Roberto Mardem e Nayara Oliveira: Planos minimalistas e o aprofundamento das iniquidades no sistema de saúde brasileiro
Tempo de leitura: 6 min
Planos minimalistas e o aprofundamento das iniquidades no sistema de saúde brasileiro
A regulação é necessária, mas não suficiente: é preciso enfrentar o próprio modelo dual que estrutura o sistema de saúde no Brasil
Por Roberto Mardem Soares Farias e Nayara Oliveira*, em Manifesto Petista**
Algumas notícias que têm aparecido na imprensa nos deixam muito preocupados.
No último dia 25 de fevereiro de 2025, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) promoveu uma audiência pública para discutir uma proposta de mudança significativa na regulamentação dos planos de saúde.
Visa permitir a criação de uma nova modalidade de plano de saúde denominada “Plano para consultas médicas estritamente eletivas e exames”.
Esse modelo, também conhecido como plano “minimalista”, não prevê cobertura para atendimentos de urgência, emergência, nem terapias — rompendo, portanto, com o princípio da integralidade do cuidado.
Mais recentemente lemos em vários órgãos de imprensa que “Lula avalia apoiar criação de plano de saúde popular de até 100 reais”, talvez à busca de apoio popular para sua reeleição em 2026.
Ainda que mereça ser reeleito, isso não se pode dar às custas do SUS e de outras políticas sociais inclusivas, numa barganha que parece sem limite e ou subordinada aos retrocessos impostos pela direita brasileira.
Trata-se de um retrocesso preocupante em relação ao marco regulatório estabelecido pela Lei nº 9.656/1998, que há mais de duas décadas buscou proteger os usuários do setor suplementar diante da proliferação de operadoras que negavam cobertura em momentos críticos de atenção à saúde.
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Com os chamados planos minimalistas, os riscos de desassistência aumentam e a fragmentação do cuidado se aprofunda — em especial para as populações mais vulneráveis, que, diante das dificuldades de acesso hoje no SUS, podem ser atraídas por planos mais baratos, mas com pouca ou nenhuma cobertura real.
Os planos minimalistas colocam o SUS em risco por alguns motivos: o sistema público será o destino das demandas de maior complexidade, que não serão cobertas pelos planos restritos.
Assim, o SUS, já pressionado por subfinanciamento e sobrecarga pela insuficiência de equipes de atenção primária e especialistas, será ainda mais demandado para suprir lacunas criadas pelo setor privado.
Hoje, muitas pessoas enfrentam dificuldades no SUS para conseguir consultas, exames, cirurgias e início de tratamentos — principalmente em casos mais graves. Isso gera insatisfação e faz com que, quando aparece um plano de saúde mais barato, muitos pensem: “melhor isso do que nada”. Mas a realidade pode ser mais dura do que parece.
Esses planos restritos não resolvem os problemas de saúde das pessoas, apenas empurram os casos mais graves para o SUS.
Na prática, o SUS continuaria cuidando das situações mais difíceis e caras, como já faz, mas agora ainda mais sobrecarregado.
É fácil prever: têm-se um sintoma e busca-se o médico do plano minimalista. Este, que não acompanha o paciente ao longo do tempo, não o conhece adequadamente, não conhece o contexto no qual vive, faz um diagnóstico. Pede-se inúmeros exames. O convênio se recusa a fazê-los. Busca-se o SUS e pressiona-se o médico de família para fazer exames, muitos inúteis ou até “porque o paciente pediu”: mais custos e mais atendimentos desnecessários.
É possível que, diante da dificuldade de diagnóstico, o médico do convênio o encaminhe para especialistas. E, de novo, diante das insuficiências desses planos minimalistas, lá está novamente o paciente a pressionar por consultas desnecessárias no sistema público.
É óbvio: o plano, à busca de lucro, buscará ficar com a parte mais fácil e deixar a parte mais pesada para o serviço público. Cria-se assim o um uso fragmentado dos dois sistemas.
O resultado disso é um cuidado menos efetivo, mais confuso e, muitas vezes, sem resolver o problema de saúde da pessoa. E ainda aumenta a carga sobre os trabalhadores do SUS, que precisam lidar com a parte mais difícil, com menos recursos.
Sustentando essas críticas, muito pertinentes segundo a minha avaliação, foi publicado um ótimo artigo na coluna Saúde é Coletiva do Outras Palavras (Saúde privada busca volta à desregulação – Outras Palavras), assinada por Alzira Jorge, Fausto Pereira e Rômulo Paes.
São estudiosos e pesquisadores do SUS a quem respeitamos e admiramos. No seu texto, que analisa criticamente essa proposta, traz contribuições importantes ao denunciar os efeitos negativos dessa nova modalidade.
Os autores também apontam que essa proposta representa um retorno ao cenário pré-regulatório, em que operadoras sem estrutura adequada abriam e fechavam com frequência, deixando milhares de pessoas sem atendimento.
Além disso, alertam que, com a entrada em vigor dos planos minimalistas, haverá maior dificuldade para organizar as filas de acesso no SUS, com risco de “bypass” — ou seja, beneficiários de planos privados sendo encaminhados diretamente para a atenção especializada, passando à frente de quem acessa o SUS por seus canais regulares. Isso acentua desigualdades já estruturadas.
Concordamos com os argumentos apresentados no artigo. No entanto, é necessário ir além.
A proposta da ANS, e a forma como o artigo o critica e mesmo o debate público a respeito (pouco ainda, infelizmente), revela algo mais profundo: a naturalização da existência de um sistema dual de saúde no Brasil — como se essa divisão entre público e privado, com lógicas distintas de funcionamento e acesso, fosse inevitável.
Telma Menicucci, em sua obra Público e Privado na Política de Assistência à Saúde no Brasil: Atores, Processos e Trajetórias, demonstra que essa configuração institucional híbrida não é fruto do acaso ou de escolhas técnicas recentes.
Trata-se de um processo histórico, iniciado na década de 1960, em que o Estado brasileiro estimulou o crescimento do setor privado com recursos públicos, inclusive utilizando incentivos fiscais, compras governamentais de serviços e subsídios indiretos (como a dedução de despesas com saúde privada no imposto de renda).
Menicucci afirma que esse modelo gerou um sistema estruturalmente segmentado: de um lado, o SUS, comprometido com os princípios de universalidade, integralidade e equidade; de outro, um setor privado que atua com base em critérios de mercado, acesso seletivo e serviços voltados prioritariamente à população com maior poder aquisitivo.
Quando esse sistema privado não dá conta — como ocorrerá com os planos minimalistas —, transfere-se ao SUS a responsabilidade de garantir o cuidado, ampliando a sobrecarga sem os recursos correspondentes.
O risco, portanto, não está apenas na criação de mais uma modalidade excludente de plano de saúde, mas na própria lógica de funcionamento do sistema dual.
Tal arranjo compromete a efetivação dos princípios constitucionais do SUS e reforça desigualdades no acesso, na qualidade do cuidado e na responsabilização pública.
Em vez de tratar o sistema dual como uma fatalidade ou algo “com o qual precisamos conviver”, é necessário problematizá-lo e enfrentá-lo como um obstáculo à consolidação plena de um sistema público universal.
Artigo de 2021, publicado no Britsh Journal of General Practice demonstra que a continuidade do cuidado (o acompanhamento longitudinal das pessoas ao longo dos anos pelo mesmo profissional – e, melhor ainda no SUS, pela mesma equipe) é fator, por si só, capaz de reduzir internações, uso de serviços de saúde e a mortalidade.
Essa é a maior potência do SUS: acompanhamento ao longo dos anos das pessoas e suas famílias, concebendo a saúde como fruto da sociabilidade, da cultura, da inserção de classe, do trabalho, das relações com a comunidade e território, “ainda que incida num corpo que é também biológico”.
Avaliamos que uma proposta como essa, encampada pelo Governos Federal, é fazer exatamente o que o mercado sempre tentou: não acabar com o SUS (afinal é um grande espaço para construção, venda de equipamentos, medicamentos e exames), mas reduzi-lo a um SUS para pobres e capaz de estimular, via transferência de recursos, um sistema privado forte e poderoso.
É preciso que conselhos de saúde, entidades da sociedade civil, profissionais da saúde, universidades, gestores comprometidos com o SUS e movimentos populares avancem nesse debate.
A regulação do setor suplementar é necessária, sem dúvida. Mas não será suficiente enquanto mantivermos um modelo que socializa os riscos e privatiza os lucros.
Se quisermos um SUS verdadeiramente universal e sustentável, será necessário rediscutir o papel do setor privado na saúde brasileira — inclusive os limites de sua expansão com recursos públicos.
Por isso, não se trata apenas de discutir se o plano minimalista é bom ou ruim. Precisamos debater o modelo de saúde que queremos.
Se continuarmos permitindo que o setor privado cresça às custas do SUS, estaremos enfraquecendo ainda mais o sistema que atende quem mais precisa, sem nenhuma perspectiva de que venha a ser de fato universal.
Esse tipo de proposta, em vez de ajudar, agrava ainda mais as desigualdades do sistema de saúde no Brasil.
Não é factível que um governo pretensamente de esquerda seja aquele a disparar o “tiro de misericórdia” que reduz o papel do SUS.
O que queremos do nosso governo é mais coragem – para ampliar as equipes de atenção primária, mais especialistas para reduzir as filas das especialidades e cirurgias eletivas e garantir condições adequadas e dignas para os nossos trabalhadores.
Esse tipo de proposta, em vez de ajudar, agrava ainda mais as desigualdades do sistema de saúde no Brasil.
E como mostra a pesquisadora Telma Menicucci em seu livro, isso não é novidade: há décadas o Estado investe dinheiro público para fortalecer o setor privado, enquanto o SUS luta para cumprir seu papel com poucos recursos.
No contexto atual sempre somos lembrados de que não é favorável defender uma regulação adequada do sistema privado, quanto mais traçar e implementar um plano para reverter a dualidade do sistema.
Mas podemos e precisamos manter a utopia.
Há muito conformismo no ar, tipo o capitalismo é inevitável, tal como defende Mark Fisher de que “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.” Preferimos acreditar que não!
*Roberto Mardem Soares Farias, médico pediatra e sanitarista, trabalhou no SUS por mais de 40 anos, militante do Movimento Popular de Saúde (MOPS) Campinas e Conselheiro Municipal de Saúde.
*Nayara Oliveira, educadora popular de saúde, socióloga sanitarista, trabalhou por quase 30 no SUS, militante do MOPS Campinas, ex-conselheira municipal de saúde.
**Manifesto Petista é um espaço criado por um coletivo de militantes e simpatizantes do PT que pretende colaborar com as discussões sobre temas da conjuntura nacional e internacional. Não é uma publicação oficial do partido.
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Paulo Capel: Sai Nísia, entra Padilha. O que fazer para o SUS não se tornar balcão de negócios?
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Comentários
Zé Maria
.
“STF dá Prazo para Congresso Nacional
detalhar Procedimento de Autoria de
Emendas ao Orçamento
Decisão do ministro Flávio Dino prevê 10 dias
para Legislativo e Executivo explicarem falhas
no cumprimento do plano homologado pela Corte
STF Notícias
O ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF),
deu prazo de 10 dias úteis à Câmara dos Deputados
e ao Senado Federal para que informem como será
registrada a autoria do congressista responsável
por propor mudanças no planejamento orçamentário
das emendas parlamentares de comissão e de bancada.
Conforme o ministro, os formulários estabelecidos pelo
Congresso para esse registro não trazem um campo
específico para identificar o parlamentar que pedir
a alteração, o que compromete a transparência e a
rastreabilidade dos valores.
Na mesma decisão, Dino também determinou à
Advocacia-Geral da União (AGU) que explique, em
10 dias, como será usado o Cadastro Integrado de
Projetos de Investimento (CIPI), registro público
que centraliza informações de projetos de investimento
em infraestrutura.
Neste ponto, o objetivo é saber se o sistema
é compatível com os dados sobre as emendas
relacionadas a ações estruturantes.
A AGU também deverá esclarecer como será
o procedimento para avaliar a ocorrência dos
chamados “impedimentos de ordem técnica”,
que impedem a execução de emendas.
A decisão foi tomada após manifestações de
entidades admitidas como interessadas na
Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 854.
As informações apontam incompatibilidades
entre a execução do Orçamento de 2024 e
decisões já proferidas pela Corte quanto
à transparência do dinheiro destinado via
emendas parlamentares.
A Associação Contas Abertas, a Transparência
Brasil, a Transparência Internacional e o Instituto
Não Aceito Corrupção (Inac), por exemplo, relataram
que não foi possível identificar corretamente os
parlamentares autores das emendas nas planilhas
das Comissões da Câmara e do Senado referentes
ao Orçamento de 2024.
Segundo essas entidades, a Resolução 001/2025,
aprovada pelo Congresso em fevereiro, não exige
a identificação do autor final das emendas de comissões,
uma vez que cabe aos líderes partidários fazerem as
indicações. A normativa alterou a Resolução 001/2006
para se adequar à Lei Complementar 210/2024 (que
trata da proposição e da execução de emendas
parlamentares na lei orçamentária anual) e às decisões
do STF.
Ela foi elaborada a partir da homologação do plano de
trabalho conjunto dos poderes Legislativo e Executivo,
visando dar maior transparência e rastreabilidade às
emendas parlamentares.
Inconsistências
Outro ponto de inconsistência apresentado pelas
entidades diz respeito ao Cadastro Integrado de
Projetos de Investimento.
Segundo elas, é impossível verificar se as emendas
de bancada se referem a projetos e ações constantes
no CIPI, porque não há conexão entre a base de dados
do cadastro e as informações das emendas.
Além disso, o cadastro não apresenta a classificação
funcional programática de cada obra ou projeto, o que
dificulta a identificação do destino dos recursos públicos.
Diante dessas manifestações, o ministro determinou
que sejam disponibilizados no site do Comitê de
Admissibilidade de Emendas (CAE) os registros de suas
reuniões e todos os documentos produzidos, de forma
acessível à sociedade.
Também determinou que os Poderes Executivo e
Legislativo cumpram integralmente o compromisso
de convalidar as chamadas “emendas de comissão”
do Orçamento de 2024, conforme definido no Plano
de Trabalho conjunto homologado pelo Supremo.
Transparência e Rastreabilidade
Flávio Dino é o relator das ações no Supremo que
questionam as regras para emendas parlamentares.
O ministro já proferiu decisões, confirmadas pelo
Plenário, em que foi exigido o atendimento a critérios
de transparência e rastreabilidade para os recursos
envolvidos.
Sobre o tema, foi construído um Plano de Trabalho
conjunto entre o Poder Executivo e o Legislativo.
A proposta detalha novas providências para dar
transparência à execução das emendas parlamentares.
O acordo foi homologado pelo ministro no final de
fevereiro, em decisão confirmada pela unanimidade
do Plenário.
Com a homologação do plano entre Executivo e
Legislativo, o ministro afirmou que não havia mais
empecilhos para a execução das emendas ao
Orçamento de 2025 e as de exercícios anteriores,
desde que cumpridos os critérios técnicos estabelecidos
no próprio plano e em decisões do STF.
https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-da-prazo-para-congresso-detalhar-procedimento-de-autoria-de-emendas-ao-orcamento/
.
Zé Maria
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A Direita Bolsonarista no Congresso NaZional
está esculhambando com emendas esdrúxulas
o Planejamento Orçamentário da União Federal.
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O Ministério Público Federal requisitou esclarecimentos
à presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz do Sul,
Nicole Weber (Podemos-RS), que declarou em suas
redes sociais ter conseguido o repasse de R$ 1,3 Milhão
em emendas parlamentares como um “presente” do
deputado federal Covatti Filho (PP-RS), que é seu noivo.
A vereadora afirmou na postagem que o valor será
destinado à modernização da rede elétrica da ala
São Francisco do Hospital Santa Cruz, que atende
a moradores do município e de cidades vizinhas
pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Corri para o meu deputado federal, expliquei a situação,
e de pronto, entendendo comigo que essa é a maior
necessidade na saúde em Santa Cruz nesse momento,
então Covatti Filho decidiu enviar para o HSC a emenda
parlamentar “, disse a vereadora ao anunciar os recursos.
O Procurador da República Celso Tres, que assina
o documento enviado à vereadora, informa que o MPF
acompanha, em todo o país, o recebimento de emendas
parlamentares individuais impositivas sem finalidade
definida, as chamadas “pix”, por orientação da 5ª Câmara
de Coordenação e Revisão do MPF, especializada no
combate à corrupção.
Também foi encaminhada para o conhecimento de Nicole
uma cópia da recomendação feita pelo MPF, em fevereiro
deste ano, ao prefeito de Santa Cruz do Sul, Sérgio Ivan
Moraes (PL), solicitando providências no sentido de
garantir maior transparência no acompanhamento da
aplicação das “emendas pix” destinadas ao município,
em 2024.
https://www.cartacapital.com.br/politica/mpf-pede-esclarecimentos-sobre-emenda-que-teria-sido-destinada-como-presente-de-noivado/