Por Gustavo Guerreiro*, especial para o Viomundo
Há uma obscenidade asséptica no Senado Federal. Quem caminha por ali, entre o ar condicionado onipresente e os ternos de corte impecável, raramente sente o cheiro de sangue ou de mata queimada que, invariavelmente, impregna as decisões tomadas naquele plenário.
Executando a política indigenista há quinze anos, desenvolvi uma espécie de alergia a essa desconexão brutal entre a caneta do legislador e a realidade da “ponta”, aquele lugar onde o Brasil deixa de ser uma tese jurídica e vira sobrevivência nua e crua.
Li recentemente, com aquele misto de exaustão intelectual e déjà vu que acomete qualquer indigenista nestes trópicos, diversas matérias sobre a nova votação do Marco Temporal, retirada da gaveta às pressas pelo senador Davi Alcolumbre e na véspera do julgamento de ações sobre esse tema pelo Supremo Tribunal Federal.
A premissa é de uma simplicidade que beira o cinismo infantil: para ter direito à terra, os indígenas precisariam estar ocupando-a fisicamente em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da nossa Carta Magna.
Parece lógico, não é? O Direito adora datas, marcos, prazos fatais. O problema é que a história não cabe numa planilha de Excel, e o Brasil de antes de 1988 não era exatamente um jardim de infância democrático onde as pessoas escolhiam onde morar.
O que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sob a batuta orquestrada e estridente do senador Davi Alcolumbre, tenta nos vender não é apenas uma tese jurídica sobre a propriedade. É uma reescrita da história. É, para usar um termo caro à sociologia de Michel Polak, a legitimação institucional do esquecimento.
Ao exigir a “prova de posse” em 1988, o Senado brasileiro finge ignorar que, até aquela data, os povos indígenas viviam sob um regime de tutela estatal.
Não eram cidadãos plenos; eram, aos olhos do Estado, “silvícolas” incapazes, geridos por órgãos que oscilavam entre a negligência criminosa e a cumplicidade ativa no esbulho de seus territórios.
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Exigir que um povo estivesse em sua terra em 1988, quando nos anos 1960 e 1970 foram removidos à bala, arrastados por caminhões e aviões da FAB ou expulsos pela grilagem incentivada pelos governos militares, é de uma crueldade kafkiana.
É como sequestrar um indivíduo, mantê-lo em cativeiro por vinte anos e, ao final, tomar-lhe a casa sob a justificativa de que ele “abandonou o lar” na data em que o fiscal passou para verificar a ocupação.
A ignorância histórica deliberada nos discursos que ouvimos na CCJ não é um lapso cognitivo; é um projeto político.
Quando um senador sobe à tribuna para defender o Marco Temporal em nome da “segurança jurídica” e do “direito de propriedade”, ele não está protegendo o pequeno agricultor (o escudo humano retórico favorito do agronegócio). Ele está, na verdade, passando a borracha no crime original.
Tendemos a crer, na nossa ingenuidade urbana e letrada, que a grilagem é algo rústico, feito por jagunços de dentes podres no meio do mato. Ledo engano. A grilagem moderna veste terno, cita artigos da Constituição e tramita em comissões especiais.
O que vemos hoje é a tentativa de transformar o roubo de terras ocorrido durante a ditadura militar e nos séculos anteriores em um ativo líquido e certo, transacionável na bolsa de valores e aceito como garantia em empréstimos bancários.
E aqui entra a figura emblemática de Davi Alcolumbre. Observá-lo em ação é uma aula prática sobre o funcionamento do “colonialismo interno”, conceito que intelectuais como Pablo González Casanova exploraram tão bem, mas que no Brasil ganha contornos de opereta trágica. Alcolumbre não atua apenas como um parlamentar; ele se move com a desenvoltura de um Vice-Rei colonial.
Sua gestão na CCJ e sua influência no Congresso não visam a construção de um País moderno, mas o reordenamento do território para a Coroa, sendo a “Coroa”, neste caso, o mercado fundiário especulativo e o agronegócio predatório.
Para esse Vice-Rei contemporâneo, a Amazônia e as terras indígenas não são lares ancestrais ou ecossistemas vitais; são almoxarifados de recursos à espera de inventário.
A perversidade do argumento temporal reside na inversão do ônus da prova. O indígena, que muitas vezes mal fala o português burocrático, precisa provar que estava lá, enfrentando jagunços, malária e a omissão do Estado.
Já o detentor do título de terra — muitas vezes um papelório forjado em cartórios de interior com a conivência de tabeliãos corruptos — goza da presunção de legalidade. No Brasil oficial, o papel vence a memória. O azul da tinta do cartório vale mais que o vermelho do sangue na terra.
A história e a memória acertam em cheio ao lembrar as remoções forçadas. Onde estavam os Krenak, por exemplo? Muitos estavam no Reformatório Krenak, um campo de concentração indígena operado pelo Estado brasileiro durante a ditadura.
Como poderiam estar “ocupando mansa e pacificamente” suas terras tradicionais se estavam encarcerados pelo próprio Estado que agora lhes exige a posse? É uma piada de mau gosto, contada em juridiquês castiço.
E não nos iludamos: essa movimentação legislativa não é isolada. Ela faz parte de um desmonte sistemático que venho acompanhando e denunciando em outros textos, às vezes com a sensação de estar gritando no deserto há anos.
O recente desmantelamento da Funai, o enfraquecimento do Ibama – órgãos timidamente apoiados no governo Lula –, e agora a tese do Marco Temporal, são peças de um mesmo quebra-cabeça.
O objetivo final é a “limpeza” do cadastro fundiário nacional, removendo o “entulho” humano que atrapalha a expansão da fronteira agrícola.
O Brasil, que adora se projetar internacionalmente como o “país do futuro”, a “potência verde”, internamente opera com a mentalidade das capitanias hereditárias.
Nossas elites políticas, a despeito dos diplomas e das viagens a Paris, ainda raciocinam como donatários. A terra não é um bem comum ou um espaço de vida; é moeda de troca política e reserva de valor.
O indigenista que habita em mim não pode deixar de notar a estrutura de classes que sustenta esse discurso.
O indígena é o “outro” radical. Ele não consome, ele não produz commodities (na visão estreita do mercado), ele “atrapalha” o progresso.
Portanto, sua remoção — seja física, seja jurídica através do Marco Temporal — é vista como um ato de saneamento.
É a civilização passando o trator sobre a barbárie, quando, na verdade, a barbárie está sentada na cadeira da presidência da comissão, decidindo destinos com a frieza de um contador de cadáveres.
Mas o que fazer diante desse cenário dantesco? Apenas indignar-se é pouco; a indignação, no Brasil, é uma commodity desvalorizada pela superoferta. Precisamos de mecanismos de trava.
Se a política insiste em ignorar a história, a técnica precisa impor a realidade. Proponho, aqui, algo que deveria ser óbvio, mas que no nosso parlamento soa revolucionário: a inclusão obrigatória de laudos antropológicos independentes em qualquer processo legislativo que verse sobre terras indígenas.
Não laudos feitos por técnicos indicados pelas bancadas ruralistas de plantão ou por consultorias pagas pelas partes interessadas. Falo de laudos produzidos por universidades públicas, validados pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), com caráter vinculante.
Se a história diz que ali houve esbulho, que houve remoção forçada, que a ausência em 1988 foi fruto de violência estatal, a lei não pode dizer o contrário.
Criaríamos, assim, uma barreira de verdade factual contra a ficção jurídica. Qualquer projeto de lei, emenda ou decreto que tentasse alterar o status de uma terra indígena teria que passar pelo crivo da história documentada.
Se o laudo comprovar que a desocupação foi forçada, o Marco Temporal cai por terra literalmente. Seria a imposição da ciência e da memória sobre a vontade política circunstancial de um ou outro senador que deseja lotear o País.
Sei que é uma proposta utópica para o atual Congresso. Imaginar que Davi Alcolumbre ou a bancada ruralista aceitariam submeter seus interesses ao crivo de antropólogos e historiadores é quase tão fantasioso quanto acreditar na imparcialidade de certos parlamentares. Mas é preciso dizê-lo. É preciso marcar posição.
O que está em jogo não é apenas o destino de etnias que resistem há 500 anos. É a alma do Brasil moderno.
Se aceitarmos que o Estado pode legalizar o roubo passado por decreto presente, estaremos admitindo que a força bruta é a única fonte real de direito neste País.
Estaremos assinando embaixo da tese de que a Constituição de 1988 não foi um marco de redemocratização e direitos humanos, mas apenas um intervalo comercial antes que os donos do poder voltassem à programação normal.
Marco Temporal é a tentativa de transformar 1988 em um muro, não em uma ponte. E cabe a nós, que ainda guardamos alguma memória e algum apreço pela decência, empunhar a marreta da História e derrubar cada tijolo dessa construção infame.
Afinal, se a amnésia é o projeto deles, a memória deve ser a nossa trincheira. E nessa trincheira, a verdade histórica é a munição que nos resta.

Gustavo Guerreiro: ”O Marco Temporal é a tentativa de transformar 1988 em um muro, não em uma ponte. E cabe a nós, que ainda guardamos alguma memória e algum apreço pela decência, empunhar a marreta da História e derrubar cada tijolo dessa construção infame”. Foto: Yarikazu Xipaya
*Gustavo Guerreiro é doutor em políticas públicas e pesquisador do Observatório das Nacionalidades.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.




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