”BR-319 será um desastre social, econômico e ecológico; a rodovia e laterais planejadas ameaçam parte da Amazônia”, alerta biólogo Philip Fearnside

Tempo de leitura: 9 min
O biólogo Philip Fearnside, do grupo que ganhou da ONU o Nobel da Paz. E trecho de floresta preservada no meio da BR-319. Fotos: Reprodução de vídeo do Estadão e arquivo de Carolle Alarcon

Imagem do documentário “BR 319 – Bem vindo à Realidade”, de Marcio Isensee e Sá/Amazônia Real

Da Redação

Philip Martin Fearnside é pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978.

Doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA), recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007.

Em março deste ano, publicou dois artigos no site da agência Amazônia Real, alertando sobre o projeto de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho).

Como estão interligados, republicamos ambos.

Abaixo, os dois artigos por ordem de publicação

Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial: 1 – Um desastre evitável

Por Philip Martin Fearnside, Amazônia Real

Embora o processo de licenciamento do projeto de reconstrução da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) continue avançando em direção à aprovação, a obra ainda não é um fato consumado.

O país precisa pensar melhor sobre os enormes impactos e parcos benefícios deste projeto antes que seja tarde demais.

Publiquei hoje um editorial convidado pela prestigiada revista Ambio, que explica este risco.

Segue tradução do editorial da Ambio

A Amazônia é reconhecida por sua importância global na regulação do clima e por sua extraordinária diversidade biológica e cultural, incluindo distinções como o status de Patrimônio Mundial da UNESCO da Área de Conservação da Amazônia Central.

Infelizmente, as ações atuais e planejadas do governo brasileiro promovem amplo desmatamento e degradação que ameaçam os serviços ambientais que a floresta amazônica fornece ao Brasil e ao mundo.

O último grande bloco de floresta intacto na Amazônia brasileira está agora ameaçado por estradas planejadas. Isso desencadearia processos que, apesar do discurso político, estão fora do controle do governo brasileiro [2].

A rodovia BR-319 (Fig. 1, abaixo) ligaria o notório “arco do desmatamento”, no sul da Amazônia, a Manaus, na Amazônia central [3].

Fig. 1 Desmatamento na Amazônia Legal do Brasil até 2018 (Dados de: [7]). O desmatamento até agora se concentrou no “arco do desmatamento” ao longo das bordas sul e leste da floresta. A rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) e vias secundárias associadas dariam acesso de desmatadores à vasta área de floresta no oeste do estado do Amazonas.

Esta estrada foi construída no início da década de 1970 e foi abandonada em 1988; desde 2015, um programa de “manutenção” a tornou marginalmente transitável durante a estação seca, e a estrada agora está planejada para “reconstrução”.

Pode-se esperar que os atores e processos de desmatamento migrem para todas as áreas conectadas a Manaus por estrada, como Roraima, no norte da Amazônia [4], e para a vasta área de floresta no oeste do estado do Amazonas que seria aberta por estradas planejadas para ligar à BR-319 [5].

O Brasil está totalmente despreparado para conter a destruição que essa mudança na geografia do desmatamento representa [6].

Essa situação foi agravada pelo desmonte dos órgãos e da legislação de controle ambiental durante o governo de Jair Bolsonaro, que começou em janeiro de 2019 [8].

Políticos de Manaus afirmam que a BR-319 seria um “modelo de sustentabilidade para o mundo”, mas tudo indica o contrário.

A rota da rodovia é basicamente uma terra sem lei hoje [9, 10], e o governo dificilmente terá recursos para a construção da estrada em si, muito menos para um programa massivo de governança que seria necessário para proteger dezenas de terras indígenas e unidades de conservação afetadas.

A reconstrução da BR-319 deve aguardar uma época futura em termos de capacidade e vontade política na área ambiental. Felizmente, essa espera não representaria um sacrifício.

O projeto da rodovia não é economicamente viável [11, 12]. É o único grande projeto de infraestrutura no Brasil que carece de um estudo de viabilidade econômica (EVTEA), provavelmente pelo motivo óbvio de que tal estudo revelaria sua inviabilidade.

Comparado ao transporte pela BR-319, o transporte dos produtos das fábricas da Zona Franca de Manaus para São Paulo é mais barato usando o atual sistema de barcaças com carretas até Belém, e seria muito mais barato ainda se fosse construído um porto adequado em Itacoatiara para transportar contêineres para o Sudeste do Brasil em navios oceânicos.

Os políticos de Manaus são os beneficiários mais visíveis da BR-319, já que defender o projeto da rodovia é uma estratégia fundamental para conquistar votos na cidade.

Manaus tem uma população de 2,2 milhões, ou 1% da população do Brasil. Como a BR-319 será reconstruída pelo governo federal (ou seja, pelos contribuintes de todo o país), quase todo o custo será pago pelos 99% que não moram em Manaus.

Um argumento apresentado pelos políticos de Manaus para justificar isso é que a Amazônia vem sendo explorada pelo resto do Brasil há séculos e, portanto, há uma dívida a ser paga com a região. Esse argumento pode repercutir em Manaus, mas dificilmente será convincente em São Paulo.

Seria especialmente pouco convincente se a população de São Paulo percebesse que até 70% de sua água depende de manter a floresta amazônica em pé [13, 14]. [15].

Notas

[1]. Fearnside, P.M. 2022. Amazon environmental services: Why Brazil’s Highway BR-319 is so damaging. Ambio

[2] Fearnside, P.M., 2020. BR-319 – O começo do fim para a floresta amazônica brasileira. Amazônia Real, 06 de outubro de 2020.

[3] Fearnside, P.M. & P.M.L.A. Graça. 2009. BR-319: A rodovia Manaus-Porto Velho e o impacto potencial de conectar o arco de desmatamento à Amazônia central. Novos Cadernos NAEA 12(1): 19-50.

[4] Barni, P.E., P.M. Fearnside & P.M.L.A. Graça. 2018. Simulando desmatamento e perda de carbono na Amazônia: Impactos no Estado de Roraima devido à reconstrução da BR-319 (Manaus-Porto Velho). In: Oliveira, S.K.S. & Falcão, M.T. (Eds.). Roraima: Biodiversidade e Diversidades. Editora da Universidade Estadual de Roraima (UERR), Boa Vista, Roraima. p. 154-173.

[5] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020. Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.

[6] Fearnside, P.M. 2018. Challenges for sustainable development in Brazilian Amazonia. Sustainable Development 26: 141-149.

[7] Brasil, INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). 2021. Projeto PRODES – monitoramento da floresta amazônica brasileira por satélite. São José dos Campos: INPE.

[8] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2019. O novo presidente do Brasil e “ruralistas” ameaçam o meio ambiente, povos tradicionais da Amazônia e o clima global. Amazônia Real, 30 de julho de 2019.

[9] Andrade. M., L. Ferrante & P.M. Fearnside. 2021. A rodovia BR-319, do Brasil, demonstra uma falta crucial de governança ambiental na Amazônia Amazônia Real, 02 de março de 2021.

[10] Ferrante, L., M.B.T. de Andrade, L. Leite, C.A. Silva Junior, M. Lima, M.G. Coelho Junior, E.C. da Silva Neto, D. Campolina, K. Carolino, L.M. Diele-Viegas, E.J.A.L. Pereira & P.M. Fearnside. 2021. BR-319: O caminho para o colapso da Amazônia e a violação dos direitos indígenas. Amazônia Real, 23 de fevereiro de 2021.

[11] Teixeira. K.M. 2007. Investigação de Opções de Transporte de Carga Geral em Contêineres nas Conexões com a Região Amazônica. Tese de doutorado, São Carlos: Universidade de São Paulo.

[12] Fleck, L. 2009. Eficiência Econômica, Riscos e Custos Ambientais da Reconstrução da BR 319. Lagoa Santa: Conservation Strategy Fund.

[13] van der Ent, R.J., H.H.G. Savenije, B. Schaefli & S.C. Steele-Dunne. 2010. Origin and fate of atmospheric moisture over continents. Water Resources Research 46: art. W09525.

[14] Zemp, D.C., C.F. Schleussner, H.M.J. Barbosa, R.J. van der Ent, J.F. Donges, J. Heinke, G. Sampaio & A. Rammig. 2014. On the importance of cascading moisture recycling in South America. Atmospheric Chemistry and Physics 14: 13337–13359.

[15] Este texto é uma tradução parcial de: Fearnside, P.M. 2022. Amazon environmental services: Why Brazil’s Highway BR-319 is so damaging. Ambio As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 311103/2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM 01.02.016301.000289/2021 ) e Rede Brasileira de Pesquisa em Mudança do Clima (FINEP/Rede Clima 01.13.0353-00). MA dos Santos Junior preparou a Figura 1.

A imagem mostra a floresta preservada no trecho do meio da BR-319. Foto: cedida por Carolle Alarcon

Por que a rodovia BR-319 é tão prejudicial: 2 – A ameaça aos serviços ambientais da floresta amazônica

Por Philip Martin Fearnside*, em Amazônia Real

Especialmente preocupante é uma rodovia estadual planejada (AM-366) que se ramificaria da BR-319 para o oeste e passaria pelos primeiros blocos de perfuração do maciço projeto “Área Sedimentar do Solimões” para extração de petróleo e gás em uma área maior que o estado americano da Califórnia [1] (Fig. 2).

Os blocos que seriam atravessados pela AM-366 já foram comprados pela gigante petrolífera russa Rosneft ([2], p. 106), e uma empresa tão poderosa provavelmente influenciaria as autoridades governamentais a acelerar a construção da AM-366.

Fig. 2. Mapa do projeto planejado ‘de óleo e gás “Área Sedimentar do Solimões”. As áreas roxas possuem poços atualmente em produção. As finas linhas verdes representam locais já pesquisados por métodos sísmicos para perfuração futura. A “área de influência estratégica” do projeto, de 740.000 km2, está destacada em vermelho; é maior que o estado americano da Califórnia. Fonte para projeto de óleo e gás: ([5], p. 65); Fonte para estradas planejadas: [6].

Também é provável que surjam estradas secundárias ilegais espontâneas (“ramais”), como já está acontecendo ao longo da BR-319 [3]. Uma delas até segue a rota planejada da AM-366, cortando uma terra indígena e um parque nacional [4].

A vasta área que seria aberta a oeste da BR-319 possui alta biodiversidade e uma rica diversidade de povos indígenas [7]. É também a fonte do vapor d’água que é reciclado pelas árvores e transportado para São Paulo pelos ventos conhecidos como “rios voadores” [8, 9].

Esta área contém um enorme estoque de carbono que, se liberado em um curto período de anos, seria crítico para empurrar o sistema climático global além de um ponto de inflexão onde um “efeito-estufa descontrolado” aceleraria fora do controle humano [10, 11].

Os potenciais impactos globais de permitir que a Amazônia ocidental, central e norte sejam abertas para a destruição são de magnitude suficiente para que aqueles em outras partes do mundo devem considerar tanto seus papéis nos processos destrutivos em andamento no Brasil quanto a influência potencial que eles têm sobre eventos no país.

O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina e soja, que são as duas commodities com maior impacto no desmatamento da Amazônia (por exemplo, [12]).

Os políticos brasileiros são muito sensíveis ao atendimento dos interesses do agronegócio do país, e qualquer ameaça de restrições por parte de países e empresas importadoras tem forte influência nas decisões [13].

Todos os países, empresas e indivíduos devem considerar os impactos indiretos que suas compras têm em outras partes do mundo, incluindo impactos que voltam a afetá-los diretamente por meio das mudanças climáticas.

Em suma, a rodovia BR-319 será um desastre social, econômico e ecológico. Essa rodovia e suas estradas laterais planejadas ameaçam uma parte da Amazônia que precisa ser mantida em floresta para gerar os serviços ambientais que esse habitat biologicamente diverso fornece à população local, à população brasileira em geral e ao resto do mundo.[14]

Notas
[1] Fearnside, P.M. 2020. Os riscos do projeto de gás e petróleo “Área Sedimentar do Solimões”. Amazônia Real, 12 de março de 2020.

[2] Brasil, DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2020. Estudo do Componente Indígena CI Preliminar da Etnia 3 – Apurinã – Rev C. Brasília: DNIT.

[3] Fearnside, P.M., L. Ferrante & M.B.T. de Andrade. 2020. Ramal ilegal a partir da rodovia BR-319 invade Reserva Extrativista e ameaça Terra Indígena. Amazônia Real, 09 de março de 2020.

[4] Fearnside, P.M., L. Ferrante, A.M. Yanai & M.A. Isaac Júnior. 2020.Região Trans-Purus, a última floresta intacta. Amazônia Real.

[5] Brasil, EPE (Empresa de Pesquisa Energética). 2020. Estudo Ambiental de Área Sedimentar na Bacia Terrestre do Solimões. Relatório SOL-EA-60-600.0010-RE-R0. Manaus & Rio de Janeiro: EPE. 552 pp.

[6] Brasil, DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). 2002. Mapa Rodoviário Amazonas. Brasília: DNIT.

[7] Ferrante, L. M.P. Gomes & P.M. Fearnside. 2020. BR-319 ameaça povos indígenas. Amazônia Real.

[8] Arraut, J.M., C.A. Nobre, H.M. Barbosa, G. Obregon & J.A. Marengo. 2012. Aerial rivers and lakes: Looking at large-scale moisture transport and its relation to Amazonia and to subtropical rainfall in South America. Journal of Climate 25: 543-556.

[9] Keys, P.W., R.J. van der Ent, L.J. Gordon, H. Hoff, R. Nikoli & H.H.G. Savenije. 2012. Analyzing preci

[10] Nogueira, E.M., A.M. Yanai, F.O.R. Fonseca & P.M. Fearnside. 2015. Carbon stock loss from deforestation through 2013 in Brazilian Amazonia. Global Change Biology 21: 1271–1292.

[11] Barros, H.S. & P.M. Fearnside. 2019. Soil carbon is decreasing under “undisturbed” Amazonian forest. Soil Science Society of America Journal 83: 1779-1785.

[12] Fearnside, P.M., A.M.R. Figueiredo & S.C.M. Bonjour. 2013. Amazonian forest loss and the long reach of China’s influence. Environment, Development and Sustainability 15: 325-338.

[13] Ferrante, L. & P.M. Fearnside. 2022. Países devem boicotar o Brasil por causa do desmatamento impulsionado pela exportação. Amazônia Real, 16 de fevereiro de 2022.

[14] Este texto é uma tradução parcial de: Fearnside, P.M. 2022. Amazon environmental services: Why Brazil’s Highway BR-319 is so damaging. Ambio As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq 311103/2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM 01.02.016301.000289/2021 ) e Rede Brasileira de Pesquisa em Mudança do Clima (FINEP/Rede Clima 01.13.0353-00).

*Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui.


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Comentários

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Zé Maria

Realmente, a BR 319 margeia o Rio Madeira
desde Manaus/AM até Porto Velho/RO e
pode atingir os Afluentes na Bacia do Rio,
além do próprio Madeira, não apenas pelo
Desmatamento, mas com a Poluição Local
e a conseqüente Degradação Ambiental.

O Ministério do Meio Ambiente tem de agir.

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