Brasil: a longa noite dos corpos
A brutalidade que se viu nas vielas do Complexo da Penha não é um espasmo de violência, um desvio na rota da civilização. Ela é a própria rota. É a violência fundadora, o DNA de um país erguido sobre o açoite e a pólvora
29 de outubro de 2025. O dia ainda não rompera sobre a Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, mas a noite já se eternizava em centenas de corpos. Estendidos sobre o asfalto, cobertos por lonas plásticas e lençois florais manchados de sangue, eles eram a crônica de uma guerra que não ousa dizer seu nome. Foram mais de 130 vidas ceifadas, arrastadas da mata por moradores que, em meio ao luto, se tornaram coveiros improvisados. “Isso foi um massacre, não uma operação”, ecoava a voz de uma comunidade acostumada à brutalidade, mas ainda capaz de se horrorizar com a escala da carnificina. O governador do Estado, Cláudio Castro, em contraste, celebrava o “sucesso” da ação, um eco sombrio da lógica que há muito rege esta nação chamada Brasil.
A brutalidade que se viu nas vielas do Complexo da Penha não é um espasmo de violência, um desvio na rota da civilização. Ela é a própria rota. É a violência fundadora, o DNA de um país erguido sobre o açoite e a pólvora. É a mesma violência que abarrotava os porões dos navios negreiros, onde corpos negros eram empilhados como mercadoria, inaugurando a contabilidade macabra que até hoje define quem pode viver e quem deve morrer. A cena dos corpos na praça, aguardando a chegada tardia do Estado que os executou, é um retrato contemporâneo do convés do navio tumbeiro, a mesma desumanização, a mesma exposição pública do poder sobre a vida e, principalmente, sobre a morte.
Essa violência é a dos bandeirantes, figuras romantizadas em monumentos que, na verdade, foram os senhores da guerra contra os povos originários e os quilombos. A caça a Zumbi dos Palmares, a aniquilação de aldeias inteiras, o degolar de indígenas: tudo isso faz parte da mesma gramática de extermínio que hoje se aplica nas favelas. O Estado brasileiro, desde sua concepção, aprendeu que a resposta a qualquer forma de organização social deve ser o massacre. Foi assim contra as rebeliões de escravizados, que ousaram sonhar com a liberdade; foi assim em Canudos, onde um arraial de miseráveis foi afogado em sangue em nome da República; foi assim na Revolta da Vacina, quando o povo se insurgiu contra o autoritarismo sanitário; e foi assim na Revolta da Chibata, quando marinheiros negros exigiram o fim da tortura e receberam a morte como resposta.
O tempo passou, mas a lógica permaneceu. Vigário Geral, Candelária, Carandiru. Nomes que se tornaram sinônimos de chacinas, capítulos mais recentes de uma mesma história. A operação no Rio de Janeiro, a mais letal da história da cidade, não é um ponto fora da curva; é a reafirmação da curva. É a violência cotidiana que se abate sobre os povos da Amazônia, cujas terras são invadidas e cujos líderes são assassinados, e sobre os povos afrodescendentes das comunidades e morros, tratados como inimigos em seu próprio território. “Da favela para dentro, tiro, porrada, bomba, invasão, desrespeito, chacina, massacre. Em outros endereços, o tratamento é quase vip”, resumiu o ativista Raull Santiago, um dos que transmitiu o horror ao vivo.
O Brasil, mais uma vez, ensina ao mundo o seu pior. Antes que o conceito fosse nomeado pelo filósofo Achille Mbembe, o país já havia inventado a necropolítica. Essa é a política que se baseia no poder de ditar quem é descartável, uma gestão da morte que se torna a principal ferramenta de controle sobre populações inteiras. Hoje, essa política é aplaudida pelos asseclas de Cláudio Castro e pelos viúvos de Jair Bolsonaro, para quem a frase “bandido bom é bandido morto” não é apenas um slogan, mas um projeto de poder, a licença para matar que ecoa desde os capitães do mato.
A longa noite dos corpos de outubro de 2025 é apenas mais uma página no diário de uma nação que nunca acertou as contas com suas assombrações autoritárias. O horror que choca o mundo é, para nós, a confirmação de uma estrutura. É o navio negreiro que ainda ancora em nossas praias, o bandeirante que ainda marcha sobre nossas terras, o pelourinho que ainda se ergue em nossas praças. A barbárie não é a exceção; é a regra que se reafirma a cada corpo preto, pardo e pobre tombado no chão de uma favela.
*Lindener Pareto é professor e historiador.E mestre e doutor pela USP (Universidade de São Paulo).
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Comentários
Marco Paulo Valeriano de Brito
Obrigado pelo seu texto professor Lindener Pareto!
Após mais esse desabafo, e ainda temos muitos humanistas entre nós, nesse país desumano, fica a pergunta de sempre: o que fazermos para acabarmos com esse genocídio sistêmico implantado no Brasil (Pindorama) a partir de 1500?
Os bandeirantes seguem firmes nos dominando, explorando, escravizado, esmagando nossos sonhos e nos assassinando impiedosamente.
Os abolicionistas verbalizam as causas do povo oprimido, hoje cerca da metade dos 215 milhões de brasileiros, mas não vão muito além do assistencialismo, da caridade, do populismo e da solidariedade.
Uns nos matam.
Outros nos protegem dos assassinos e nos tutelam como se fôssemos eternas crianças incapazes de autogerir nossas vidas e gerir a nação, onde somos a maioria do povo.
A revolução cultural-popular brasileira está tardando, caro companheiro professor Lindener, contudo, haverá de mudar tudo e erguermos juntos o Estado-Naçāo de todas e todos brasileiros.