Igor Fuser: Vitória de Evo Morales na Bolívia destruiria narrativa do “fim do ciclo progressista”

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Telesur

Vitória de Evo Morales na Bolívia destruiria narrativa do “fim do ciclo progressista”

Professor de Relações Internacionais da UFABC, Igor Fuser analisa importância simbólica das eleições de 20 de outubro

por Daniel Giovanaz, especial Brasil de Fato

As eleições presidenciais de 2019 na Bolívia serão decisivas para o futuro do projeto neoliberal na América Latina.

Essa é a interpretação de Igor Fuser, doutor em Ciência Política e professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), sobre a disputa que pode abrir caminho para o quarto mandato do presidente Evo Morales.

Líder nas pesquisas eleitorais, o representante do Movimento ao Socialismo (MAS) precisa obter 50% dos votos válidos ou superar os 40% e abrir dez pontos percentuais sobre o segundo mais votado para vencer em primeiro turno, que ocorrerá no próximo 20 de outubro.

Os principais adversários de Morales são o ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005) e o senador Óscar Ortiz, ambos apoiados por setores conservadores.

As últimas pesquisas indicam que a eleição pode ser decidida já em primeiro turno, mas apontam os candidatos de centro-direita e direita como favoritos contra o atual presidente em um eventual segundo turno.

Na análise da Bolívia hoje, Fuser chama a atenção para os avanços socioeconômicos do atual governo, que mantém uma média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) superior a 4% desde 2006 e reduziu a pobreza extrema de 38,2% para 15,2% em 13 anos.

Segundo a análise do pesquisador, uma vitória da oposição representaria uma mudança significativa nos rumos da economia e facilitaria o acesso das grandes potências às reservas de gás natural, petróleo e lítio da Bolívia.

Confira os melhores momentos da entrevista:

Brasil de Fato: Qual a relevância das eleições bolivianas para a geopolítica do continente, considerando, por exemplo, o contexto de crise política no Peru e no Equador, tentativas frustradas de golpe na Venezuela, avanço do conservadorismo no país e eleições na Argentina e no Uruguai também no mês de outubro?

Igor Fuser: As eleições da Bolívia têm uma importância imensa diante do processo que a gente tem vivido nos últimos anos de ascensão das forças de direita na América do Sul e de crise, colapso e derrota dos governos progressistas (de centro-esquerda e esquerda).

Na América do Sul, a Bolívia é – junto com o Uruguai, que não é uma referência tão forte – o último dos países com um governo de orientação política de esquerda que se mantém “firme e forte”, digamos assim. Na Venezuela, o governo também se mantém, mas sob uma crise de proporções colossais, numa situação de gigantesca incerteza.

Na Bolívia, Evo Morales governa sem maiores percalços, com indicadores econômicos e sociais excelentes.

É o país que mais cresce na América Latina há muitos anos seguidos. Com Evo Morales, a Bolívia conquistou avanços sociais extraordinários, com diminuição da pobreza e melhoria das condições de vida em todos os aspectos, em um quadro de relativa estabilidade política.

Para as forças de direita, remover o governo Morales nas urnas, com uma vitória eleitoral, seria uma espécie de “cereja do bolo”, ou a peça que falta para completar o quadro de destituição da esquerda dos governos sul-americanos.

Por isso, a eleição tem um significado simbólico muito forte, tanto para a esquerda, quanto para a direita.

Uma derrota do Evo poderia ser apontada como prova de que se encerrou o “ciclo progressista” na América do Sul. E, ao contrário, uma vitória do Evo sinalizaria a força, a permanência, a atualidade desse projeto progressista na região.

Mostraria que se trata de um projeto viável, um projeto capaz de se manter e se prolongar no tempo de forma democrática.

A Bolívia tem cerca de 11 milhões de habitantes e mais de 10 milhões de pontos de conexão fixa e móvel à internet, o que torna essa eleição diferente de todas as anteriores no que se refere ao acesso e ao consumo de informações. Como esse cenário pode impactar a disputa eleitoral e a campanha de Evo Morales?

Evo Morales governa a Bolívia desde 2006. Ele foi eleito pela primeira vez em 2005 e, nesse período de quase 14 anos, ocorreram muitas transformações positivas.

Houve uma melhoria geral nas condições de vida da população, que deu acesso à quase totalidade dos bolivianos a certos confortos, como o telefone celular.

Então, aquela situação de relativo isolamento em que viviam os bolivianos, especialmente os indígenas e camponeses, foi substituída pela integração nas redes sociais, pelo acesso à internet, ao Twitter, Facebook, Whatsapp, etc.

Isso tem se mostrado, do ponto de vista eleitoral, um problema para o bloco político governante na Bolívia. Porque ele foi formado em um contexto de luta social na rua, de mobilização, de bloqueio de estradas, de panfletos, jornais… A geração que está no governo tem mais de 40 anos, chega a 50, 60 anos em muitos casos, e se renovou muito pouco nesse período.

Por outro lado, tem o fenômeno que a gente viu em países como Venezuela e Brasil: depois de um governo que promoveu reformas profundas, surge uma geração que não tem mais a lembrança de como era o período anterior.

No Brasil, no golpe de 2016 e nas eleições de 2018, havia uma ampla faixa de jovens sem lembrança de como foi o período neoliberal – de como a vida era difícil, com ausência de direitos, exclusão social, altos níveis de desemprego, concentração brutal da renda e com todas as falácias que marcam o discurso neoliberal.

Na Bolívia, isso acontece de maneira muito clara. Há uma parcela muito ampla de eleitores jovens com amplo acesso à internet, que vive de maneira muito confortável e navega nesse mundo digital, e não lembra como era a Bolívia antes de Evo Morales: o país mais pobre da América Latina, com algumas das piores condições no mundo, um país onde a vida econômica era marcada em grande medida pelo narcotráfico, por golpes de Estado, com um governo neoliberal extremamente excludente.

Esses jovens já ganharam consciência da vida social debaixo de um governo extremamente benigno, do ponto de vista dos pobres e desfavorecidos.

Já cresceram em um processo de crescimento econômico, aumento da estabilidade, e a tendência é que essas pessoas não considerem essas conquistas como resultado de luta, sangue, suor, sacrifício. Porque elas já nascem em uma situação mais confortável e, para elas, não está clara a relação entre o nível de vida relativamente mais confortável que elas têm e as escolhas políticas, a luta política. Esses jovens, portanto, são mais vulneráveis ao discurso da direita.

Isso já se viu no referendo de 2016, quando Evo Morales foi derrotado por uma pequena margem na consulta sobre uma mudança constitucional referente a mais uma reeleição. Aquela já foi uma consulta marcada por uma rede de fake news, com uma campanha muito suja, infame, com mentiras cabeludas, calúnias, que pegaram o governo desprevenido e acabaram enganando uma parcela da população.

Passaram-se alguns anos, e o governo está tendo tempo para se preparar para essa disputa no campo das redes, mas já entra atrasado. Esse é um terreno em que a esquerda leva desvantagem na Bolívia.

E a direita concentra sua força justamente nisso, até porque não tem muitos argumentos para disputar essa eleição. O governo Evo Morales foi muito bem sucedido nos planos econômico e social. Então, é muito difícil apresentar uma crítica consistente e uma alternativa ao governo.

No que se refere à relação com o Brasil, quais os possíveis impactos de uma eventual vitória de Evo Morales ou da oposição?

A gente nota muito claramente, por parte do governo da Bolívia, um cuidado extremo nas relações com o governo brasileiro. Evo Morales veio, deu os parabéns, compareceu à posse de Bolsonaro, e faz de tudo para evitar qualquer tipo de atrito ou polêmica.

No início do governo Bolsonaro, por exemplo, estourou o episódio do Cesare Battisti. O governo brasileiro estava procurando o Battisti para entregá-lo à Justiça italiana. Ele estava foragido na Bolívia e não encontrou nenhum tipo de ajuda por parte do governo local, facilitando a ação da polícia italiana, que o levou preso – gerando muitas críticas, inclusive da minha parte, pela maneira muito pouco justa como o governo boliviano se comportou nesse caso.

Mas dá para entender o lado do Evo Morales. Ele não queria ser acusado pela oposição local de dar guarida a alguém que, no sistema internacional, é chamado de “terrorista”, e não queria ter problemas também com o governo brasileiro. Porque são relações muito assimétricas.

O PIB [Produto Interno Bruto] brasileiro já foi cem vezes maior que o PIB da Bolívia – hoje, é dezenas de vezes maior. Então, a última coisa que Evo quer é que as relações entre Bolívia e Brasil sejam marcadas por hostilidade.

Existe essa atitude de cautela, ainda mais em um contexto internacional que não tem sido muito favorável aos governos progressistas, especialmente aqueles com viés de esquerda mais claro, mais socialista, mais revolucionário – como é o caso da Bolívia, da Venezuela, e já foi o caso do Equador, na época do governo Rafael Correa.

Evo está muito atento para o risco de isolamento e quer manter as relações o mais favorável possível com os vizinhos em um quadro difícil. A Argentina, que era um grande aliado, caiu nas mãos da direita com a eleição de [Mauricio] Macri, no final de 2015.

Uma derrota de Evo na Bolívia evidentemente seria comemorada por Bolsonaro com toda euforia como mais uma derrota da esquerda, dos bolivarianos, dos comunistas, enfim, como ele quiser chamar.

Porém, uma vitória de Evo Morales provaria que é falsa a narrativa do fim do “ciclo progressista” na região e mostraria, como eu mesmo acredito, que o jogo está sendo jogado, e as coisas não são assim tão simples.

A disputa é de longo prazo, entre o neoliberalismo – estreitamente associado ao imperialismo e as burguesias desses países – e as forças que se opõem a ele – basicamente, os trabalhadores e as forças populares. Essa disputa não vai terminar tão cedo, e está em pleno curso.

Essa visão pode ganhar força ou se enfraquecer, dependendo dos resultados do mês de outubro, especialmente na Bolívia.

A atual fase do capitalismo tem se caracterizado pelas tentativas de apropriação dos bens da natureza por parte das grandes potências. No Brasil, ficou muito claro que o ativo que interessava aos estrangeiros era, principalmente, o pré-sal. Foi a partir do descobrimento do petróleo nessa camada que começaram as intervenções mais explícitas no cenário político nacional, “de fora para dentro”. Na Bolívia, é possível distinguir qual é esse elemento de disputa? A nacionalização dos hidrocarbonetos está em risco, com uma eventual vitória da oposição?

Quando Evo ganhou as eleições [em 2005], a questão central que estava em disputa era justamente os hidrocarbonetos – as reservas de petróleo e as reservas de gás natural da Bolívia, que estão entre as maiores do mundo. A Bolívia exporta gás natural em grandes quantidades para o Brasil e para a Argentina. No período neoliberal, se tentou articular uma exportação de gás natural para o México e os Estados Unidos, o que acabou sendo bloqueado com a vitória da esquerda.

Essa questão do gás natural continua evidentemente em jogo, com o interesse das empresas transnacionais em controlar e se apropriar o máximo possível da renda do gás boliviano. Esse interesse permanece, mas agora há um fato novo: o lítio.

A Bolívia tem uma das maiores reservas mundiais de lítio, um mineral relativamente raro no mundo. Essas reservas estão situadas entre o território boliviano, o norte da Argentina e o norte do Chile. Mas é na Bolívia que há mais lítio, e de melhor qualidade.

O lítio é uma matéria-prima indispensável para a fabricação de baterias. Especialmente agora, com a disseminação do carro elétrico, que está cada vez mais prestigiado como uma maneira mais sustentável de transporte, sem emissão de CO2, o lítio boliviano tem sido muito cobiçado pelas transnacionais.

A Bolívia adotou uma política muito inteligente em relação ao lítio. O governo sabe que não tem condições de explorar esse mineral sozinho, por isso faz acordos com empresas estrangeiras – chinesas, principalmente, mas de outros países também –, resguardando a maior parte das ações em todos os consórcios para o Estado boliviano, garantindo a incorporação de tecnologia pela Bolívia.

Evidentemente, o lítio está em jogo. Se o governo de Evo for derrotado, os imperialistas vão avançar com toda voracidade sobre o lítio, assim como sobre os hidrocarbonetos.

A decisão que permitiu a Evo Morales concorrer ao quarto mandato demonstra um abismo entre o Judiciário da Bolívia e o do Brasil. Aqui, as sentenças decisivas no período pré-eleitoral foram todas contrárias à candidatura de Lula (PT), líder nas pesquisas eleitorais. A que se deve essa diferença? Pode-se dizer que o governo Morales “anteviu” a possibilidade de interferência externa no seu Poder Judiciário e soube blindá-lo, ou isso demonstra simplesmente que há menos interesses em jogo na Bolívia?

Uma coisa precisa estar clara: não existe Judiciário neutro, especialmente quando se fala de Suprema Corte, quem lida com questões constitucionais, de interpretação, julgamento da conduta dos governantes, projetos que afetem a condução do Estado.

Nesse plano, não existe neutralidade possível. O Judiciário é necessariamente politizado. Tanto é assim que nos Estados Unidos existem claramente os juízes democratas e os juízes republicanos, correspondendo às nomeações de cada governo.

O engraçado é que isso é considerado legítimo nos Estados Unidos e, quando essa politização do Judiciário se transpõe para a América Latina em favor de forças progressistas que estão no Executivo, como aconteceu na Venezuela e na Bolívia, isso passa a ser questionado.

Evidentemente que a decisão do Judiciário boliviano favorável ao pleito de Evo Morales de disputar mais um mandato tem um argumento plausível, que é o que todo cidadão boliviano tem os mesmos direitos, incluindo o direito de disputar a Presidência da República. Essa foi a interpretação que prevaleceu. E é claro que foi uma decisão política. Se fosse o contrário, também seria. Não podemos nos espantar.

Essa foi uma decisão legítima e soberana e que preserva a democracia naquilo que ela tem de mais essencial: o direito de os cidadãos escolherem quem vai ser o presidente da República.

Os bolivianos vão votar, existem vários candidatos, é uma eleição competitiva, e quem tiver mais votos ganha.

Edição: Vivian Fernandes


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Comentários

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Xavier

Sem renovação de lideranças, cria-se uma autocracia e perde todo o sentido progressista.

Zé Maria

Enquanto na Bolívia, o suspense toma conta dos Eleitores
para saber o Resultado Definitivo da Apuração dos Votos;
https://trep.oep.org.bo/

https://pbs.twimg.com/media/EHVJ-iUWsAAbYOb.jpg
o Fascista Sebastián Piñera leva tombo irrecuperável
‘com Exército, com Tudo’, nas ruas de Santiago, no Chile,
https://twitter.com/PiensaPrensa

e na Argentina #ElClubDelMoro passou a manhã nos Top Ten
do Twitter: https://twitter.com/ViniAH_12/status/1186268309580341249
E #LaCucarachaDeMacri continua nos Trends,
para se referir ao ponto de áudio (‘auricular’)
supostamente usado por Macri no Debate na TV:
https://pbs.twimg.com/media/EHZzn3SWsAAL-2V.jpg
https://twitter.com/valeriavandam/status/1186245934092554247

E aqui no braZil, a Extrema-Direita, Burra e Bunda-Mole,
tá com medo que o Foro de São Paulo domine o Mundo.
https://twitter.com/flaviogordon/status/1186232989669318656

Zé Maria

Eleições Bolívia 2019
Resultado Parcial

EVO = 45,28%
2° = 38,16%
https://trep.oep.org.bo/

Faltando apurar os votos
da população camponesa
que pode ampliar a Vantagem de EVO necessária para elegê-lo ainda no 1° Turno.

Zé Maria

https://www.vtv.gob.ve/en-vivo/

Zé Maria

Con 105 votos a favor #Venezuela es elegida este jueves 17Oct
miembro del Consejo de Derechos Humanos de la ONU

Zé Maria

Enquanto o Chile convulsiona, governado pela Direita Fascista,
a Bolívia, governada pela Esquerda, vota em Paz (Evo Morales)
https://www.telesurtv.net/el-canal/senal-en-vivo
https://www.telesurtv.net/seccion/programas/index.html

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