Antonio de Azevedo: Universalização da água — uma verdade inconveniente
Tempo de leitura: 4 min
Universalização da água: uma verdade inconveniente
Por Antonio Sérgio Neves de Azevedo
No século XXI, a água tornou-se um dos principais campos de disputa entre interesses públicos e privados.
À medida que a crise climática intensifica secas, enchentes e a desigualdade no acesso à água potável, governos e corporações travam batalhas silenciosas sobre quem controla esse bem essencial, e quem lucra com ele.
O debate não é apenas nacional: conecta-se diretamente aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU, especialmente o ODS 6 (Água Potável e Saneamento), que afirma o compromisso global de garantir acesso universal e equitativo à água potável segura e acessível para todos.
No Brasil, estados como Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo entregaram empresas públicas como a CORSAN, a CEDAE e a SABESP ao setor privado, sob a promessa de eficiência, investimento e universalização.
Na prática, o que se viu foram tarifas elevadas, precarização dos serviços, exclusão das populações periféricas e falta de transparência.
A privatização não criou concorrência, apenas substituiu o setor público por monopólios privados.
Privatizar a água significa transformá-la em privilégio de quem pode pagar, excluindo justamente quem mais precisa, um retrocesso em relação ao princípio de “não deixar ninguém para trás” que fundamenta toda a Agenda 2030 da ONU.
A experiência internacional demonstra, uma verdade inconveniente, que esse caminho é um equívoco. Paris, Berlim, Nápoles, Budapeste e Atlanta decidiram reestatizar seus sistemas de abastecimento após décadas de gestão privada.
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Os motivos foram recorrentes: aumento abusivo das tarifas, queda na qualidade dos serviços, falta de investimentos em infraestrutura e ausência de controle social.
Em Paris, a reestatização em 2010 trouxe redução de tarifas, aumento da transparência e reinvestimento dos lucros no sistema público.
Em Berlim, a retomada do controle público em 2013 resultou em economia de milhões de euros anuais, além de maior participação cidadã na gestão.
Atlanta, nos Estados Unidos, rescindiu seu contrato de privatização devido a problemas de qualidade da água e aumentos tarifários desproporcionais.
Esses exemplos comprovam que o setor privado não oferece as garantias de equidade e sustentabilidade que a água exige, contrariando não apenas o ODS 6, mas também o ODS 10 (Redução das Desigualdades) e o ODS 11 (Cidades e Comunidades Sustentáveis).
É necessário reconhecer que nem toda gestão pública no Brasil tem sido exemplar.
Algumas empresas estatais enfrentaram problemas crônicos de subinvestimento, ineficiência operacional e gestões vulneráveis a pressões político-partidárias. Mas essa realidade não invalida o modelo público: demonstra apenas a urgência de reformá-lo, modernizá-lo e blindá-lo de ingerências políticas.
A solução não é entregar o patrimônio ao setor privado, mas fortalecer a governança pública com critérios técnicos, planejamento estratégico, transparência e controle social efetivo, exatamente em linha com o ODS 16 (Paz, Justiça e Instituições Eficazes), que enfatiza a necessidade de instituições fortes e responsáveis.
A aprovação do novo marco legal do saneamento (Lei 14.026/2020) foi apresentada como passo decisivo para a universalização da água no Brasil. Passados quatro anos, o resultado mostra o oposto: em vez de ampliar o acesso, aprofundou desigualdades.
O setor privado se beneficiou de monopólios regionais, com contratos blindados de longo prazo e retorno assegurado por tarifas públicas, sem o menor risco empresarial. Enquanto investidores internacionais celebram lucros, milhões de brasileiros ainda vivem sem acesso à água potável e esgoto tratado.
A universalização não se alcança pelo mercado, mas por políticas públicas consistentes.
É hora de discutir seriamente a revogação desse marco legal e a construção de uma política hídrica que coloque o direito humano à água no centro da equação, articulando-se com o ODS 1 (Erradicação da Pobreza), ODS 3 (Saúde e Bem-Estar) e o ODS 6 (Água Potável e Saneamento), já que acesso à água é condição básica para vida digna e saúde pública.
No plano internacional, a COP30, que será realizada em Belém do Pará, representa uma oportunidade histórica para o Brasil reafirmar seu compromisso com a justiça climática e ambiental.
O acesso universal à água potável deve ser pauta prioritária em um mundo que caminha para crises hídricas cada vez mais graves.
O Brasil, maior detentor de água doce superficial do planeta, não pode chegar à conferência internacional exibindo a privatização de suas companhias estaduais como “solução”. Ao contrário, deve assumir o protagonismo na defesa da água pública como direito humano e como pilar de soberania ambiental.
A universalização da água precisa ser assumida como parte do compromisso brasileiro com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, especialmente o ODS 6, mas também integrada ao ODS 13 (Ação contra a Mudança Global do Clima) e ao ODS 15 (Vida Terrestre), pois a gestão sustentável da água é peça-chave da transição ecológica justa.
Nesse contexto, São Paulo já enfrenta níveis críticos em seus principais reservatórios, reflexo de estiagens prolongadas agravadas pelas mudanças climáticas.
A privatização da SABESP representa um risco estratégico: enquanto empresas públicas têm obrigação de planejar para o longo prazo, o setor privado opera sob a lógica do lucro imediato. Em tempos de crise hídrica, os primeiros a sofrer são as populações mais vulneráveis, não os acionistas.
O controle público da água é condição para assegurar tarifas justas e acessíveis, expandir o saneamento básico nas periferias e áreas rurais e priorizar a sustentabilidade em vez da rentabilidade financeira. É alinhar o Brasil aos compromissos internacionais de justiça ambiental e direitos humanos, fortalecendo a democracia e a soberania nacional.
A universalização do acesso à água só é possível com gestão pública. Apenas o interesse coletivo, e não o lucro privado, pode garantir que ninguém seja excluído.
Um país que permite que a água seja transformada em mercadoria entrega a dignidade de seu povo ao mercado.
A escolha é clara: ou seguimos um modelo que restringe a água como privilégio, ou reafirmamos a água como bem comum da humanidade. Porque água é vida, é direito, e defendê-la como bem público é garantir sua verdadeira universalização, em coerência plena com a Agenda 2030 e seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
*Antonio Sérgio Neves de Azevedo é engenheiro e doutorando em Direito, em Curitiba, no Paraná.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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