Marcelo Zero: O que acontece agora no Equador e o retumbante fracasso da ”guerra às drogas”

Tempo de leitura: 3 min
Na terça-feira, 09/01, o presidente do Equador, Daniel Noboa, decretou estado de guerra contra o narcotráfico. À noite, um grupo de supostos traficantes, invadiu a TC Television durante transmissão ao vivo de telejornal e fez reféns. Mas, na sequência, foram detidos. Tanques militares também foram registrados nas ruas de Quito, capital do país. Fotos: Reprodução de rede social e vídeos

O Equador e o Fracasso da “Guerra às Drogas”

Por Marcelo Zero*

O que acontece agora no Equador é mais uma demonstração do retumbante fracasso da “guerra às drogas”.

Lançada, em 1971, por Richard Nixon, a “guerra às drogas” já teria consumido mais de US$ 1 trilhão, somente do orçamento federal estadunidense, ao longo de 52 anos.

Resultados? Nulos ou praticamente nulos.

Não houve redução do consumo de drogas ilegais. Ao contrário, esse mercado continua bastante aquecido.

Também não houve redução das mortes por overdose. Na realidade, o uso de opioides sintéticos tem aumentado essas mortes, especialmente nos EUA.

Contudo, o problema maior não está na inutilidade dessa “guerra”. Está nos seus efeitos nocivos e contraproducentes.

A falta de uma política racional do controle da produção e consumo de drogas e a imposição de uma atitude de “intolerância zero” e simplista em relação a um fenômeno complexo alimentam financeiramente as gangues do narcotráfico e a violência a elas associadas.

Tal como aconteceu com a Lei Seca nos EUA, que “encheu as burras” de gente como Al Capone, aumentou exponencialmente a criminalidade e corrompeu estruturas do Estado, a “guerra às drogas” produz também muitos efeitos semelhantes.

Em primeiro lugar, contribui para injetar dinheiro, muito dinheiro, em atividades ilegais.

Como a demanda permanece muito alta, especialmente nos EUA, maior mercado mundial, e na Europa, o tráfico de drogas é extremamente lucrativo, gerando, de acordo com algumas fontes, mais de US$ 700 bilhões por ano.

Esse número, embora impressionante, é bem menos da metade do mercado mundial de bebidas alcoólicas, uma droga legal, estimado em US$ 1,678 trilhão, em 2023.

O problema está, obviamente, em que essa soma estratosférica de dinheiro do tráfico de drogas ilegais não vai para empresas que se submetem ao controle de órgãos públicos, como no caso das empresas que produzem bebidas alcoólicas.

Ela vai inteiramente para criminosos, estimulando a criação de organizações muito poderosas, que se infiltram em todos os campos, inclusive o financeiro.

Além disso, essa produção e comercialização não paga impostos (somente propinas) e escapa do controle da saúde pública, que tem de arcar com as consequências do consumo, gerando, dessa forma, um duplo custo para o Estado.

Em países em desenvolvimento, com Estados frágeis (normalmente os países produtores e comercializadores), essas organizações acabam se incorporando às estruturas governamentais. Isso cria problemas muito sérios, inclusive de governabilidade.

Em segundo lugar, a inflexível “guerra às drogas” tende a encarcerar em massa, especialmente jovens pobres, negros ou indígenas, tanto em países consumidores, como os EUA, como em países produtores.

Esse encarceramento massivo, somado a sistemas prisionais medievais, acaba tornando os cárceres centros de recrutamento e gerenciamento do crime organizado, como acontece agora no Equador. Ademais, tal fenômeno gera um problema social gravíssimo.

Do ponto de vista geopolítico, a “guerra às drogas” é, até certo ponto, uma imposição dos EUA a países produtores e comercializadores, especialmente latino-americanos. México, Colômbia e, agora, o Equador, sofrem bastante as consequências de uma política inútil e contraproducente.

Essa política precisa ser revista.

Não há, é claro, alternativas mágicas e simples. Mas talvez o exemplo de Portugal, que descriminalizou o consumo de todas as drogas ilícitas (não apenas a maconha), em 2001, possa inspirar alternativas racionais e mais eficientes para um problema tão complexo e multifacetado.

Há, de fato, uma ampla literatura científica que mostra como o tipo de política adotado por Portugal reduz a morte por overdose e melhora a saúde dos consumidores. Também aumenta a segurança e diminui a criminalidade.

E, ao contrário do que se poderia esperar, o consumo de heroína e de cocaína, duas das drogas mais problemáticas, caiu de 1% da população portuguesa para apenas 0,3%.

Assim, a substituição de uma política inflexível e intolerante, como a da “guerra às drogas”, por uma política mais racional, flexível e humana parece funcionar.

É algo que precisamos estudar e considerar.

Conforme teria dito Albert Einstein, insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.

A “guerra às drogas” é insana.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

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Zé Maria

https://twitter.com/Marcelo_Semer/status/1745963446158389668

O ÓBVIO EXPLICADO
https://t.co/z5A9tHLPgL

“Juíza que Ofereceu Café e Casaco
a Custodiado em Roraima
simplesmente Cumpriu a Lei”

“Chegamos a tal nível de autoritarismo que,
quando alguém cumpre a lei e trata as partes
com urbanidade, vira manchete.”

“Tornou-se assim também por causa do ensino jurídico.
Que reproduz o autoritarismo da sociedade”, diz Jurista

[Reportagem: Rafa Santos | Revista Consultor Jurídico (ConJur)]

Em uma audiência de custódia promovida na quarta-feira (10/1),
a juíza Lana Leitão Martins, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR),
cumpriu o protocolo do Conselho Nacional de Justiça [CNJ] que determina
que os presos devem ser ouvidos sem algemas se não forem violentos
e não existir perigo de fuga.

Durante o depoimento, a julgadora ofereceu café e um casaco a um detento
que estava tremendo de frio.

Foi o que bastou para que a juíza se visse jogada — contra a sua vontade —
no meio do tiroteio habitual da ‘polarização’ [sic] política brasileira.

Parlamentares de extrema-direita e membros (e ex-membros) do
Ministério Público atacaram a magistrada com a velha ladainha do
‘privilégio para bandidos’.

O vídeo da audiência foi compartilhado pelo deputado federal
Nikolas Ferreira (PL-MG), uma das novas caras do bolsonarismo,
com uma legenda irônica.
https://twitter.com/i/status/1745218397590192296

E pelo ex-procurador e deputado cassado Deltan Dallagnol,
que escreveu com seu português exótico: ‘No que se tornou o Brasil?’.
https://twitter.com/deltanmd/status/1745223221991924073

A repercussão foi tamanha que o TJ-RR teve de divulgar uma nota
para lembrar que o CNJ estabelece que as audiências de custódia
devem ser conduzidas em “condições adequadas para o custodiado”.
O que foi reforçado pelos magistrados e advogados ouvidos pela
revista eletrônica Consultor Jurídico.

Para eles, a juíza simplesmente cumpriu a lei.

“Chegamos a tal nível de autoritarismo que,
quando alguém cumpre a lei e trata as partes
com urbanidade, vira manchete.
Pior:
os brucutus tipo Dallagnol criticam quem age
corretamente.
‘No que se tornou esse país’, pergunta DD?
Respondo: tornou-se assim porque pessoas como ele [Deltan Dallagnol]
passaram no concurso para uma carreira jurídica.
E quase destruíram a democracia. Ele, Moro e outros que desprezam
a Constituição Federal, que DD chama de ‘filigrana’.
Tornou-se assim também por causa do ensino jurídico.
Que reproduz o autoritarismo da sociedade”,
comentou o jurista Lenio Streck.

“As audiências no Judiciário são o retrato de uma sociedade
do tipo: ‘você sabe com quem está falando?’.
Advocacia se tornou o exercício da humilhação cotidiana.
E as partes sofrem com tratamento tipo ‘chame-me de excelência’.

Temos pela frente um imenso passado.
Passado que ditaduras e estados de exceção
foram construindo ao longo dos anos.

E escapamos há pouco de uma tentativa de volta ao passado.
Passado que gente como DD ajudou a piorar.

Viva a juíza que cumpriu a lei!

Parece que minha frase de 2015 na OAB-RJ foi profética:
no Brasil, cumprir a lei é uma atitude revolucionária.”

Entendimento parecido tem o desembargador do Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJ-SP) Marcelo Semer.
Ele afirmou que a magistrada atuou de maneira correta e lembrou
que todos devem ser tratados com dignidade.

“Estranho é o Deltan Dallagnol, que foi promotor, fiscal da lei,
defensor da ordem jurídica e, por tabela, dos direitos humanos,
se estranhar tanto com isso.
É uma mostra de que realmente estava no lugar errado.”

Semer lembrou que uma das primeiras lições que aprendeu na magistratura
foi justamente chamar o réu de senhor.

“O juiz que me recebeu na comarca me dizia:
‘Eles são maltratados em muitos lugares,
aqui devem merecer respeito’.
Não importa o que fizeram, isso a gente decide
no processo e aplica as penas que forem
condizentes com as leis e com as provas.
Mas o respeito é para todos.”

O magistrado também recordou que, em uma audiência como a de Roraima,
o réu está sob custódia do Estado, que tem obrigação de zelar por sua saúde
e segurança.

Tratamento Digno x Privilégio

O advogado criminalista Welington Arruda, por sua vez, afirmou que
o tratamento da juíza Lana Martins ao réu está em consonância com
a Constituição Federal e com tratados internacionais dos quais o Brasil
é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e
a Convenção Americana de Direitos Humanos [da OEA].

“A confusão entre tratamento digno e privilégio é um equívoco
que precisa ser prontamente corrigido.
A legislação brasileira, assim como a prática judicial internacional,
endossa o entendimento de que a dignidade da pessoa humana
não é uma concessão do Estado que pode ser atribuída ou retirada
a seu critério, mas, sim, um direito fundamental que assiste a todos
os seres humanos.”

Na mesma linha, o advogado Fabio Menezes Ziliotti acredita que
a conduta da juíza do TJ-RR deveria ser o padrão.

“Nesse caso, a magistrada foi sensível ao sofrimento humano
demonstrado pelo custodiado, independentemente de ele ter
violado os ditames da lei, e o tratou com a dignidade dispensável
a qualquer ser humano; oxalá que isso se torne um exemplo
a toda e qualquer autoridade.”

Por fim, o criminalista Mário de Oliveira Filho defendeu que o respeito
à dignidade humana não compromete sob nenhum aspecto a autoridade
judiciária.

“Quem perdeu ou não tem o dom, e não conhece os princípios cristãos
da indulgência, da misericórdia, do não julgar com sua própria régua
e do perdão, não pode atuar na esfera criminal.
Porque punir é necessário, é civilizatório, mas dentro das regras legais,
e de respeito humano, caso contrário, deixa de ser justo para se tornar
vingativo.”

https://www.conjur.com.br/2024-jan-12/juiza-que-ofereceu-cafe-e-casaco-a-preso-simplesmente-cumpriu-a-lei/

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