Luana Tolentino: Ordem de serviço da PM e genocídio da juventude negra

Tempo de leitura: 3 min

por Luana Tolentino, especial para o Viomundo

Nos últimos dias, livros, revistas, dissertações e o computador têm sido minhas principais companhias. A tarefa é dura e desafiadora: escrever sobre Lélia Gonzalez (1935-1994), uma das maiores intelectuais negras que este país já teve.

Em um dos parágrafos, falei dos desafios a serem enfrentados para a superação da desigualdade racial existente no Brasil. Da mesma maneira, discorri sobre os avanços e vitórias que a população negra obteve, principalmente nas duas últimas décadas: A criação da SEPPIR em 2003, a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial em 2010, e mais recentemente a vitória histórica com a aprovação das Cotas no ensino superior.

Como ninguém é de ferro, resolvi desanuviar um pouco: um café e uma olhadela no Facebook. Minha estratégia não deu muito certo: me deparei com uma “ordem de serviço” (imagem acima) da Polícia Militar de São Paulo, o que mostra que, apesar dos avanços, a luta contra o racismo tem de ser cotidiana.

Temos na medida da PM Paulista uma continuidade histórica. Ainda no século XIX, representantes da classe dominante brasileira tomaram de empréstimo as teorias raciais disseminadas na Europa, que atestavam a inferioridade dos negros. Ao adaptá-las à realidade nacional, imputaram aos descendentes de escravos uma suposta tendência ao crime. Outrossim, o negro associado à criminalidade foi fundamentado pela Ciência, ganhou caráter institucional no Estado e acabou amplamente disseminado pela população.

Passados mais de um século, este estigma permanece arraigado no inconsciente coletivo e nas abordagens policiais. Os moradores das periferias, vilas e favelas, sobretudo os negros e do sexo masculino, são vistos como elementos suspeitos.

Do ponto de vista da violência urbana, um estudo realizado pelo Laboratório de Análises Estatísticas Econômicas e Sociais das Relações Raciais da UERJ mostrou que, entre os anos de 2009 e 2010, o número de pretos e pardos assassinados cresceu 46,3%. No contingente branco, esse crescimento foi de 0,1%.

Mano Brown, que recentemente pediu o impeachment do governador Geraldo Alckimim, pelo alto índice de jovens negros assassinados nas periferias de São Paulo, em 2011, durante palestra em Belo Horizonte afirmou que de cada 15 jovens assassinados 14 são negros. Esses números deixam claro que um genocídio está em curso no Brasil, e pouco ou nada se faz para reversão desse quadro aterrador.

Os reflexos das teorias raciais formuladas pela elite brasileira nos anos finais do século XIX e início da primeira República também são visíveis no sistema prisional. No Rio de Janeiro, 90% da população carcerária é formada por afro-descendentes. Diante disso, torna-se impossível não lembrar dos versos de Gil e Caetano:

 “mas presos, são quase todos pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres, e pobres são como podres, e todos sabem como se tratam os pretos”.

Num país que entende como natural a distância que separa negros e brancos, a postura genocida da Polícia Militar de São Paulo dificilmente é associada à violência racial. Além disso, quando chegam a ser noticiados na mídia são fruto de denúncias de moradores e de pressões dos movimentos sociais. Assim, é necessário louvar as reportagens veiculadas pela Rede Record e pela Carta Capital, que nos últimos anos têm levado ao ar e publicado matérias sobre a discriminação racial e a violência policial no Brasil. Fato raro na televisão brasileira.

Nas eleições de 2010, em um dos debates entre os presidenciáveis, Plínio Arruda, nos poucos minutos a que teve direito de se pronunciar, sintetizou numa frase um dos legados deixados pelos quase quatro séculos de escravidão no país: “Ser negro no Brasil é extremamente perigoso”.

Poucos devem ter prestado a atenção na assertiva de Plínio, porém, a “ordem de serviço” emitida pelo Comandante da PM, Ubiratam Beneducci, não deixa dúvidas de que o então candidato do PSOL estava coberto de razão.

Luana Tolentino: mulher, negra, canhota, gêmea univitelina

Veja também:

Não somos racistas (2)


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Comentários

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Maurilio Ferreira da Silva

O Governo do estado de São Paulo fez a defesa da prática de racismo por parte da Policia Militar, tipificada na ação do Capitão UBIRATAN DE CARVALHO GÓES BENEDUCCI, comandante da PM na area do taquaral, bairro de elite de Campinaas, portanto o Governador é tão racista qaunto o Capitão, temos que exigir a exoneração do Capitão e que o mesmo responda pela prática de crime de racismo e o Governador seja cusado de cumplice ou co-autor.

Por outro lado é triste saber que a Coordenadoria Especial de Promoção da Igualdade Racial – CEPIR de Campinas, em 8 anos de Governo não fez nenhuma ação efetiva para que, casos como estes tivessem um atendimento digno. Se os jovens “negros e pardos” que neste período, antes, ou mesmo hoje, baterem as portas da CEPIR que atendimento teriam?. Nenhum. Perguntem a Camila que foi discriminada no POUPATEMPO que tratamento ela teve da CEPIR? Nenhum. A Camila entrou na Justiça e ganhou a causa, foi indenizada pelo Governo do estado e hoje conta sua história alegre e sorridente. Pergunte a ela o que a CEPIR fez por ela?.

Ontem a reunião na CEPIR, só foi realizada por pressão de um integrante da Anistia Internacional, do contrário só haveria reunião na próxima semana, pois a reunião que fora solicitada para hoje as 15 horas, não poderia ser realizada, pois o coordenador deu uma desculpa esfarrapada e repito, por pressão de um integrante da Anistia cedeu o espaço para a reunião realizada ontem, as 19 horas e na reunião o Coordenador da CEPIR disse que não sabia como tratar do assunto. Uma pergunta, em 8 anos não aprendeu como tratar de assuntos de racismo envovendo negro e Policia Militar? Precisará de mais 4 para aprender. E aí, mais 4 pra ele?
E AÌ BENE? E Aí JONAS?

kalifa

Trata-se da democracia racial escrita por Florestan Fernandes!

FrancoAtirador

Marcelo de Matos

Os problemas da segurança pública são múltiplos e, na minha ignorância, acredito que insolúveis. Em Sampa esse é o calcanhar de Aquiles da administração Alckmin, mas, não acredito que o PT, ou qualquer outro partido, consiga melhorar muito. Na raiz do problema está a nossa tendência irrefreável de defender a democracia, os direitos dos cidadãos, em especial dos mais desprotegidos. Em suma: somos garantidores da impunidade. Consideramos que o autor de delitos é vítima da sociedade. Tive a casa de praia invadida e fui à delegacia. A escrivã disse que os jovens que lá entraram (foram levados à delegacia e soltos) eram exatamente isso: uns coitados, vítimas da sociedade e das drogas e não havia o que se fazer contra eles. Se de fato é isso que pensamos dos delinquentes, não devemos falar em segurança pública, mas, em assistência social. É outro ramo. Na vitimologia tradicional quem sofre furto é que é vítima, não o autor do delito. Essa nova ideologização da disciplina terá de nos levar a elaborar um novo código penal.

Roberto Locatelli

Texto excelente, exceto quando tenta levantar a bola do Plinio.

O fato é que as “abordagens” da PM são violentas e humilhantes, e só ocorrem em bairros pobres e periferias.

Será que os branquelinhos de Higienópolis, alguns dos quais cometem crimes para financiar a droga, serão “abordados”?

Será que os viciados em crack que moram no mesmo prédio que FHC terão internação compulsória?

Marcelo de Matos

É comum essa visão estereotipada da criminalidade. Trabalhei um ano como escrivão de polícia, faz tempo. O professor da academia de polícia dizia que o aumento da criminalidade era causado pelas “correntes migratórias”. Referia-se aos migrantes, especialmente nordestinos, que vinham para São Paulo e não encontravam emprego. Depois do Ano Novo entraram ladrões em minha casa na praia. Comentei o fato na padaria e um senhor negro, que trabalha como caseiro, perguntou – Eram negros? Não, respondi – Eram brancos. Aí ele disse – Deve ser gente de São Paulo. Não – Eram ladrões autóctones, ou aborígenes. Em outras palavras: caiçaras. O professor da academia de polícia disse algo que faz sentido: pessoas que não arrumam emprego. Um amigo ficou impressionado ao ver, em Portugal, um senhor bem vestido pegando restos de comida no lixo. Alguns se contentam com essas migalhas; outros partem para o crime. A OIT prevê 202 milhões de desempregados no mundo em 2013. Assim a criminalidade não terá solução. Temos de aprender a conviver com ela.

abolicionista

Acreditarei que não houve racismo se alguém me mostrar um documento equivalente da PM em que esteja escrito “individuos de cor branca”. Desafio os comentadores que alegam não ter havido racismo a fazer isso. Afinal, se não houve racismo, é impossível que não encontremos, em toda a história da PM, um documento onde se peça para priorizar a abordagem de indivíduos brancos. Se forem capazes de fazer isso, acreditarei que não houve racismo por parte da polícia nesse caso. Agora, se não puderem fazer nem isso, eu sugiro que calem a boca.

Mardones Ferreira

Não gostei da apresentação do documento, pois esconde algumas linhas não permite a leitura integral do documento. Parece tratar de uma ordem específica, fruto de depoimento ou coisa do tipo. O que não redime a polícia de seu caráter racista, mas no caso em questão, creio que houve desinformação.

    Conceição Lemes

    Mardones, veja-o na íntegra no post Não somos racistas (1). abs

Vlad

Eis a versão da PM:

“…ordem expedida pelo capitão de Campinas decorre de um ofício enviado para o comando local por moradores de dois bairros da região do Taquaral. Foram eles, vítimas dos crimes, que informaram as ações aos sábados de um grupo de três a cinco pessoas, com idades entre 18 e 25 anos, de cor parda e negra, informou a PM. “Não se pode falar em discriminação ou em atitude racista. O capitão Beneducci, que é pardo, emitiu essa ordem com base em indicadores concretos. Ele apenas expôs as características físicas dos suspeitos”, afirma Araújo.”

http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-01-23/pm-emite-ordem-para-abordar-pardos-e-negros-e-e-acusada-de-racismo-em-sp.html

Estava achando muito estranho mesmo um comandante da PM por isso no papel desse jeito. Só se fosse louco varrido ou vivesse há 40 anos atrás.

É bom tomar cuidado com as versões apressadinhas; vide Escola de Base.

E por que tapou o teor do texto aumentando duas linhas e escondendo o resto, onde se especificava além da cor da pele, idade e número de pessoas da gangue, deixando bem claro que era um caso específico e dirigido?
http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2013/01/pm-de-campinas-deixa-vazar-ordem-para-priorizar-abordagens-em-negros.html

Se fossem orientais, ou carecas, ou mancos, não estaria ali também a caracterização?

Esse tipo de atitude, que não resiste sequer ao google, apenas desconstrói a luta pelo fim da discriminação racial.

Se não for para vencer com honestidade, que não se vença.

    abolicionista

    Antes de mais nada, caro Vlad, é preciso levar em conta que a polícia não tem nenhum direito de “dar geral”, de esculachar e humilhar ninguém. Não há nada em nossa constituição que permite à polícia violar dessa forma a integridade física do cidadão, bem como seu direito de ir e vir. Isso só ocorre no Brasil porque temos uma cultura de exclusão e achamos natural que a polícia realize uma política de repressão. Mas não é natural, é ilegal e imoral. Finalmente, o informe é uma demonstração cabal dos métodos medievais de investigação empregados pela PM. Há métodos muito menos violentos ostensivos e muito mais inteligentes e eficazes de se combater o crime, mas para colocá-los em ação é preciso preparar policiais qualificados (não adianta uniformizar neanderthais) e investir em qualidade. Espanta que esse tipo de naturalização presente no seu comentário (que em nenhum momento questiona a legitimidade dessas práticas) seja fruto da consciência de alguém que se diz socialista.

    André

    O problema é que a suposta carta enviada pelos moradores (que até agora não apareceu) faria o tipo de descrição padrão em relação ao eterno suspeito no Brasil. Jovem, homem, negro. Vi várias reportagens, inclusive entrevista com o tal comandante, dando a explicação parta lá de esfarrapada. E, ainda que a tal carta exista, que enorme coincidência, não? Estamos sempre diante da ameaça do jovem negro.

    O curioso numa situação dessa é sempre retratar o suspeito de acordo com o que se espera. “Ser negro é perigoso no Brasil”. À parte das posições estúpidas do Plínio, essa frase é extremamente precisa.

    Respondendo à sua pergunta, Vlad, não, se fossem brancos, orientais ou qualquer descendente de grupos menos perseguidos, provavelmente não estariam caracterizados dessa forma. Neste caso, suponho que a Polícia teria feito o que deveria fazer neste caso, que é aumentar a segurança ostensiva da REGIÃO onde ocorreram os crimes, e não CONTRA um suposto grupo de CIDADÃOS.

    abolicionista

    Acreditarei que não houve racismo se alguém me mostrar um documento equivalente da PM em que esteja escrito “individuos de cor branca”. Se não puderem fazer isso, eu sugiro que calem a boca.

    abolicionista

    Sabia que o pessoal do PSOL estava meio perdido em relação à luta ideológica atual, mas confesso que apoiar ações racistas e políticas de repressão superou minhas expectativas.

Osvaldo Ferreira

Para quem quiser enviar via MP/SP denuncia sobre este caso de claro racismo, segue o link:

http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/Ouvidoria/Formulario

Osvaldo Ferreira

Exmo. Sr. Procurador-Geral de Justiça
Tendo em vista noticiário do dia de hoje, 23 de janeiro de 2013, sobre a Ordem de Serviço da Polícia Militar de Campinas do dia 21 de dezembro de 2012, exaustivamente divulgada pela imprensa escrita e eletrônica e que tem causado grande consternação e repúdio da cidadania pelo seu teor “racista” ou se quiser étnico da persecução repressiva da PM, sua função (mas não carimbada etnicamente ou racialmente), em bairro da Cidade de Campinas, a cidadania deste estado e do Brasil espera e deseja que Vossas Excelências tomem as devidas providências, uma vez que o Governador do Estado de São Paulo, o Exmo Sr. Geraldo Alckmin, na prática executiva comandante de fato da Polícia Militar, não as tomou a fim de revogar tal ordem administrativa que parece a todos cidadãos de bem contrária à Constituição Federal no seu artigo 5o. parágrafo XLII.
Seguem os links das publicações noticiando o fato e a medida administrativa:
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/01/23/ordem-da-pm-determina-revista-em-pessoas-da-cor-parda-e-negra-em-bairro-nobre-de-campinas-sp.htm
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/pm-orienta-abordagem-a-individuos-de-cor-parda-e-negra
https://www.facebook.com/SouNegroComMuitoOrgulho
http://www.viomundo.com.br/denuncias/luana-tolentino-ordem-de-servico-da-pm-arma-para-genocidio-de-jovens-negros.html
http://www.tribunahoje.com/noticia/52888/brasil/2013/01/23/pm-determina-revista-de-pardos-e-negros-em-bairro-nobre-de-campinas.html
http://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2013/01/pm-de-campinas-deixa-vazar-ordem-para-priorizar-abordagens-em-negros.html
Certo das providências que serão tomadas por este digníssimo “parquet” que muito nos honra na defesa dos interesses da cidadania, aguardo e aguardamos providências de Vossas Excelências.

Osvaldo Ferreira

Fabio Passos

É a “elite” branquela e rica utilizando o Estado para assassinar os negros pobres.
Este é o Brasil que o PiG tenta esconder.

Já passou da hora de um acerto de contas definitivo com os donos do poder.
Tá na hora de queimar a Casa Grande.

Osvaldo Ferreira

O candidato do PSOL estava coberto de razão e em seguida “costeou o alambrado” e apoiou Serra contra Haddad, ou seja apoiou os desmandos da polícia sob o tucanato!

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