Fernanda Otero: Juiz não atende a apelos e São Paulo pode ter outro Pinheirinho
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Fotos Fernanda Otero e Fridas Photos
MARCHA DA OCUPAÇÃO ‘DOUGLAS RODRIGUES’ REÚNE 2.000 PELO DIREITO À MORADIA
por Fernanda Otero, especial para o Viomundo
Cerca de 2.000 pessoas unidas pelo objetivo de conquistar a casa própria marcharam pela Marginal Tietê na manhã de quarta-feira, 29, rumo ao Fórum do Tatuapé, na Zona Leste da capital paulista. Centenas de crianças, mulheres, idosos e jovens foram dizer ao juiz responsável pelo pedido de reintegração de posse: Não à reintegração!
São 50.000 metros quadrados de área localizada no número 250 da Rua Manguari. Já foram 700 dias de ocupação. Duas mil famílias, entre 4 mil crianças e adolescentes. Total de 10 mil moradores. São 240 meses de abandono de um terreno da empresa Ideal Empreendimentos Imobiliária, que possui uma dívida de R$ 1 bilhão com a União, declarada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.
Esses são alguns dos números que podem nos ajudar a entender a ocupação ‘Douglas Rodrigues’, no bairro da Vila Maria. O local está a uma margem de rio de distância do valorizado, limpo, saneado e estruturado bairro do Tatuapé.
Do outro lado do rio Tietê, belos prédios com espaçosas varandas gourmet ficam à vista dos moradores da ocupação, que se apertam nas ruas estreitas, sem saneamento e com iluminação improvisada.
Era 28 de agosto de 2013 quando três bravas mulheres (Nilda, Zinha, Luciana) e mais o Baixinho decidiram ocupar a área abandonada, envolvida em um imbróglio judicial, muitas irregularidades e dívidas.
As três mulheres são mães de família, todas moradoras antigas do bairro e paulistanas. Na primeira noite cerca de 200 famílias trouxeram seus pertences e ocuparam o matagal cheio de cobras. Foi uma longa noite de limpeza do terreno após um mês inteiro de preparação.
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Aos poucos foram chegando outras famílias, recebidas pelas coordenadoras. Em poucos dias, eram milhares de famílias acomodadas em pequenos barracos de madeira de tamanhos iguais, transformando o terreno abandonado há mais de 20 anos em uma grande comunidade.
As famílias do ‘Douglas Rodrigues’ tem uma grande variedade de trabalhadores e trabalhadoras de diferentes profissões: metalúrgicos, cozinheiros, ajudantes-gerais, instaladores de telefonia, enfermeiros, funcionários do comércio. Todos fugindo dos altos preços do aluguel em São Paulo.
A maioria dos moradores está na região da Vila Maria há muitos anos, muitos deles, por toda a vida.
Em alguns dias de visita à ocupação, é impossível não se lembrar do Pinheirinho. Ao questionar os moradores sobre as semelhanças, fica evidente o temor de que o caso tenha o mesmo desfecho.
Essa preocupação invade também a direção do movimento, já que a área do terreno e o número de pessoas envolvidas são quase os mesmos. O andamento do processo também guarda algumas semelhanças.
Localizada em São José dos Campos, a reintegração de posse da ocupação do Pinheirinho, uma área com 9.600 m², habitada durante sete anos por 1.500 famílias, aconteceu em 22 de janeiro de 2012 e teve um trágico desfecho: a ação da PM acabou com uma morte e dezenas de feridos, em um momento em que já estava negociado um acordo entre as partes.
Desde o início da ocupação ‘Douglas Rodrigues’, foi fundada e estabelecida uma associação denominada Movimento Independente de Luta por Habitação de Vila Maria (MIVM), com apoio jurídico formalizado. Diversas frentes de diálogo com os poderes municipal, estadual e federal foram constituídas.
Líderes do MIVM estiveram reunidos com o prefeito Fernando Haddad algumas vezes, com o Secretário de Habitação do Município e com a Companhia de Desenvolvimento Habitacional — CDHU — do Governo do Estado. Duas viagens a Brasília foram realizadas para tratar do caso diretamente com o Ministério das Cidades e com a Secretaria-Geral da Presidência da República, buscando apoio dentro do programa “Minha Casa, Minha Vida – Entidades”.
As ações do MIVM demonstram interesse em dialogar com as autoridades para que haja um acordo e para que as famílias não tenham de ser removidas.
A região da Vila Maria, segundo dados do IBGE, possui um IDH de 0,824, enquanto no vizinho bairro do Tatuapé o índice é de 0,936. Quanto mais próximo de 1, melhor a qualidade de vida e desenvolvimento econômico de uma população.
Organização da Marcha
O MIVM é um colegiado composto por 14 pessoas. Elas organizam a instalação das famílias nos lotes, distribuição de cartas, do vale leite e todas as ações da ocupação, além de prestarem atendimento aos moradores.
Para contemplar a diversidade dos moradores, o boliviano Guilhermo tem assento na direção da entidade e representa as 40 famílias bolivianas que ali moram.
Guilhermo, pai de 5 filhos, 4 deles brasileiros, está há 10 anos no Brasil e trabalha na indústria de costura. Ele organiza as pequenas assembleias com os moradores e faz a interlocução, já que entende bem o português.
Uma “Rádio peão” funciona cada vez que é preciso fazer um comunicado importante. Ela funcionou mais uma vez na noite da última segunda-feira, 27, reunindo mais de 500 pessoas em frente ao Atendimento (sede do MIVM) para votar contra ou a favor da realização da marcha até o Fórum do Tatuapé.
Na assembleia, o Secretário Geral do Movimento, Henrique Ollitta, descreveu os últimos andamentos do processo da ocupação: foram enviados dois importantes documentos ao Juiz da 1ª Vara Civil do Foro Regional VIII do Tatuapé. O primeiro foi um recurso dos advogados do MIVM solicitando que o processo fosse remetido à Justiça Federal, pois a União demonstrou formalmente ser parte interessada na ação.
O segundo documento foi um ofício de sete páginas enviado pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional da 5ª Região, Divisão de Acompanhamento de Grandes Devedores, assinado por seis (6) procuradores, pedindo ao juiz do caso que suspendesse a ordem de reintegração de posse do terreno.
Os procuradores informaram que o Grupo Tenório, comprovadamente ligado à empresa Ideal Empreendimentos Imobiliários, proprietária do terreno, possui uma dívida de mais de R$ 1 bilhão com a Fazenda Nacional e está envolvido em diversos ilícitos fiscais.
Afirmam os procuradores: “Se um cidadão enxerga o ordenamento jurídico brasileiro como um conjunto de normas que baliza sua conduta, o Grupo Tenório vê em cada regra, uma oportunidade de fraude, e em cada princípio, a legitimação de um modo de agir desleal”.
Henrique também confirmou que a Prefeitura, por decisão de Fernando Haddad, vai publicar o Decreto de Interesse Social, instrumento que demonstra o envolvimento do poder público da cidade na busca da solução pacífica para o litígio.
Os documentos foram desconsiderados pelo juiz Fabio Rogerio Pellegrino, que mais uma vez decidiu pela reintegração. Os moradores, votando por unanimidade, decidiram marchar até o Fórum e mostrar ao juiz seus rostos e os de seus idosos e crianças.
A Marcha
Na quarta-feira dia 29, pontualmente às 9h da manhã, em frente ao Atendimento do MIVM já havia uma grande quantidade de pessoas. Na ocupação ‘Douglas Rodrigues’, todos se cuidam, e todos cuidam de todos.
Henrique Ollitta gosta de repetir que a ocupação não tem líderes, e é o que verificamos. O entendimento dos moradores é: se eu cuidar do outro, estarei cuidando de mim mesmo. Os homens são responsáveis pela segurança da marcha. Um cordão de 50 pessoas de braços dados formou a linha de frente da passeata.
Dona Izilda caminha rumo ao Fórum
Dona Izilda, 63 anos, viúva, caminhou com dificuldade apoiada por uma bengala “e sem pressa de chegar”, acompanhada da filha com quem divide sua casa. Ela nos conta que ao saber da ocupação do terreno chamou a filha e decidiram juntas buscar um espaço (nome dado aos barracos).
“Foi a Elen que fez a limpeza do terreno e ficou com as costas em carne viva” para montar a casa de madeira, que ficou pronta com a ajuda de outros moradores. Moram em um barraco, de 4 metros por 7, Dona Izilda, sua filha Elen e a neta de 14 anos.
“No começo minha neta levou um choque com a mudança para a ocupação, mas acabou se conformando”. A matriarca aguarda na fila do SUS por um transplante de bacia e diz esperar a cirurgia para poder encontrar trabalho. Conta que mesmo com as limitações físicas que possui, encontra serviço passando roupas, já que pode trabalhar sentada.
A renda das três é a soma da pensão que Elen recebe do ex-marido e o pagamento mensal do Bolsa Família.
Dona Izilda diz que, mesmo com dificuldades, não deixa de participar dos atos organizados pelo movimento. “Já me inscrevi em programas de moradia popular e nunca fui selecionada”. Sua esperança é ter a posse definitiva do terreno e construir uma casa melhor.
Viaturas da Polícia Militar acompanharam o percurso de 4 quilômetros sob o sol do inverno paulistano. Mais de 2.000 pessoas foram cantando palavras de ordem até a porta do Fórum. As mulheres e suas crianças caminharam na frente da marcha.
Quando chegaram ao Fórum, sentaram-se em frente à porta e bloquearam a entrada. Todo o expediente foi interrompido.
O advogado do movimento, Benedito Barbosa, tentou uma audiência com o juiz Fabio Pellegrino para protocolar um ofício com a seguinte reivindicação: que o processo seja remetido ao Tribunal da Justiça para ser acompanhado pelo Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (Gaorp), possibilitando um acordo entre a ocupação e o dono do terreno.
Michel, de 12 anos, pediu para usar o microfone e fez uma pergunta ao juiz Pellegrino: “O Senhor tem filho? Seu filho mora numa casa? Então porque o senhor quer tirar a nossa ocupação?”
Após um acordo negociado com o Capitão Pontirolli, da Polícia Militar, e a Diretoria do Fórum, o advogado da ocupação e um membro da diretoria tiveram acesso ao cartório. Conseguiram entregar o documento, com o compromisso de que ele chegaria às mãos do juiz Pellegrino. Ofício entregue, caminhada de volta para casa. A fome começa a bater e o carro de som anima o trajeto: “Vamos cantar que a fome passa!”.
Perguntas ainda sem resposta
Douglas Rodrigues tinha 17 anos quando foi assassinado pela Polícia Militar, numa tarde de domingo, em uma rua do bairro Vila Medeiros. Os policiais que foram atender a um chamado de perturbação por som alto chegaram ao bar onde estavam Douglas e seu irmão de 13 anos e desceram do carro atirando, segundo relataram as testemunhas. Douglas perguntou: “Por quê o Senhor atirou em mim?” ao policial que o alvejara. Douglas trabalhava em uma lanchonete e estava no 3º ano do ensino médio.
A ocupação ‘Douglas Rodrigues’ leva o nome do adolescente que morreu com uma pergunta sem resposta: por quê?
Essa mesma pergunta a reportagem tentou dirigir ao juiz Fabio Pellegrino.
Por que suas reiteradas decisões, sempre em favor do privado em prejuízo do público, da minoria e não da maioria? Por que não abrir mão do processo e atender o pedido feito pela defesa do MIVM e deixar que o Gaorp encaminhe uma solução? Por que não receber os moradores? Por que desconsiderar o apelo da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e seus veementes argumentos? Por que a necessidade de colocar na rua essas mulheres e seus filhos, os idosos, os deficientes e tantas famílias sem lugar para onde ir?
Sem respostas, as famílias padecem da angústia de esperar por uma reintegração que pode acontecer a qualquer momento, se o juiz não voltar atrás em sua decisão.
Procurado por telefone e e-mail, ele não respondeu.
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