Antonio Martins: Orçamento, o indesejável consenso

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Orçamento, indesejável consenso. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Orçamento: o indesejável consenso

Em surdina, neoliberais aproximam-se de uma vitória estratégica – anular os dispositivos constitucionais que obrigam o Estado a investir em Saúde e Educação. Mais espantoso: o passo pode ser dado por iniciativa do governo Lula

Por Antonio Martins*, no Outras Palavras

Em entrevista publicada pelo Valor nesta segunda-feira (4/9), o secretário do Orçamento Federal do ministério do Planejamento, Paulo Bijos, confirmou: o Executivo pretende descumprir os dispositivos constitucionais que obrigam a União a destinar no mínimo 15% da receita de impostos à Saúde e 18% à Educação.

Em 2023, a tentativa de martelar o “piso” será feita por meio de um “pedido de autorização” ao Tribunal de Contas da União. Para os próximos anos, como já antecipara Rogério Ceron, membro da equipe de Fernando Haddad, prevê-se uma Proposta de Emenda Constitucional de idêntico sentido.

Saúde e Educação precisariam, como é notório, de muito mais recursos. O SUS, subfinanciado desde sua criação, acumulou enormes “vazios assistenciais”.

A escola pública, enfraquecida e desatualizada há muito, sofreu um novo baque com a pandemia e não dá sinais de se recuperar.

Mas é possível que as novas restrições sejam aprovadas sem debate, porque a ideia de um projeto nacional está em refluxo, sendo substituída pela busca de um mito: o “orçamento com déficit zero”.

Ao aderir à onda, em tempo de vacas gordas, o governo Lula pode criar uma cilada para si mesmo – e amplia sua dependência em relação aos setores mais fisiológicos do Congresso. É fácil compreender por quê.

A vitória sobre Bolsonaro, há dez meses, não enterrou o projeto neoliberal. Evitou, é claro, suas consequências mais duras – entre outras, a privatização da Petrobrás, BB e Caixa, anunciadas de forma explícita pelo ex-presidente, ou a continuação dos ataques ao Trabalho.

Mas a ideia de “reconstrução nacional”, que Lula chegou a mencionar com ênfase, no período de transição e no discurso de posse, esmaeceu rapidamente.

Em vez disso, impôs-se, como explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, a ideologia do “ajuste fiscal”, que tem raízes sólidas no mercado, na mídia e na classe média.

A expressão maior deste recuo foi o “arcabouço” proposto pelo ministro Haddad em abril e sancionado por Lula em 31/8, sob o nome de “novo marco fiscal”. A  crítica foi feita em detalhes por Outras Palavras.

As consequências estão começando a surgir. Uma delas é a forte restrição ao gasto público. Embora não tão drásticas quanto o velho “teto de gastos” de Temer-Bolsonaro, as novas regras limitam, por uma série de ferrolhos sobrepostos, o aumento da despesa da União.

Na melhor das hipóteses, ela poderá crescer raquíticos 2,5% ao ano (contra 6%, em média, no governo Lula 2), sempre em nome de um fictício “equilíbrio orçamentário”.

Como o gasto público foi muito comprimido desde 2015, instala-se a lógica do cobertor curto. Saúde e Educação estão hoje protegidas pelo piso constitucional.

A ministra Simone Tebet apavora, em tom alarmista e na língua dos mercados.

Sustenta que, se mantida, esta garantia significará o shutdown (fechamento) de outros ministérios, que ficarão sem verba alguma.

Seu secretário e o de Haddad anunciam que o governo agirá para quebrar o piso, uma das conquistas históricas da Constituição Cidadã. Caso a intenção se concretize, Saúde e Educação perderão, só este ano, R$ 18 bilhões. Vale comparar.

O desfalque equivale a 30 vezes o que a ministra Nísia Trindade conseguiu obter, a duras penas, para tentar diminuir um pouco o drama de 1 milhão pessoas, que esperam por cirurgias e consultas atrasadas no SUS, desde a pandemia.

E o que o Brasil ganharia com isso? Como demonstrou Outras Palavras, o “déficit zero”  é um mito interesseiro.

Ele diz respeito apenas ao Orçamento Geral da União (OGU), que é votado pelo Congresso, examinado a cada passo pela mídia e onde constam, de um lado, as receitas de impostos; e de outro as despesas tradicionais da máquina pública – obras, salários, material de consumo, manutenção etc.

Há um outro orçamento do Estado, desconhecido do público. Beneficia, essencialmente, uma pequena minoria (os rentistas) com o pagamento de juros. É sempre deficitário.

Só nos doze meses encerrados em junho último, consumiu R$ 660 bilhões, mais que os gastos previstos, ao longo de 2023, para os ministérios da Saúde, Educação e Desenvolvimento Social somados…

Este orçamento dos rentistas não depende de aprovação no Congresso, não é examinado pelos Tribunais de Contas, nem vira notícia na mídia. O Banco Central determina a taxa de juros e a aplica.

O Estado brasileiro cria dinheiro, do nada, para executá-lo. Em termos técnicos, emite novos títulos da dívida pública, que pode ser convertida a qualquer momento em reais.

Faça as contas. Os mesmos R$ 18 bilhões que a área econômica do governo quer tirar da Saúde e da Educação serão pagos ao 0,1% mais rico a cada período de dez dias, ao longo de 2023…

A penúria a que os serviços e investimentos públicos continuam submetidos condenará o governo Lula ao fracasso e abrirá as portas para a volta do fascismo, em 2026? Não necessariamente.

O declínio das condições de vida, a partir de 2015, foi tão drástico que mesmo a pequena melhora dos últimos meses produz alguns resultados sensíveis.

Após acumularem queda de 8%, em 2021 e 2022, os salários estão crescendo 3,9% acima da inflação, este ano.

O desemprego caiu para 7,9% em julho, contra 9% há um ano. A melhora do ambiente político, com desmoralização progressiva do bolsonarismo, também contribui.

A popularidade de Lula cresceu, avançando inclusive entre parcelas do eleitorado tradicionalmente hostis ao presidente – os evangélicos e a região Sul, por exemplo.

Mas há dois grandes problemas. O primeiro é de curto prazo. O novo regime fiscal deixará o governo vulnerável e sujeito ao Congresso, caso um imprevisto derrube a atividade econômica e a arrecadação.

Nessa hipótese, ao invés de um aumento modesto do gasto público, haverá restrições e penalidades. Na entrevista ao Valor, o secretário Paulo Bijos revelou que, na arquitetura político-financeira do Orçamento para 2024, até mesmo uma parte dos recursos necessários para o pagamento do Bolsa Família depende de resultados fiscais e da boa vontade dos parlamentares.

Mas a maioria conservadora do Congresso permanecerá com Lula, caso vislumbre a possibilidade de enfraquecê-lo?

O segundo problema é mais grave, pois relaciona-se à regressão do país. O Brasil está à deriva, sem projeto, há 35 anos.

Diante do ascenso das maiorias e das lutas sociais, que marcou o período 1974-88, as classes governantes refugiaram-se no atraso.

A economia, talvez a mais moderna entre o Sul Global à época da Constituição, desindustrializou-se, reprimarizou-se e se financeirizou. Os retrocessos puxam um ao outro.

Onde havia trabalhadores organizados, resta agora uma grande massa de precários, que não se veem como iguais e frequentemente competem entre si mesmos, enquanto não surge um novo projeto de transformação e um ser político coletivo.

O Estado pode liderar um impulso em direção a grandes mudanças.

Se é possível emitir, a partir do nada, R$ 660 bilhões para enriquecer os rentistas, por que este mesmo dinheiro não pode ser criado para, por exemplo, construir um SUS e uma escola pública de excelência; criar redes de metrôs e ferrovias modernas; realizar a transição energética e a reforma agrária; transformar urbanisticamente as cidades e em especial as periferias? Estamos condenados ao atraso?

Estaremos – enquanto não se espalhar, entre a sociedade, a ideia de que é preciso reerguer o país em novas bases – em vez de perseguir a miragem medíocre do “déficit zero”.

*Antonio Martins é jornalista e editor geral do Outras Palavras

Leia também:

Paulo Nogueira Batista Jr: A recuperação ”surpreendente” da economia brasileira

Jeferson Miola: A armadilha do déficit fiscal zero


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Comentários

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Nelson

“Se é possível emitir, a partir do nada, R$ 660 bilhões para enriquecer os rentistas, por que este mesmo dinheiro não pode ser criado para, por exemplo, construir um SUS e uma escola pública de excelência?”

Ora, por uma razão bem simples: o investimento pesado na saúde e na educação públicas é abominado por aqueles que detêm o poder, de fato: os privatistas/entreguistas. Esse investimento vai acabar “roubando” mercado da saúde e da educação privadas. Então, tem que ser impedido a qualquer custo.

Vejamos a seguinte situação. Você está pagando R$ 600, R$ 800 ou R$ 1.000 por mês por um plano de saúde, e, num determinado dia, encontra um amigo que te diz que, ao precisar de atendimento, foi até um UBS onde foi atendido como gente. A seguir, você encontra várias outras pessoas conhecidas que te dizem a mesma coisa.

Você vai para casa e se põe a questionar: “se uma UBS está realmente a oferecer a saúde de qualidade a qual tenho direito, sem pagar nada mais por ela além dos impostos, por que eu deveria continuar pagando tanto dinheiro por meu plano de saúde privado?”

Depois de analisar a coisa, você vai, fatalmente, acabar se decidindo por deixar de pagar o plano de saúde privado e assim poupar os “pilas” para investir em outra coisa. E esta não será uma conclusão exclusiva de você, mas de muitos milhares, talvez milhões, de brasileiros que pagam plano de saúde privado.

Por que as pessoas seguiriam pagando duas vezes – uma, indiretamente, via impostos, a segunda, via mensalidades do plano de saúde privado – para terem acesso à saúde?

Ou seja, o investimento público em saúde de qualidade para o povo vai, inevitavelmente, esvaziar o mercado da saúde privada e, por consequência, os gordos lucros que o setor obtém.

Então, é claro que os grandes grupos da saúde privada vão fazer um lobby poderoso no Congresso Nacional para que a maioria dos deputados e senadores obstaculizam qualquer tentativa de um determinado governo que vise investir o montante realmente necessário para levar saúde pública de qualidade à nação.

É claro que essa ação altamente perniciosa dos grandes grupos da saúde privada se faz também nas eleições, quando estes vão financiar campanhas de deputados e senadores para que, uma vez eleitos, os mesmos sempre votem contra a melhoria da saúde pública.

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