Paulo Capel: Em tempos de pandemia, ir ou não ao dentista?

Tempo de leitura: 4 min

Ir ao dentista em tempos de covid-19: sim ou não?

Paulo Capel Narvai*, especial para o Blog da Saúde

“Enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isso tudo é normal, eu sei: a vida não para não.”

Recolocados no contexto da pandemia da covid-19, os versos de Lenine em “Paciência” adquirem novos e inesperados significados.

Também os de Cazuza, que avisou que “o tempo não para” e alertou: “se você achar que eu tô derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados”.

Sim, mesmo “quando o corpo pede um pouco mais de alma”, “o tempo não para não”.

O tempo não para e a vida segue.

A vida humana e, também, a vida de bactérias, fungos, vírus e outros bichos do mundo dos micróbios.

As vidas seguem indiferentes à pandemia causada pelo novo coronavírus, o SARS-CoV-2, que vem espalhando temor, dor, sofrimento e morte em todo o mundo e, de modo particularmente cruel, no Brasil.

Ignorando o rastro implacável da pandemia, os bilhões de micróbios que habitam diferentes rincões de cada ser humano seguem lutando pela vida diariamente, buscando o tempo todo sobreviver e manter a espécie.

Estima-se que são algo em torno de 100 quatrilhões de microrganismos em um corpo humano.

No total correspondem a aproximadamente 1,25 kg do nosso peso corporal. Apenas na pele, são mais ou menos um trilhão.

A boca é um desses rincões. Nela, mais de 700 espécies de microrganismos, alojam-se em nichos da língua, gengivas e dentes.

Para se ter uma ideia da quantidade, basta dizer que em um perdigoto — essas gotículas de saliva que expelimos ao falar e que ajudam a transmitir o novo coronavírus — são encontrados mais de dois bilhões de microrganismos variados.

Embora seja comum a associação de vírus e bactérias com doenças, nem sempre é assim.

Vários micróbios são simbiontes, ou seja, convivem num ambiente sem serem, necessariamente, hostis ao nosso organismo.

Já outros adquirem poder patogênico apenas quando seu número aumenta, produzindo um desequilíbrio nocivo para humanos.

Sob determinadas condições, microrganismos causam danos às estruturas bucais.

Quando o autocuidado esgota suas possibilidades, então o cuidado odontológico (heterocuidado) é buscado, pois a intervenção de profissionais da área é imprescindível.

Mas, o que fazer em tempos de COVID-19?

Como “a vida não para”, as pessoas seguem desenvolvendo quadros patológicos que requerem atenção.

O que fazer depende, então, de uma avaliação de risco que deve levar em conta um conjunto de variáveis ligadas a quem precisa ser cuidado e a quem cuida, profissionalmente.

Do lado do paciente, é preciso considerar a vulnerabilidade à covid-19, ou seja, a idade, as comorbidades, o estado físico geral, as condições do deslocamento até a unidade de atendimento odontológico, dentre outras.

Do lado dos profissionais dentistas e auxiliares, deve-se levar em consideração a exposição ao risco e as possibilidades de proteção.

Desde a consolidação da transmissão sustentada (comunitária) do SARS-CoV-2 no Brasil, os serviços públicos vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) foram desenvolvendo um protocolo para a assistência odontológica.

Ele pode ser sintetizado em “atender, em caráter de urgência, a todos que apresentem quadro de dor e infecção” e postergar “o mais possível todos os procedimentos considerados eletivos”.

Ou seja, devem ser atendidas pessoas que apresentem quadros patológicos bucais com potencial para gerar riscos de infecções que debilitem seus corpos, contribuindo para deixá-las mais vulneráveis à covid-19.

São os casos que caracterizamos como de urgência odontológica.

O SUS deve, então, providenciar a disponibilidade de serviços públicos que funcionem como unidades de referência e que possam atender essas pessoas, com segurança sanitária.

Tem sido assim, na ampla maioria das cidades. Busca-se assegurar que o atendimento odontológico não seja fonte de contágio e que os profissionais façam seu trabalho com grau razoável de proteção.

O número de pessoas atendidas por turno também foi drasticamente diminuído na maioria dos municípios, segundo vários relatos, provenientes de diferentes regiões brasileiras.

Mas não tem sido nada fácil fazer a gestão desses serviços.

Têm sido relatados frequentemente casos de “deslocamento” de profissionais de odontologia para exercerem outras funções na atenção básica, sem que essas decisões tenham sido discutidas na equipe multiprofissional, gerando conflitos e descontentamento em muitos servidores públicos dessa área, que os consideram violação da autonomia profissional.

E as clínicas e consultórios particulares, como têm funcionado?

De modo geral, o protocolo adotado no SUS tem sido adotado também por serviços privados.

Mas há notícias de profissionais imprudentes, que buscam manter as rotinas pré-pandemia, ignorando-a e expondo-se, bem como aos atendidos.

O Conselho Federal de Odontologia (CFO), que fiscaliza o exercício desses profissionais, vem orientando sobre a importância de serem adotados rígidos padrões de biossegurança e de serem realizados apenas procedimentos e operações inadiáveis.

O CFO resguarda, contudo, o direito de cada profissional odontológico decidir sobre atender ou não. Eventual recusa a prestar atendimento é, nessas situações, amparada pelo CFO.

Em conversas com profissionais, tenho ouvido que “só faço o que não dá pra esperar mesmo”, “e sempre com o máximo de proteção, EPI, paramentação”, “sem produção de aerossóis”.

Quando a produção de aerossóis é inevitável, busca-se, em alguns municípios, reduzir o número de atendimentos, chegando-se a um por turno, para que seja possível providenciar a adequação (limpeza e desinfecção) do ambiente de trabalho.

Dentre os atendimentos, predominam as avaliações diagnósticas, prescrições de medicamentos, procedimentos endodônticos (canal) e extrações dentárias inevitáveis.

Há consenso em que, de uma forma ou outra, como ouvi de uma colega cirurgiã-dentista, a “saúde bucal não pode parar, pois lidamos com pessoas que estão sofrendo e que precisam do nosso trabalho”.

O desafio é, portanto, lidar com essas situações sem colocar em risco a saúde, e até mesmo a vida, dos profissionais dessa área.

Então, se você puder não ir ao dentista nesse período da pandemia, não vá. Se puder, continue em distanciamento físico.

Sim, leve muito a sério o ‘aviso do corona’, pelos versos ressignificados do Cazuza: “se você achar que eu tô derrotado, saiba que ainda estão rolando os dados”.

Se for inadiável, busque ajuda profissional, mas tenha cautela. Não se pode jogar com a vida de quem sofre com dor de dente nem com a de quem quer ajudar.

*Paulo Capel Narvai é professor sênior de Saúde Pública na Universidade de São Paulo (USP).


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