Cristina Oliveira: Do Juramento de Hipócrates ao juízo dos hipócritas
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Do “Juramento de Hipócrates” ao julgamento por hipócritas: sobre as recentes violências sexuais praticadas contra mulheres na USP
por Cristina Oliveira, especial para o Viomundo
Ao final de todos os anos, nas solenes e imponentes instalações seculares da Universidade de São Paulo, juram-se, às cegas, o comprometimento (ético e filosófico) com a dignidade humana dos sujeitos que serão, em futuro certo (senão, imediato), pacientes dos “Doutores” recém inseridos no mercado de trabalho.
Entretanto, se aliviar o sofrimento humano é premissa essencial para o desenvolvimento da profissão, as atuais denúncias de (extrema) violência contra mulheres do universo estudantil denotam, sobretudo, a falha (propositada?) do modelo de ensino que deveria, em tese, construir agentes socialmente responsáveis pelo amparo ao Outro.
A infeliz declaração (supostamente) emanada pelo Diretor da Faculdade de Medicina da USP, no sentido de que “as vítimas de estupro devem ter a hombridade e honestidade de comunicar pessoalmente o caso à direção”, reforça, simplesmente por seus termos, a ideologia patriarcal da universidade, que ainda imputa culpa às mulheres que foram violadas em sua dignidade sexual. Acrescentam às ofendidas a responsabilidade pela tomada de medidas contra os agressores, esquivando-se do encargo de prevenção, contenção ou elucidação dos atos expostos pela mídia, justificando, covardemente, a omissão da instituição no silêncio das alunas, quando, como é notório, os crimes são reiterados todos os anos pela mesma “elite intelectual”.
Nesse sentido, denota-se que a violência instaurou-se enquanto “tradição”, e mais do que isso, como ritual essencial para a afirmação da identidade dos alunos (especialmente dos calouros) na comunidade universitária (veja-se, com detalhes, a reportagem veiculada pela Ponte, que descreve o teor de apologia à diversos crimes nos hinos dos cursos, a prática de trotes racistas, além dos constantes estupros ocorridos nas tradicionais festas, ocasião em que se aproveita da utilização de bebidas e demais drogas para a consumação do ilícito).
Observa-se, com perplexidade, que as mulheres são subjugadas sem qualquer tipo de amparo institucional, por estudantes que serão responsáveis pelo tratamento das idosas, das crianças, e de futuras mulheres ofendidas de forma semelhante.
Não se pode esquecer que o levantamento estatístico recentemente divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta para uma cultura machista acrítica (aqui a referência à hipocrisia supracitada), uma vez que as mulheres que expõem seus corpos (e, assim, poderiam “incitar” a atuação masculina) justificariam as abordagens sexualmente ofensivas de sua liberdade, culpabilizando-as, novamente, pelo atuação do Outro.
Em tempo de “coisificação” dos sujeitos, tratados como objetos (descartáveis) numa relação de consumo, substituíveis e excluídos de valores, especialmente no que tange à inferiorização do feminino e do seu espaço, o que se deve esperar, então, das instituições formadoras de opinião? Como é possível que sejam coniventes com discursos autoritários e preconceituosos?
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Se, como dizem, todos seríamos “médicos e o monstros” (em clara referência ao “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, de Robert Louis Stevenson, de 1886), qual a importância do espaço universitário na construção dos personagens sociais? Como torná-los profissionais humanizados, sensíveis às diferenças (de gênero, inclusive), se, de outro lado, a omissão da instituição fomentou, durante anos, a anulação de suas alunas, inclusive, diante do medo de represálias decorrentes da narrativa dos fatos?
Para além das questões do tratamento degradante das mulheres recentementes suscitadas, deve-se também questionar, em tempos de crise, qual seria o real papel da Universidade, enquanto centro irradiador de uma cultura em que a dignidade da pessoa humana seja não somente respeitada, mas incorporada à prática cotidiana dos estudantes.
Cristina Oliveira é doutoranda em “Direito, Justiça e Democracia no Século XXI”, da Universidade de Coimbra/Portugal. Atuou e participou do desenvolvimento do “Núcleo de Apoio à Vítima de Estupro”, do Ministério Público do Estado do Paraná, com sede em Curitiba
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