0,005%, respectivamente.

Desses, apenas o U-235 é fissionável, ou seja, produz uma reação nuclear em cadeia.

Portanto, de forma a produzir combustível para reatores comerciais de energia nuclear, a porcentagem em massa de U-235 no urânio natural (0,711%) deve ser aumentada, através do processo de enriquecimento. Somente urânio enriquecido com mais de 20% de isótopos de U-235 pode ser usado em reatores.

Pois bem, o urânio empobrecido é criado como um subproduto do enriquecimento do urânio e contém, obviamente, menos isótopos de U-235 que o urânio natural.

Mesmo assim, o urânio empobrecido (depleted uranium -DU) é um metal pesado que possui propriedades altamente quimiotóxicas, embora não seja altamente radiotóxico.

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Devido à sua alta densidade, piroforicidade (ou seja, a capacidade de inflamar no impacto) e ampla disponibilidade, ele é usado como munição. Ele é capaz de perfurar blindagens pesadas e incendiar veículos blindados por dentro, sendo particularmente útil como arma antitanque.

Militares dos EUA utilizaram essas munições em 1991, durante a primeira Guerra do Golfo, e, novamente, na invasão do Iraque, em 2003.

Estudos recentes sugerem que os militares dos EUA também podem ter usado urânio ligeiramente enriquecido (percentual de massa de U-235 >0,711%, <2%), em armas convencionais no Iraque.

A Agência Internacional de Energia Atômica estima que cerca de 1.700 toneladas de urânio empobrecido teriam sido utilizadas pelos EUA no Iraque, desde 2003.

Por sua vez, as autoridades do Iraque calculam que há pelo menos 300 localidades iraquianas muito contaminadas com restos de urânio empobrecido.

Entre as mais contaminadas, estão Fallujah e Basra. O Iraque é, assim, um grande laboratório acerca das consequências do uso de urânio empobrecido em munições de guerra. E as consequências, segundo os médicos iraquianos, são dramáticas.

O estudo intitulado “Câncer, Mortalidade Infantil e Razão entre os Sexos ao Nascer”, realizado em Fallujah, entre 2005 e 2009, indica que essa cidade iraquiana, pesadamente bombardeada pelos EUA, tem a maior proporção de danos genéticos em crianças já registrada na literatura médica.

O número de crianças com câncer em Fallujah teria aumentado cerca de 12 vezes, desde 2004. A doutora Samira Alani, pediatra do Hospital Central de Fallujah, publicou estudo, em 2010, que demonstra que a proporção de bebês com defeitos congênitos cardíacos em Fallujah é 13 vezes maior que na Europa.

E a proporção de bebês com problemas neurológicos congênitos é 33 vezes maior que no continente europeu.

As pesquisas realizadas pela doutora Alani indicam também que os problemas das cidades iraquianas como Fallujah são bem piores que os constatados em Hiroshima e Nagasaki.

Nessas duas cidades japonesas bombardeadas com armas nucleares na Segunda Guerra Mundial, a proporção de bebês nascidos com defeitos congênitos varia entre 1% e 2%. Em Fallujah, essa proporção é de espantosos 14,7%.

Os chamados “Bebês de Fallujah” (veja alguns ao final; as imagens são fortes) tornaram-se conhecidos no mundo médico e, compreensivelmente, muito habitantes da cidade têm medo de ter filhos.

Situação semelhante é encontrada em Basra, cidade do sul do Iraque que também foi muito bombardeadas com munições contendo urânio empobrecido e outros metais pesados.

Segundo estudos lá realizados, o número de crianças nascidas com hidrocefalia em Basra é 6 vezes maior que nos EUA.

Além disso, o índice de leucemia infantil em Basra dobrou, entre 1993 e 2007. Essas estatísticas dantescas não deveriam causar estranheza.

Enquanto está encapsulado em munições ou em blindagens, o urânio empobrecido não representa perigo significativo. Contudo, a situação muda completamente quando ele se espalha no meio ambiente.

Com efeito, quando as munições atingem seus alvos e explodem, elas geram partículas finas de poeira contendo urânio empobrecido e outros metais pesados que persistem no meio ambiente. Essas partículas podem entrar na cadeia alimentar e penetrar no corpo humano através de alimentos contaminados.

Partículas tóxicas também podem ser transportadas pelo ar com o vento e inaladas pelo público. As crianças iraquianas são particularmente vulneráveis, pois costumam brincar com restos de cápsulas de munições.

O maior acidente nuclear brasileiro, o do césio-137 de Goiânia, se deu por mecanismo semelhante.

As vítimas desse famoso acidente abriram a cápsula do césio-137, a manusearam, e acabaram ingerindo alimentos com partículas radioativas.

Embora o urânio empobrecido seja muito menos radioativo que o césio-137, ele é altamente tóxico. Tão tóxico como o mercúrio, por exemplo, que também causa problemas muito sérios quanto ingerido.

Ainda assim, os EUA e a Otan continuam a usar munições com urânio enriquecido e ignoram as evidências vindas do Iraque.

Caso essa decisão do Reino Unido seja efetivada, as principais vítimas serão os próprios ucranianos, principalmente as crianças e os bebês daquele país, já que essas munições tóxicas serão utilizadas em solo da Ucrânia.

A depender do número das munições que seriam empregadas, a Ucrânia poderia ter uma espécie de novo Chernobyl, com ampla contaminação de vastas áreas com partículas tóxicas e radioativas.

A irracionalidade dos EUA, da Otan e do atual governo ucraniano chega às raias da loucura.

Para ganhar guerra e derrotar a Rússia, vale tudo. Desde provocar recessão na Europa até induzir fome no mundo, passando pela possível gênese de um conflito mundial de consequências imprevisíveis.

Agora, contudo, admite-se sacrificar até mesmo a saúde das crianças e dos bebês ucranianos.

Lula tem toda razão e a paz nunca foi tão necessária como agora.

Imagens de alguns “Bebês de Fallujah”

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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