Desenvolvimento, classes e pensamento científico

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Lutero: revolução, mas nem tanto. Reprodução

Pergunta: quais as relações entre o desenvolvimento ecônomico e social, as classes e o pensamento científico

por Boris Vargaftig* 

No Século IV da era comum (+/- 315), para unificar o Império Romano em crescente e ameaçadora desagregação frente às invasões dos chamados bárbaros, os imperadores romanos Constantino e mais tarde, Teodósio, empoderam o cristianismo como religião de Estado e criminalizam o paganismo dominante até então.

Durante séculos, o domínio ideológico da Igreja única e universal persiste no mundo ocidental e se reforça no oriental.

Ligado ao desenvolvimento das forças produtivas, instala-se pouco a pouco o feudalismo, com a redução do escravismo europeu, e o estabelecimento do regime de propriedade feudal da terra baseado em um imenso exército de servos da gleba. 

A partir dos Séculos XI e XII, uma nova classe se forma, a burguesia, que paga salários a trabalhadores “livres”.

Assim, o mercado se amplia, mas a escravidão cresce imensamente, com a chamada descoberta das Américas, que requer mão de obra barata para a produção de insumos, extração de ouro etc.

Dezenas de milhões de seres humanos são importados da África, com enorme mortalidade durante o transporte. 

As velhas crenças religiosas sofrem modificações, pois não mais correspondem ao desenvolvimento da sociedade e do conhecimento.

Surgem heresias e divisões, e o protestantismo, que não só critica a Igreja oficial pela sua notória corrupção, mas promove diretamente o capitalismo, difundindo o conceito que ser rico não é defeito nem pecado, mas dádiva divina. 

Tudo o que um capitalista possa desejar: enriquecer e ainda por cima assegurar seu lugar no paraíso!

Note-se que bem antes, também nos Séculos XI e XII, aparecem entre os dogmas católicos o do purgatório, um lugar meia-boca, onde os pecadores ricos sofrem punição de principio, antes de, perdoados, reunirem-se com o resto do rebanho, no paraíso.

Muito útil, a teologia segue as forças produtivas!  

Bem mais tarde, a ciência sofre forte repressão.

Copérnico, na Polonia, Giordano Bruno, em Roma, (Século XVI) e Galileu (Século XVII), afirmam que a terra é redonda, gira em torno do sol, não é o centro do mundo, o que contraria o conceito clerical de que o homem e o globo são o centro do universo.

A inquisição, Congregação da Sagrada, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício, investiga, acusa, julga, condena e queima.

Isto não impede o Renascimento em todos países europeus, nem o desenvolvimento do capitalismo que o estimula e, dialeticamente, dele resulta; um promove o outro.

Não por acaso, os filósofos mais importantes do Renascimento, anti-clericais, críticos da monarquia, favoráveis ao desenvolvimento científico e industrial, não se interessam pelo andar de baixo da sociedade e, quando visível, procuraram escondê-lo, como Voltaire.

Isto ocorreu até a Revolução Francesa, 1789, que originou outro tipo de revolucionário, como Baboeuf, um ancestral do comunismo.

O rápido desenvolvimento associado à expansão colonial, que visa matérias primas, mãos de obras e mercados torna a tecnologia e o conhecimento algo de essencial.

O saber já era uma mercadoria virtual, não materializada, mas essencial: Babilônia, Egito, Grécia, Roma precisavam desenvolver técnicas agricolas, de irrigação e de guerra, de transportes, mineração, astronomia para navegação.

Surge a categoria dos sacerdotes e/ou sábios, associados às classes dominantes.

O capitalismo triunfante financia sua expansão material e territorial graças à exploração colonial, baseada no trabalho escravo.

Sem isso, Espanha e Portugal sobretudo, não se teriam desenvolvido.

A industrialização prossegue, notadamente na Europa Ocidental e se inicia na América do Norte.

O final do Século 19 e começo do Século XX se caracterizam pela exploração dos trabalhadores dos países capitalistas, o prosseguimento da transformação dos países da América dita latina em fonte do que chamamos hoje as commodities, matérias-primas e alimentares (café, açucar etc).

O progresso (ou o que se chama progresso) prossegue à base da exploração colonial e da mais-valia extraída dos proletarios, muitos, sobretudo na Inglaterra, provindos da expulsão de suas terras ancestrais das massas camponesas e assim urbanizadas sem outra opção.

Duas potências européias chegaram tardiamente à divisão colonial do mundo – Itália e Alemanha, mal unificadas.

Seu ímpeto belicista provém em boa parte da tentativa de refazer a divisão do mundo, abocanhando um pedaço.

Esta pretensão fracassa nas 1a e 2a guerras mundiais e chegamos aos dias de hoje, dezenas de anos após a transformação da burocracia soviética, em sua origem uma não-classe na avaliação marxista (pois controlava as forças produtivas, mas não as possuia), em verdadeira possessora dos meios de produção, uma burguesia arrogante e agressiva.

À medida que as forças produtivas se desenvolvem, exigem mercados e mão de obra competente.

Impossível manter intacto o pensamento mágico e se desenvolve o ensino mais sério, o público.

As religiões sempre desempenharam um papel reacionário, qualquer que fosse a boa fé, dedicação à causa dos pobres e espírito de sacrifício de fortes contingentes, desde os heréticos sublevados contra os principes reinantes (por exemplo, as guerras camponesas na Alemanha no Século XV, em que Lutero apoia a repressão pelas tropas dos principes, que massacram os camponeses).

A teologia da libertação é outro exemplo importante, mas estas tendências foram sempre minoritárias e acabaram engrossando as fileiras da política burguesa (como PSDB) ou dos movimentos progressistas de várias matizes.

Outro exemplo negativo é a Igreja Ortodoxa Russa, a mais anti-semita de todas, que se adaptou imediatamente ao novo regime, ornamentando as recepções governamentais com seu cerimonial feudal pesado e teatral.

Ulteriormente daremos alguns exemplos ilustrativos das dificuldades do pensamento mágico em sociedades industriais – e como o peso das classes dominantes permite-lhe sobreviver. 

*Boris Vargaftig é médico farmacologista, professor titular aposentado da USP


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