Jordan Michel-Muniz: Imperialismo cultural, hermano!

Tempo de leitura: 6 min
Ilustração: Entrada na Floresta, de Cândido Portinari

Por Jordan Michel-Muniz*, especial para o Viomundo

Línguas trocam palavras, com ambas pensamos, com elas interagimos. Ou viramos papagaios!

Algumas expressões não mudam, têm história, valor literário, ou falta tradução: ‘Laissez-faire’, ‘tu quoque’, ‘Schadenfreude’…

A maioria abandona a grafia estrangeira: autonomia, berimbau, soberania, oxalá!

E temos as de sonoridade nativa – abaetê, boitatá, caatinga, pororoca…

Nativas: o tupi era uma das línguas daqui. O português brasileiro é idioma invasor, fruto de violências: conquista, ocupação, saqueio, genocídio indígena e escravidão negra, entre tantas.

Destes crimes coloniais nasceu o Brasil e nosso português, enriquecido com termos indígenas e africanos, nutrindo nossa cultura.

A mudança idiomática também ocorre pacificamente. Alteramos a linguagem pelo contato com outras culturas, quase imperceptivelmente. Daí eu ter dito que interagimos com palavras.

Quando inexiste troca, se só assimilamos, sofremos colonização linguística e cultural.

Quem quer atrelar sua cultura à de um invasor?

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Qual cultura? Como palavras a modificam?

Uma breve visita à história explica.

O imperialismo que subjugou a África ajuda a entender este método de dominação, e a passagem do controle violento à “servidão voluntária”, do Discurso de Étienne de La Boétie.

Walter Rodney, em Como a Europa Subdesenvolveu a África, diz que “uma cultura é um modo de vida completo”, relacionado à noção de civilização.

Daí provém o falso nexo de civilização com cultura superior, útil ao imperialismo para forjar as raças inferiores, merecedoras de escravidão e genocídio.

Rodney salienta que a civilização europeia triunfou não por sobrepujar a cultura africana, e sim pelo poder bélico e pelo nascente e lucrativo capitalismo.

Melhor não equiparar cultura e civilização, pois originalmente são conceitos opostos, conforme Norbert Elias destaca em O Processo Civilizador. Mas ele indica que desta fusão indevida brotou a presunção ocidental de superioridade perante o mundo.

Há milênios o imperialismo procura legitimar-se chamando os demais de bárbaros, selvagens, não civilizados, querendo dizer povos sem cultura, num erro grosseiro.

A falaciosa equivalência serviu para europeizar africanos, impondo-lhes línguas e costumes.

Aboliu-se a escravidão quando ela passou a obstruir a expansão das relações capitalistas. Mas a liberdade não ressurgiu, pois a Europa tramou a Partilha da África (1885), apossando-se do continente.

O tráfico negreiro europeu e a usurpação da África diferem no modo de oprimir, porém ambos recorreram à violência e esmagaram culturas africanas.

Incutir o idioma – à força, ou sutilmente, via sistema educativo – era a tática do imperialismo cultural, organizando instituições e registros na língua do colonizador.

A unificação linguística pelo idioma impresso cria o senso de nação, mostra Benedict Anderson em Comunidades Imaginadas, a linguagem comum conecta regiões e desagrega coletividades ao cortar a transmissão geracional dos dialetos.

Como ardil, as línguas europeias romperam elos ancestrais dos povos africanos, e moldaram a divisão social entre os que as falavam e obtinham vantagens, e largos estratos subalternos segregados por não as compreender, outra forma de violência.

Tempos depois, Frantz Fanon no livro Pele Negra, Máscaras Brancas apontará como negros antilhanos se esmeravam na pronúncia do francês quando iam a Paris, na busca da imitação perfeita, uma sujeição introjetada: livres, ainda eram papagaios dos antigos senhores.

Escravidão virou crime, e as colônias conquistaram independência (mais formal que real).
Mas também se aboliu o imperialismo cultural?

Não! A dominação persiste pela servidão voluntária dos oprimidos. Recordo La Boétie: “Como é possível que tenha algum poder sobre vós senão por meio de vosso consentimento? […] Sede resolutos em não servir mais, e estareis livres.”

A moda é copiar a língua do império decadente, para afetar erudição, por hábito inconsequente, ou preguiça mental; provavelmente, os três fatores atuam juntos.

Impulsionado pelas mídias e agências de propaganda, que nos entulham com comportamentos do exterior, o palavreado inglês invade redes sociais e contamina mentes e conversas, criando papagaios do bilinguismo atrofiado.

Eis uma lista curta de termos, muitos deles a maioria dos brasileiros não compreende, e assim se repete o mecanismo de segregação colonialista, de violência excludente:

Banner, flyer, card, folder, free, up, top, post, print, app, live, selfie, influencer, promoter, hater, follower, fake, trend, news, dark web, hub, smart phone, data center, hit, ranking, input, output, pen drive, food-truck, bowl, shopping center, outdoor, sale, off, black Friday, skyline, sunset, bet, beach tennis, ocean front, pole dance, performance, market, sale, personal trainer, mixer, air fryer, onnion rings, fast food, trash food, light, diet, detox, milk-shake, self-service, drive-thru, cupcake, sundae, delivery, cookie, happy hour, coffee break, whey protein, freezer, premium, best-seller, spoiler, bullying, experience club, lifestyle, fit, healthcare, hardcore, pit stop, budget, gadget, briefing, job, freelancer, press release, clipping, brand experience, dashboard, spin-off, fashion, trade marketing, retrofit, line-up, skin, body, bodybuilding, legs, kids, crush, feeling, bike, check-up, check-in, check-out, hot, office, model, laptop, download, upload, homepage, site, upgrade, backup, wireless, net, boom…’

Quem tenta aparecer é ‘poser’ (‘poseur’, no original francês), embora a expressão descreva quem finge ser o que não é, com artifícios como copiar vocabulário. Haja incoerência!

Exibicionismo corrente na universidade: ‘work in progress, paper, workgroup, insight, expertise, meeting, master class, trickle-down, design, workshop, woke, summit, panel, compliance…’

Às vezes, o termo nem tem o uso dado aqui, como em ‘home office’ e ‘point’.

Sem esquecer o ‘gerundismo’ – “vou estar sendo” papagaio –, e a celebração do Halloween, com capricho similar ao dos antilhanos de Fanon em Paris, enquanto relegam nosso folclore.

Fora verbos espúrios, como ‘performar’, ou a adição de sentidos ridículos: realizar para ‘realize’ – “realizei
(percebi) que era noite”–, ou entregar para ‘provide’ – “o carro entrega (proporciona) conforto”.

“Temos muitos buracos em nossa língua que as outras não têm”, isto é comum, mas cada uma os preenche de forma autônoma, diz Noam Chomsky, linguista magistral.

No mundo interligado, podemos tapar buracos importando termos, sem prejuízo cultural. Danosa é a substituição desnecessária das nossas palavras por outras que nada acrescentam, algo frequente mesmo em grupos de “ex-querda”.

Soa absurdo propor um ‘brainstorm’ para lançar um ‘card’ em defesa da soberania! Pororoca de ideias é nome local mais expressivo que o importado. Pororoca, do tupi, como dito no início: significa estrondo, estrondo de ideias! E daí criar um cartão, né, papagaio?

Línguas trocam palavras, eu disse antes. Mas rejeitar a riqueza linguística para ser “moderno”, globalizado, e reclamar que Trump ataca nossa soberania, é contraditório.

Que a fútil fartura do colonialismo linguístico encante deslumbrados por Miami, vá lá. Já em grupos de esquerda, espanta. Porém ouse apontar a insensatez, e o vespeiro da servidão voluntária reage furioso, ferroando em prol da livre expressão. Livre? Esquerda? Expressão?

Paulo Freire ensina, na Pedagogia do Oprimido, que esta papagaiada equivale a “repetir os procedimentos da elite opressora”, com os quais “opressores, ‘penetrando’ os oprimidos, neles se ‘hospedam’”.

Frente ao parasitismo linguístico, tais hospedeiros repelem o idioma pátrio e exigem o direito de injetar em seus discursos aquilo que os contagia.

Volto a Fanon: “falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura”.

Tais noções pororocam no pensamento decolonial, há exemplos para encher várias páginas.

Sim, de pororoca sai sonoro verbo, e é nosso, tá no dicionário!

Outro titã do anticolonialismo, Albert Memmi, no livro Retrato do Colonizado Precedido de Retrato do Colonizador, diz: “No conflito linguístico que habita o colonizado, sua língua materna é a humilhada, a esmagada. […] Ora, a mais urgente reivindicação de um grupo que reage é certamente a libertação e a restauração de sua língua”.

Tá na hora de acordar!

A compulsão infecciosa pra papagaio colonial não brotou em Pindorama, como quem recusa a vacina de usar o próprio idioma parece acreditar, ao insistir no linguajar exótico.

E quanto mais autoritários, pior, pois se acomodaram no que Memmi chama de “pirâmide dos pequenos tiranos”: servis aos opressores, resguardam seu micropoder sendo capitães do mato desta servidão.

Os meios de comunicação e a propaganda dão a descarga aqui do que alimenta os EUA, criando uma fossa cultural com fins ideológicos, para vender o modo de vida de lá, sem revelar que ele depende de guerras e pilhagem, de ataques à soberania dos povos, Brasil incluído.

Isto não é dito aos servos do império.

Insisto, com Memmi: “não basta que o colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que ele se aceite como tal. Em suma, o colonizador deve ser reconhecido pelo colonizado”.

Autonomia se conquista, não se ganha.

Por que “bróder”, e não ‘hermano’, como nossos vizinhos latino-americanos, com seu ‘ratón’?

Quer fazer um ‘card’? Seguir a ‘trend’? Porque assim terá mais ‘followers’?

Então, cante com Raul Seixas:

A solução é alugar o Brasil!
Vamo embora dá lugar pros gringo entrar...”

__________
P.S.: ‘Tu quoque’ (latim): significa tu também, teria sido a exclamação de Júlio César quando Brutus o apunhalou. É também um tipo de falácia. ‘Schadenfreude’ (alemão): alegria maligna pelo infortúnio alheio. ‘Laissez-faire’ (francês): literalmente, deixe fazer, máxima histórica do liberalismo econômico do século XVIII, contrário à intervenção do Estado no mercado.

A etimologia e significado de abaetê, boitatá, caatinga e pororoca estão nos nossos dicionários.

*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em filosofia pela UFSC, e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e injustiças.

Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Zé Maria

.
Ao Longo da História, os Impérios
sempre impuseram sua Dominação
pela Língua, pela Moeda e pela Religião.
.

Zé Maria

.
.
No braZil, a maioria dos termos usados
em Informática foram assimilados
literalmente da língua inglesa sem
nenhuma adaptação ao idioma ‘brasileiro’.

Aqui, por exemplo, a palavra inglesa “Mouse”
é utilizada para significar um dos Periféricos*
para “PC”(“Personal Computer”).

Entretanto, em Portugal, o mesmo
“Hardware”** Periférico para Computador
é denominado “Rato” (Mouse Traduzido)
E na Espanha é chamado “Ratón”(idem).

*Periférico é um Dispositivo Físico Eletrônico Externo
que se conecta ao “Hardware Principal” (Aparelho)
para adicionar Funcionalidades ao Sistema.
Exemplos: “Mouse”, “Touchpad”, “Touchscreen”, “Pendrive”,
“Scanner”, Impressora, Teclado, Monitor, etc.

** Hardware é todo Componente Físico (Material)
Externo (Periférico) ou Interno de qualquer Aparelho
Eletrônico, incluindo Computadores e “Notebooks”
[em Portugal: “Computadores Portáteis”].

Exemplos de Hardwares Computacionais:

Internos
– Processador ou “CPU” (“Central Processing Unit”);
– Placa-Mãe (“Motherboard”);
– Placa de Memória “RAM” (“Random-Access Memory”);
– Disco Rígido “HD” (“Hard Disk”);
– SSD (“Solid State Drive”)
– Ventoinha (“Cooler”); etc.

Externos
– Monitor;
– Teclado;
– “Mouse”;
– “WebCam”;
– “Scanner”;
– “Pendrive”;
– “Headphone”; etc.

Mais Detalhes em:
https://tecnoblog.net/responde/quem-inventou-o-mouse/
https://tecnoblog.net/responde/o-que-sao-perifericos-20-exemplos-de-perifericos-que-se-conectam-com-nossos-dispositivos/
https://tecnoblog.net/responde/o-que-e-hardware/
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Zé Maria

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No braZil, a maioria dos termos usados
em Informática foram assimilados
literalmente da língua inglesa sem
nenhuma adaptação ao idioma ‘brasileiro’.

Aqui, por exemplo, a palavra inglesa “Mouse”
é utilizada para significar um dos Periféricos*
para “PC”(“Personal Computer”).

Entretanto, em Portugal, o mesmo
“Hardware”** Periférico para Computador
é denominado “Rato” (Mouse Traduzido)
E na Espanha é chamado “Ratón”(idem).

*Periférico é um Dispositivo Físico Eletrônico Externo
que se conecta ao “Hardware Principal” (Aparelho)
para adicionar Funcionalidades ao Sistema.
Exemplos: “Mouse”, “Touchpad”, “Touchscreen”, “Pendrive”,
“Scanner”, Impressora, Teclado, Monitor, etc.

** Hardware é todo Componente Físico (Material)
Externo (Periférico) ou Interno ou de qualquer
Aparelho Eletrônico, incluindo Computadores e “Notebooks” [em Portugal: “Computadores Portáteis”].

Exemplos de Hardwares Computacionais:

Internos
– Processador ou “CPU” (“Central Processing Unit”);
– Placa-Mãe (“Motherboard”);
– Placa de Memória “RAM” (“Random-Access Memory”);
– Disco Rígido “HD” (“Hard Disk”);
– SSD (“Solid State Drive”)
– Ventoinha (“Cooler”); etc.

Externos
– Monitor;
– Teclado;
– “Mouse”;
– “WebCam”;
– “Scanner”;
– “Pendrive”;
– “Headphone”; etc.

Mais Detalhes em:
https://tecnoblog.net/responde/quem-inventou-o-mouse/
https://tecnoblog.net/responde/o-que-sao-perifericos-20-exemplos-de-perifericos-que-se-conectam-com-nossos-dispositivos/
https://tecnoblog.net/responde/o-que-e-hardware/
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