Rubens Valente: Forças Armadas pouco fazem para a retirada dos garimpeiros da terra Yanomami

Tempo de leitura: 7 min
Garimpos em áreas da Terra Indígena Yanomami, janeiro de 2022. Fotos: Bruno Kelly/ Hutukara Associação Yanomami (HAY)

Forças Armadas pouco fazem para a retirada dos garimpeiros da terra Yanomami

Por Rubens Valente*, newsletter da Agência Pública

Quase um mês já se passou desde que o presidente Lula assinou o decreto pelo qual ordenou a expulsão dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami e agora é possível um olhar mais claro sobre o comportamento das Forças Armadas.

A Agência Pública, que há três semanas acompanha a operação em Roraima, recolheu depoimentos de servidores civis dos órgãos do governo federal empenhados na retirada dos invasores, sob a condição de não ter os nomes publicados, e o cenário que surge é preocupante: os militares, tanto quanto podem, retardam ou silenciam sobre pedidos de apoio destinados à construção da logística em campo e têm levado a passos lentos a reforma de pistas de pouso essenciais para a desintrusão.

As requisições dos órgãos civis mais frequentes são, primeiro, ajuda no transporte de combustível em grande quantidade a fim de garantir a criação de bases de reabastecimento em diferentes partes dentro do território, o que facilitaria a ação dos helicópteros e barcos usados por servidores do Ibama e da Funai em atividades de fiscalização nos pontos mais distantes do território.

Em segundo lugar, o reparo imediato das pistas de pouso dos pelotões militares de Surucucu e Auaris, que foram deixadas em péssimo estado nos últimos anos e não permitem o pouso de aviões maiores, o que repercute em toda a logística da desintrusão executada a duras penas por Ibama, Funai e Polícia Federal.

São esses os três órgãos que têm procurado fazer de fato a retirada dos invasores, muito embora a Polícia Federal tenha se limitado até agora a poucos dias de campo da “Operação Libertação” – além disso, um grupo de policiais apareceu depois do tiroteio contra uma base do Ibama.

Um terceiro pedido dos órgãos civis é ajuda para estruturar as bases de vigilância já existentes no território, mas que foram tomadas por garimpeiros ou abandonadas pelo Estado ao longo dos últimos anos, e para construir novas bases da Funai e do Ibama.

A omissão dos militares salta aos olhos nas coisas mais simples: na semana passada, o Ibama atravessou um cabo de aço no rio Uraricoera a fim de controlar o acesso de barcos à região dos garimpos.

No dia seguinte, um comboio de sete barcos invasores rompeu o cabo, o que levou a uma troca de tiros.

O cabo foi restaurado, mas ficou clara a fragilidade da medida adotada emergencialmente pelo Ibama com os meios que estão à sua mão.

É inimaginável que as Forças Armadas, com todo o poderio conferido pelo dinheiro do contribuinte (investimentos de R$ 10,8 bilhões no Orçamento de 2023), não consigam instalar equipamentos mais fortes e sofisticados para fazer esse bloqueio.

Quando confrontados pelos servidores, em diferentes ocasiões, sobre a necessidade de um apoio logístico mais efetivo, os militares têm recorrido ao próprio decreto presidencial para dizer que estão cumprindo seu papel. Já disseram até que o decreto “restringiu” suas atividades.

Mencionam o artigo 4º, que atribui ao Ministério da Defesa o papel de atuar “no fornecimento de dados de inteligência e no transporte aéreo logístico das equipes da Polícia Federal, do Ibama e dos demais órgãos e entidades da administração pública federal que participarão diretamente na neutralização de aeronaves e de equipamentos relacionados com a mineração ilegal no território Yanomami”.

É uma leitura facciosa do decreto. O texto poderia ter sido mais claro, mas comprometer algumas atividades com base num aspecto burocrático, dentro do contexto emergencial da operação, beira a má-fé.

Não é preciso ser um Ruy Barbosa para entender que a ajuda no transporte incluiria criar as condições logísticas para que isso ocorra, por exemplo, com a criação de bases de abastecimento de combustível dentro do território.

Além do mais, a Terra Indígena Yanomami faz fronteira com a Venezuela, cuja proteção é um dever das Forças Armadas e dispensa qualquer outra determinação legal.

Há um terceiro problema na leitura enviesada do decreto.

No dia seguinte à sua publicação, o ministro da Defesa, José Múcio, anunciou que o garimpo seria debelado e que cada Força teria um papel específico na terra indígena.

O Exército faria “trabalho de campo, para identificação de criminosos”. A Marinha daria o “apoio com barcos, com a vigilância nos rios”. A Aeronáutica enviaria alimentação aos Yanomami e iria “monitorar o espaço aéreo”.

O ministro prometeu: “Qualquer voo suspeito vai ser obrigado a desviar a rota e pousar numa pista para ser identificado”. São todas atividades que transcendem aquele artigo 4º do decreto.

Passado quase um mês, contudo, não há barcos da Marinha no bloqueio do Ibama no rio Uraricoera, nenhum avião foi “obrigado a desviar a rota” – até onde se sabe – e nenhum “trabalho de campo” do Exército foi divulgado, exceto aquele, pontual, de alguns poucos dias, de acompanhamento e fornecimento de helicópteros para equipes da PF.

O bloqueio do espaço aéreo foi cumprido e teve efeitos imediatos na saída “espontânea” de garimpeiros, mas logo foram abertos “corredores aéreos” cuja data de encerramento já mudou três vezes, causando desinformação e confusão.

A última data – a conferir – é dia 6 de abril. Há muitos rumores de que, enquanto isso, os corredores estão sendo usados também para abastecer os garimpos.

Com o passar dos dias, fica evidente que as Forças Armadas focam seu papel no atendimento à saúde dos Yanomami. Todos os dias, o “Comando Operacional Conjunto Amazônia” militar, criado especificamente para a operação, divulga à imprensa um resumo das suas atividades.

O último balanço, por exemplo, dizia que os militares entregaram 9.771 cestas básicas, atenderam 1.559 num “hospital de campanha” (na verdade uma enfermaria) montado na Casa de Saúde Indígena, em Boa Vista (RR), e fizeram 133 “evacuações aeromédicas”.  Nenhuma vírgula sobre o combate aos garimpos ilegais.

A preocupação sobre o papel dos militares na desintrusão se justifica pelo comportamento das Forças Armadas ao longo do governo de Jair Bolsonaro, quando assumiram o combate ao desmatamento e à proteção das terras indígenas na Amazônia.

Após duas operações do tipo GLO (Garantia da Lei e da Ordem) e o consumo de mais de meio bilhão de reais, o resultado foi um desastre sob o ponto de vista ambiental.

Há relatos de que os militares retardavam ou recusavam apoio na hora de retirar os invasores da Terra Indígena Yanomami. Tanto que a invasão explodiu em cinco anos, abrangendo 20 mil garimpeiros.

A par disso, os acampamentos golpistas montados na frente das unidades militares da Amazônia, em especial no Comando Militar da Amazônia, em Manaus, só foram repelidos após uma ordem de Lula.

Há 15 dias, o Comando do Exército e o Comando da Aeronáutica se recusam a informar à Pública quando foram nomeados e quem são os principais chefes das duas Forças na Amazônia e em Roraima.

Por que tais informações básicas incomodariam tanto os militares a ponto de serem ocultadas?

Uma resposta é simples: as datas das nomeações revelariam que o grosso do comando militar da Amazônia continua nas mãos de militares nomeados no governo Bolsonaro.

Portanto, são esses militares – os mesmos que fizeram vistas grossas aos atos e acampamentos golpistas na frente dos quartéis – os principais responsáveis pela condução da “Operação Escudo Yanomami”.

Cabe a esses comandantes nomeados no governo Bolsonaro o papel executivo, no dia a dia, de efetivar a expulsão dos garimpeiros, defender os direitos dos povos indígenas e, enfim, garantir a presença do Estado na terra sem lei que virou o território Yanomami.

Vejamos o caso do general Marcelo Lorenzini Zucco, comandante da 1ª Brigada de Infantaria de Selva, que vem a ser a principal unidade do Exército em Roraima. Exerce, portanto, papel fundamental na operação de desintrusão dos garimpeiros.

Ele foi nomeado no cargo em 31 de março de 2022, no governo Bolsonaro; antes, atuava no Comando Militar do Sul, em Porto Alegre (RS).

Na semana passada, segundo a liderança indígena Junior Hekurari, presidente do Condisi, organização não governamental que funciona como a monitora da saúde indígena, foi o general Zucco quem acompanhou o senador Chico Rodrigues (PSB-RR) quando o parlamentar, à revelia da comissão que preside no Senado e sem qualquer interlocução prévia com os povos indígenas, resolveu “visitar” a comunidade de Surucucu.

Rodrigues é um notório defensor do garimpo. Em 2021, apoiou publicamente a legalização do garimpo dentro de terras indígenas.

Um vídeo divulgado depois pelo próprio senador confirmou que o general Zucco funcionou como cicerone do parlamentar, fazendo até uma apresentação em vídeo sobre a atividade dos militares na área.

Após ver o senador chegando na comunidade Yanomami em um avião militar, Hekurari decidiu explicar aos indígenas, na presença de Rodrigues, quem era o parlamentar e quem ele realmente defende (os garimpeiros).

Hekurari foi contrário à entrada da “comitiva” num posto de atendimento médico em Surucucu.

Nesse momento, disse Hekurari, o general se mostrou contrariado e alegou que a terra Yanomami é território nacional e que, por isso, não precisa de autorização da Funai para circular ali.

É uma argumentação bastante bolsonarista, encontrada às dezenas nas redes sociais. Também é uma desinformação.

Primeiro que o repúdio de Hekurari não foi contra o Exército e o general, mas sim contra o senador. Misturar uma coisa com a outra só joga militares contra os indígenas.

O segundo ponto, fundamental, é que não se tratava de impedir a presença do general e do senador, e sim de lembrar a necessidade de uma consulta prévia, ao menos uma explicação ou um diálogo sobre os objetivos da missão, com as lideranças e os indígenas da região antes de uma “visita”.

É como se um estranho – e no caso do senador, um indesejado – desembarcasse no quintal da casa do general Zucco sem prévio aviso.

Por último, a Funai havia estabelecido uma norma de saúde a fim de regular a entrada de não indígenas nas comunidades indígenas, o que incluía teste para Covid-19. Não se sabe até agora se o senador cumpriu a norma.

Como disse Hekurari em nota, “como povo Yanomami temos o direito de negar a presença de pessoas que desrespeitem a nossa cultura e nossos saberes ancestrais. Não aceitaremos parlamentares favoráveis à mineração ilegal participando das decisões e ações humanitárias dentro da Terra Indígena Yanomami”.

As principais organizações indígenas e indigenistas de Roraima e do país já haviam repudiado a presença de Rodrigues e de seus colegas Hiran e Mecias de Jesus.

O episódio de Surucucu não é só um “causo”, ilustra as dificuldades dos altos militares de respeitarem e protegerem direitos indígenas básicos.

A história, infelizmente, se insere num panorama muito mais sério e problemático sobre o papel dos militares na terra Yanomami e como eles vêem os garimpos.

Há décadas os militares se guiam por teorias conspiratórias sobre “interesse estrangeiro” na Amazônia vinculado às demarcações das terras indígenas. Isso não começou com Bolsonaro, mas se agravou no seu governo.

No campo das autoridades civis, também não ajudam muito as recentes declarações do ministro da Justiça, Flávio Dino, deslocadas da realidade. De forma impressionante, ele disse numa entrevista coletiva na semana passada, em Brasília, que há apenas “dois ou três” focos de garimpeiros que insistem em permanecer na área.

Segundo o ministro, hoje seriam cerca de 1 mil garimpeiros. Esse número arrancou risadas de servidores públicos diretamente empenhados na retirada dos garimpeiros.

A maior dúvida agora é saber qual setor da inteligência do Ministério da Justiça repassou esses dados para Dino, que só servem para normalizar a invasão garimpeira e desarticular os esforços civis. Já basta o corpo mole dos militares.

*Rubens Valente (@rubensvalente), newsletter Brasília a quente, é colunista da Agência Pública.

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Comentários

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Zé Maria

https://twitter.com/FrenteAmpla13/status/1630891369274253313

Entrevista: FLAVIO DINO, Ministro da Justiça, Governo LULA (2023-2026)

https://youtu.be/f7IXiutIsWQ

BBC News Br – Já se fala em migração desses garimpeiros para outras áreas da Amazônia. É plausível imaginar que o Brasil consiga, nesta administração, acabar com o garimpo ilegal em terras indígenas?

DINO – É plausível e necessário.
Todos os esforços estão sendo feitos.
Lembremos que nós temos só dois meses de governo.
Ações inéditas foram executadas, por exemplo, contra a lavagem do ouro ilegal.
Não basta apenas enfrentar o garimpo no solo desta ou daquela terra indígena.
É preciso enfrentar quem financia, como nós estamos fazendo.
É preciso enfrentar quem faz a lavagem do ouro ilegal
[…]
e com isso você consegue de fato, destroçar essa cadeia criminosa que se formou em torno dos garimpos ilegais no Brasil.
Além dessa desintrusão na terra indígena, a yanomami, nós teremos mais seis [operações] neste ano.

BBC News Br – Investigações da Polícia Federal têm mostrado que grande parte desse ouro ilegal é exportado para outros países na Europa, na Ásia, e em outras regiões do mundo. Qual é a responsabilidade desses países em relação à crise humanitária que a gente está vendo hoje na Terra Indígena Yanomami?

DINO – Nós temos um elo anterior nessa cadeia criminosa que deriva de um problema legislativo que é a presunção de boa-fé.
Na primeira aquisição desse ouro, que é ilegal, o vendedor chega e auto-declara a origem como sendo, por exemplo, de um outro lugar onde há permissão da lavra.
Há, portanto, legalidade.
E com isso, aquilo que é ilegítimo se transforma em legítimo e entra no mercado.
Hoje, nós não temos elementos jurídicos para afirmar que esses adquirentes fora do Brasil sabem disso.
O certo é que é preciso cortar exatamente o primeiro elo.

BBC News Brasil – O senhor acha que esses países que importam esse ouro do Brasil poderiam ter sido mais cuidadosos na escolha dos seus fornecedores? Os países que importam esse ouro na sua avaliação, neste momento, não têm responsabilidade pelo que está acontecendo?

Dino – Não posso presumir que essas empresas e outros países tivessem condições de saber disto.
Eu prefiro trabalhar naquilo que nos cabe que é aquilo que ocorre no Brasil.
Evidentemente, em outro momento, podemos discutir com a comunidade internacional.

Íntegra:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy78gp32p7lo
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Zé Maria

Excertos

As datas das nomeações revelariam que o grosso do comando militar da Amazônia continua nas mãos de militares nomeados no governo Bolsonaro.

Portanto, são esses militares – os mesmos que fizeram vistas grossas aos atos e acampamentos golpistas na frente dos quartéis – os principais responsáveis pela condução da “Operação Escudo Yanomami”.

Caberia a esses comandantes nomeados no governo Bolsonaro o papel executivo, no dia a dia, de efetivar a expulsão dos garimpeiros, defender os direitos dos povos indígenas e, enfim, garantir a presença do Estado na terra sem lei que virou o território Yanomami.
[…]
Os militares, tanto quanto podem, retardam ou silenciam sobre pedidos de apoio destinados à construção da logística em campo e têm levado a passos lentos a reforma de pistas de pouso essenciais para a desintrusão.
[…]
Vejamos o caso do general Marcelo Lorenzini Zucco, comandante da 1ª Brigada de Infantaria de Selva, principal unidade do Exército em Roraima. Exerce, portanto, papel fundamental na operação de desintrusão dos garimpeiros.

Ele foi nomeado no cargo em 31 de março de 2022, no governo Bolsonaro…
[…]
Foi o general Zucco quem acompanhou o senador Chico Rodrigues (PSB-RR) quando o parlamentar, à revelia da comissão que preside no Senado e sem qualquer interlocução prévia com os povos indígenas, resolveu “visitar” a comunidade de Surucucu.

Rodrigues é um notório defensor do garimpo. Em 2021, apoiou publicamente a legalização do garimpo dentro de terras indígenas.

Um vídeo divulgado depois pelo próprio senador confirmou que o general Zucco funcionou como cicerone do parlamentar…
[…]
O episódio de Surucucu não é só um “causo”, ilustra as dificuldades [corpo-mole] dos altos militares de respeitarem e protegerem direitos indígenas básicos.

Mariana Grolla

Ótimo texto

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