Gustavo Guerreiro: A máscara europeia cai sob o sol de Belém

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Merz em Belém na Cúpúla de Líderes, que antecedeu a COP30. Foto: Reprodução Kay Nietfeld/dpa/picture alliance

Por Gustavo Guerreiro, especial para o Viomundo

Há algo de profundamente revelador quando um chanceler europeu, suando sob o sol equatorial, deixa escapar o que deveria permanecer não-dito. Friedrich Merz, ao retornar de Belém após a Cúpula de Líderes pré-COP30, reuniu representantes do varejo alemão e perguntou aos jornalistas que o acompanharam: “Quem de vocês gostaria de ficar aqui?”

Segundo ele próprio relatou, ninguém levantou a mão. “Todos ficaram contentes por termos retornado à Alemanha, especialmente daquele lugar onde estávamos.”

Não foi o calor amazônico que derreteu apenas a compleição física do chanceler alemão; foi, sobretudo, a hipócrita máscara civilizatória que o Ocidente desenvolvido tanto se esmera em manter quando legisla, à distância e refrigerado, sobre o destino da floresta e de seus habitantes.

É aqui que a estratégia de Lula de levar a COP30 para o coração pulsante, úmido, caótico e humano da Amazônia revela seu acerto mais profundo.

Em seu discurso na 80ª Assembleia Geral da ONU, em setembro, Lula anunciou que a COP30 seria a “COP da Verdade”.

Disse o presidente brasileiro: “A Amazônia não é uma entidade abstrata. Quem só vê a floresta de cima desconhece o que se passa à sua sombra.” E completou: “Em Belém, o mundo vai conhecer a realidade da Amazônia.”

Pois bem: o mundo conheceu. E uma parte não gostou.

A declaração de Merz, feita numa terça-feira berlinense, diante de empresários do setor varejista, num contexto onde ele exaltava a Alemanha como “um dos países mais bonitos do mundo” é sintomática de algo maior do que mero desconforto climático.

Trata-se de uma característica, um aspecto cultural que não consegue processar a alteridade tropical sem hierarquizá-la, sem situá-la num plano inferior da experiência civilizacional. O chanceler não criticou a logística, não apontou problemas de infraestrutura, ele simplesmente manifestou alívio por ter saído daquele lugar.

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Merz é a encarnação da velha direita alemã: corporativista, hierárquica, obcecada pela ordem. Quando olha para Belém, ele não vê potência; ele vê desordem. E a desordem, para a psique conservadora germânica, é o prelúdio da barbárie.

O fastio, aqui, é estético e moral. Belém, com seus 1,3 milhão de habitantes, suas contradições urbanas e sua realidade amazônica, não cabe no imaginário nórdico de ordem, limpeza e eficiência.

A cidade que Lula quis mostrar tem quase cinquenta milhões de pessoas, incluindo 400 povos indígenas, dispersa por nove países em desenvolvimento é, para certa mentalidade europeia, incômoda demais para ser abraçada. Ela existe como problema a ser resolvido, não como realidade a ser compreendida.

É neste ponto que a biografia familiar de Merz deixa de ser mero detalhe genealógico e torna-se chave sociológica.

Seu avô materno, Josef Paul Sauvigny, que foi prefeito de Brilon entre 1917 e 1937, filiou-se ao Partido Nazista (NSDAP) em 1937, após ter sido membro da Sturmabteilung (SA), as tropas de assalto de Hitler.

Não se trata aqui de determinismo biológico, mas de continuidades culturais. Seu conterrâneo, o sociólogo Norbert Elias, nos ensina que certos habitus (disposições internalizadas, maneiras de ver e classificar o mundo) são transmitidos através de gerações, moldados por ambientes familiares e pelas estruturas de poder que os sustentam.

O desprezo colonial, o olhar que divide rigidamente “civilização” e “barbárie”, “ordem” e “caos”, não desaparece por decreto, nem se dilui automaticamente com o fim formal de um regime. Ele persiste, sutil, nas entrelinhas dos discursos, nos gestos involuntários, na incapacidade de empatia com o “outro” racializado e geograficamente distante.

Merz, em 2004, já havia causado polêmica ao exaltar publicamente seu avô durante uma campanha municipal, convocando ao “assalto ao Rathaus vermelho” (Câmara Municipal de Berlim, que recebeu esse nome devido à cor de seus tijolos vermelhos) uma retórica deliberadamente evocativa da linguagem paramilitar nazista.

Mesmo após as críticas, ele continuou defendendo a figura do avô, afirmando que “meu avô não era um nacional-socialista”, apesar das evidências documentais em contrário.

O que temos, portanto, não é um caso isolado de impaciência turística, mas um padrão: a incapacidade crônica de certa elite europeia de lidar com a realidade pós-colonial sem recorrer, consciente ou inconscientemente, às antigas hierarquias.

O Norte Global quer a floresta preservada, quer os créditos de carbono, quer a biodiversidade intacta, mas não quer, em hipótese alguma, conhecer o amazônida, conviver com suas cidades imperfeitas, suportar o calor, a umidade, a precariedade que é, também, fruto de séculos de exploração colonial e neocolonial.

Querem a clorofila, mas não suportam a melanina.

A “COP da Verdade” de Lula funcionou, portanto, como um espelho incômodo. Ao forçar os líderes globais a saírem dos ambientes climatizados de Genebra, Paris ou Berlim, Lula os colocou diante de uma realidade que preferem manter abstrata. E a reação de Merz de alívio confesso, misturado a um fastio mal disfarçado é a prova de que a estratégia acertou no alvo.

Lula, em seu discurso na abertura da COP30 em Belém, no dia 10 de novembro, afirmou que seria mais fácil ter realizado a conferência numa cidade acabada, que não tivesse problema, mas que o Brasil aceitou o desafio de fazer a COP num estado amazônico para provar que, quando se tem disposição política, quando se tem vontade e quando se tem compromisso com a verdade, não há nada impossível de ser realizado.

É exatamente essa “verdade” que incomoda. Ela mostra que a emergência climática não é um problema técnico a ser resolvido em laboratórios europeus, mas uma crise de desigualdade global, onde os que mais sofrem são os que menos contribuíram para a emergência climática.

Ela exige, como disse Lula na ONU, que aqueles que enriqueceram com padrões de vida obtidos ao longo de 200 anos de industrialização precisam assumir maior responsabilidade. Não se trata, nas palavras de Lula, de “caridade”, mas de “justiça”.

Merz, ao prometer “uma quantia considerável” para o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF), mas sem especificar valores, demonstrou o padrão europeu de compromissos vagos e condicionados.

Sua passagem por Belém deixou a impressão, segundo reportagem do Diário do Pará, de que “ele próprio não entendeu ao certo o que veio fazer no evento”.

E talvez seja exatamente isso: ele não entendeu porque não queria entender.

Para entender Belém, seria preciso desmontar as estruturas mentais que separam “nós” de “eles”, “civilização” de “selva”, “desenvolvimento” de “atraso”.

Seria preciso reconhecer que a Amazônia não é um museu verde a serviço do equilíbrio climático europeu, mas o lar de milhões de pessoas cujas demandas por dignidade, desenvolvimento e soberania são tão legítimas quanto as de qualquer cidadão de Berlim.

O prefeito de Belém, Igor Normando (MDB), respondeu à altura: “A fala dele não representa o que a maioria da população do mundo inteiro tem achado da nossa cidade”, disse, classificando a declaração de Merz como “infeliz, arrogante e preconceituosa”.

E arrematou: “Enquanto você vem com a sua arrogância, nós paraenses, belenenses, amazônidas, vamos oferecer o que existe de melhor em nós, que é o nosso calor humano, o nosso acolhimento e o nosso amor”.

Há, nessa resposta, uma lição de civilidade que o chanceler alemão faria bem em aprender. A verdadeira barbárie não está na infraestrutura imperfeita de Belém, mas na incapacidade de reconhecer a humanidade plena do outro.

A grosseria diplomática de Merz, ao apressar sua partida alegando “compromissos urgentes” (que sua agenda oficial desmentia), é o maior “presente” que o Itamaraty poderia receber. Se a realidade da Amazônia é “dura demais” para a sensibilidade do Chanceler alemão, então a narrativa de Lula na ONU está validada.

A “verdade” da COP30 é exatamente essa: o desconforto. O Brasil não deve pedir desculpas pelo calor ou pelas falhas logísticas de uma metrópole em desenvolvimento.

Pelo contrário. O Itamaraty deveria, em notas de rodapé ou briefings em off para a imprensa estrangeira (que adora apontar nossas falhas), enquadrar o episódio como uma incapacidade de adaptação do visitante.

A lógica deve ser invertida: o Norte Global enriqueceu queimando carvão e criando o efeito estufa que agora cozinha o mundo. O Norte Global exige que paremos de desmatar. O líder de uma das maiores economias do Norte Global vem aqui e não aguenta um dia no clima que eles ajudaram a desregular?

O “Rei da Europa” está nu, suado e desesperado por um ar-condicionado. Sua fragilidade física e moral diante da nossa realidade expõe a hipocrisia de um discurso ambiental que não suporta o cheiro de gente.

Tendemos a crer, com nosso complexo de vira-lata (tão bem diagnosticado por Nelson Rodrigues e jamais curado), que quando um estrangeiro torce o nariz para o Brasil, a culpa é nossa. Que não limpamos a casa direito para a visita.

Desta vez, ouso discordar com veemência. A casa estava como ela é. A “verdade” prometida por Lula é feita de açaí, de carimbó, mas também de desigualdades e precariedades. Esconder isso seria fraudar a COP.

Mostrar isso, e ver o homem mais poderoso da Alemanha recuar horrorizado não é vergonha – como querem os bolsonaristas e demais figuras do espectro fascista brasileiro – é uma vitória política.

Mostra que a dívida climática não se paga com transferências de fundos irrisórios para o Fundo Amazônia, valores que mal pagam a reforma de uma praça em Berlim.

A dívida se paga com a compreensão de que a vida no Sul global, sob a emergência climática, é um ato de resistência.

A Europa não está pronta para salvar o mundo, porque a Europa sequer consegue suportar o mundo real.

Lula prometeu a COP da Verdade. Merz, sem querer, nos deu a prova definitiva dela.

A verdade, afinal, é sempre incômoda. E Belém a serviu sem açúcar.

*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Antonio Mercado

Um artigo notável: a partir de uma grosseria xenófoba do chancelerr alemão, um bravo Guerreiro põe em contraste duas visões antitéticas do mundo e nos convida a repensarmos nossa condição de cidadãos terceiro-mundistas. Parabéns, Gustavo.

Marco Paulo Valeriano de Brito

QUE SE DANE O QUE OS ESTRANGEIROS PENSAM DE NÓS E DO NOSSO BRASIL

Enquanto o Brasil se importar, se machucar, se sentir ofendido e diminuído pelo que fala um estrangeiro, seja governante, empresário, jornalista, turista, etc, só comprova o espírito infantil que ainda paira sobre a nossa nação.

Quem tem que avaliar se o Brasil é bom ou ruim, se temos bem-estar na nossa casa, se o povo brasileiro tem qualidade de vida, se superamos nossas desigualdades, vencemos as ignomínias, somos nós mesmos, brasileiras e brasileiros, enfim, cabe só a nós derrotarmos as nossas mazelas, inclusive, os enfrentamentos climáticos e o cuidado com a natureza e o meio-ambiente.

Pior são brasileiros e brasileiras que falam mal de si mesmos, odeiam seu próprio país, contribuem pela destruição permanente da nossa sociedade e dificultam o avanço e o desenvolvimento da nossa civilização.

O que fazermos com brasileiros e brasileiras que percorrem o mundo, e lacram nas redes digitais, desqualificando o Brasil?

Como nos livraremos da oligarquia do atraso do Brasil, dos corruptos, dos corruptores, das organizações criminosas, do narcotráfico, das narcomilícias, do garimpo ilegal, do agribusiness devastador, de governantes demagogos, fisiológicos, clientelistas, e do complexo de lambe-botas, que ainda mantém o Brasil submetido ao eurocentrismo e sabujo aos interesses da União Europeia e dos EUA, se magoando com o que dizem de nós, querendo ser como o Norte Ocidental?

Somos um Estado-Naçāo continental de dar inveja e só nós podemos nos valorizar ou seguir nos auto-destruindo.

Só seremos um povo desenvolvido e uma nação sustentavel e soberana quando dermos mais importância ao que pensam e dizem os brasileiros e as brasileiras, como anda o seu nível de satisfação com o seu próprio país, a qualificação da educação, da saúde, do trabalho e da promoção e progressão social de toda a nação, do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste, deste magnífico Brasil.

No mais, não temos que dar satisfações a alemãs, combinar com russos, abaixar a cabeça para estadunidenses, querermos ser europeus, enfim, o que de fato importa é termos auto-estima, identidade e pertencimento cidadão e cidadã para com o nosso país e para com a nação multicultural e multiétnica que estamos desenvolvendo para atingirmos o auge civilizacional dentro da nossa diversidade brasileira.

Marco Paulo Valeriano de Brito

Brasil, 18 de Novembro de 2025.

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