Marcelo Zero: Por que Moro é o candidato ungido do Império

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Charge: Vitor T.

A Cúpula e o Candidato do Império

Por Marcelo Zero*

Será realizada agora, nos dias 9 e 10 de dezembro, a Cúpula pela Democracia (The Summit for Democracy), promovida pelo Presidente Joe Biden.

Oficialmente, os objetivos da cúpula são:

— Defender a democracia das “ameaças” do autoritarismo

— Promover a luta contra a corrupção

— Promover o respeito aos direitos humanos

Mediante essa cúpula, realizada de forma virtual, Biden pretende liderar o “mundo livre” numa cruzada contra regimes autoritários, ditaduras e corruptos de uma forma geral. Comovente. Secundado pelo fiel escudeiro, Antony Blinken, Biden já se julga a caminho para libertar Jerusalém.

Bom, essa não é uma boa notícia. Nem para mouros, nem para cristãos.

Nessas cruzadas, os EUA fazem, em geral, o papel de Godofredo de Bulhão ou Federico Barbarossa, que, em nome dos valores cristãos e da libertação de Jerusalém, promoveram verdadeiras carnificinas na cidade sagrada, matando indiscriminadamente milhares de homens, mulheres e crianças.

Latino-americanos e os habitantes do Magreb e do Oriente Médio sabem bem o que a “promoção da democracia” pelos EUA realmente significa.

Mas, antes de tudo, há de se questionar qual autoridade moral e política que os EUA têm para liderar o mundo em direção à democracia, especialmente após Trump e a invasão do Capitólio.

De acordo com o Democracy Index de 2020, da sisuda e conservadora The Economist, haveria apenas 23 democracias plenas (full democracies) no mundo.

Os EUA, com seus problemas de racismo, violência policial e a recente fragilização ocasionada pela extrema direita e suas estratégias manipulativas, não figuram entre elas.

Mesmo o país mais bem classificado no índice, a Noruega, não tem nota dez. Ninguém é realmente modelar, nesse campo. A democracia é um contínuo processo de aperfeiçoamento de liberdades e direitos.

Outro questionamento tange à escolha dos participantes, feita unilateralmente pelo governo Biden.

Previsivelmente, Biden não convidou para a cúpula China, Rússia, Irã, Turquia etc., alegando que são “regimes autoritários”.

Entretanto, convidou Iraque, Paquistão, República do Congo, Zâmbia, Malásia e vários outros países que não são classificados como democracias reais.

Na América Latina, não convidou Cuba, Venezuela, Nicarágua e a própria Bolívia, que superou o golpe de Estado, mas convidou Colômbia e o Brasil de Bolsonaro.

Segundo as avaliações feitas com base nos índices da Freedom House, cerca de 31% dos convidados da cúpula ou são regime autoritários ou são democracias incompletas e “comprometidas”.

Saliente-se que Biden convidou 4 países entre os que que mais sofreram deterioração em suas democracias nos últimos anos, a saber: Brasil, Filipinas, Índia e Polônia.

A hipocrisia das escolhas obedece a um imperativo da nova doutrina de segurança nacional dos EUA, estabelecida em 2010, ainda no governo Obama.

Conforme essa doutrina, a prioridade da política externa e da política de segurança dos EUA, que antes era o combate ao “terrorismo”, tem de ser a luta pelo poder mundial contra adversários como China, Rússia e seus eventuais aliados.

Trump adotou uma estratégia crua e direta de fazer cumprir tal imperativo.

Adotou o America First, uma política francamente unilateral, protecionista e xenófoba, que comprometeu antigas alianças e criou sérios desgastes diplomáticos, abrindo caminho para um avanço geopolítico da China, especialmente na Europa.

Biden, sem abandonar o protecionismo do America First, pretende reconstruir antigas alianças e investir, de novo, em diplomacia para melhor afirmar os interesses do Império ameaçado no mundo.

A Cúpula pela Democracia é vertente fundamental dessa política.

Trata-se, é óbvio, de tentativa de isolar e criminalizar países adversários dos EUA, com os frágeis pretextos da defesa da democracia, da promoção os direitos humanos e da luta contra corrupção.

Por isso, a cúpula de Biden vem sendo muito criticada, até mesmo dentro dos EUA.

O convite à Taiwan, em particular, é visto como uma provocação grave e desnecessária à China, que eleva muito a tensão política, no cenário mundial.

O convite à Ucrânia e a ausência da Rússia têm o mesmo efeito.

Em vez de apostar na distensão, Biden parece apostar no acirramento dos conflitos. Em ambos os casos (Taiwan e Ucrânia), os conflitos políticos ameaçam se transformar em conflitos bélicos.

Apesar das críticas e da evidente hipocrisia, a Cúpula pela Democracia tem de ser levada a sério. Biden pretende elaborar planos e ações internacionais para fazer cumprir seus objetivos. E fará cobranças.

Entre as linhas de ação que mais preocupam está a luta global contra a “corrupção”.

De fato, num cenário mundial de criminalização da política e dos sistemas de representação, essa vertente da luta geopolítica internacional pode fazer um grande estrago, como o que aconteceu no Brasil, com a Lava Jato. O discurso populista contra a corrupção sempre faz muito sucesso.

Sabedor desse potencial, o governo Biden pretende converter a luta internacional contra a corrupção em um elemento central da nova política externa dos EUA. combater a evasão e os desvios fiscais propiciados por mecanismos vinculados aos denominados “paraísos fiscais”.

Claro está que combater a evasão e os desvios fiscais propiciados por mecanismos vinculados aos denominados “paraísos fiscais” é algo positivo para todos os países.

Contudo, os EUA pretendem combater, sobretudo, o que eles denominam de “corrupção estratégica”, isto é, aquela corrupção que seria promovida por governos supostamente “autoritários e corruptos”, como os China e da Rússia, com o objetivo de obterem maior influência econômica e política no mundo.

O combate a essa “corrupção estratégica” recairá também sobre quaisquer países ou empresas que contrariem os interesses dos EUA.

Isso não chega a ser propriamente uma novidade.

A Alstom, ex-gigante francesa das áreas de energia e transporte foi forçada, devido a uma ação de corrupção promovida pela justiça dos EUA a vender seus ativos à General Electric, sua concorrente norte-americana, em 2014.

O mesmo aconteceu com a Petrobras e com as grandes empresas de construção civil do Brasil.

Agora, contudo, aquilo que era algo eventual ou pontual poderá se converter em algo usual e sistemático.

Governos rivais e empresas concorrentes deverão, com essa nova diretriz, ser vítimas frequentes de ações “anticorrupção” politicamente motivadas.

Uma das propostas que está sendo ventilada para cumprir esse objetivo é a da criação de Cortes Supremas Anticorrupção, compostas por juízes “ilibados”, como a anunciada por Moro.

Na Ucrânia, já está sendo implementada uma corte desse tipo, a qual seria supervisionada por um conselho público de especialistas, nacionais e internacionais.

A ideia essencial é a de “internacionalizar” o combate à corrupção, limitando a soberania jurídica de alguns Estados sobre esse tema.

Em outras palavras, a administração de Biden, como já afirmei em artigo anterior, pretende criar ou consolidar uma espécie de Lava Jato Global, de modo a submeter a luta contra a corrupção aos seus desígnios geopolíticos.

Não é casual que Moro tenha apresentado essa proposta da corte anticorrupção agora. Ele está perfeitamente sintonizado com Departamento de Estado dos EUA e com o DOJ.

Bolsonaro tinha uma relação umbilical com Trump e a extrema direita dos EUA.

Moro, porém, assim como Dallagnol, têm uma relação orgânica e sedimentada com o aparelho de Estado dos EUA, ou, se quiserem, com o que alguns denominam de Deep State. Trata-se, portanto, de uma relação mais profunda, estável e ainda mais comprometedora da soberania nacional.

Assim sendo, Moro é, sem dúvida, o candidato preferencial dos EUA. O ungido do Império.

Além do apoio local, terá o apoio dos EUA, que poderá chegar de diversas formas.

Lembrem-se que os EUA controlam a Internet e as comunicações globais, via provedores privados e a NSA. E ainda têm enorme influência em nossas procuradorias, Polícia Federal etc.

Tudo é possível, para quem tem tanto poder. Inclusive a inviabilização da candidatura de Lula e a redução dos níveis de rejeição de Moro.

A Cúpula pela Democracia poderá se converter, portanto, no início de um processo que comprometerá definitivamente nossa democracia e nossa soberania.

Precisaremos estar atentos. Ingenuidade geopolítica não é mais algo aceitável.

*Marcelo Zero é sociólogo e especialista em Relações Internacionais.


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Comentários

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João de Paiva Andrade

Artigo bem escrito. Ele sintetiza o que os leitores/ouvintes/espectadores do Duplo Expresso e do Verdade Concreta vêm mostrando, o primeiro desde 2017, o segundo há pouco mais de uma ano, quando foi criado.

Nelson

É absurdo, mas vimos boa parte da nossa esquerda se refestelar toda com a vitória do Biden, como se a política externa dos Estados Unidos fosse sofrer drásticas mudanças.

E o texto do Marcelo Zero só vem ratificar aquilo que todo mundo já sabe, mas essa esquerda insiste em fingir que desconhece que, sendo democrata ou sendo republicano o governo eleito, os interesses imperialistas vão prevalecer.

Já dizia o escritor estadunidense, Gore Vidal, um mestre da ironia, que o sistema de governo de seu país consiste num regime de partido único composto por duas alas de direita.

Morvan

Os Estados Desunidos inventam seus mantras, seus oximoros (sem trocadilho, por favor), suas antíteses e apostam forte na violência institucional da narrativa. Qual país do mundo ‘se dá ao luxo’ de ter uma entidade de extrema direita, golpista, como sói, autodenominada NED (Network for Endowment of Democracy 😂 )?

Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/FGH6R3sXsAknz2B?format=jpg

Por que será que DD
bloqueou Taclan Duran ?

“É falta de argumento? É medo?
Qual seria o motivo do candidato me bloquear?
Que nunca permitiu que eu fosse ouvido
é de conhecimento público e notório”…
#TaclaDuran
https://twitter.com/TaclaDuran/status/1468730144244310019

Zé Maria

.
Os Estados Unidos da América (EUA)
nunca foram uma Democracia Racial
nem Sócio-Econômica, muito menos.

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