Na Líbia, Ocidente provocou incêndio que não consegue extinguir

Tempo de leitura: 3 min

Ataque na Líbia: Deveria estar claro que depor Gaddafi era a parte fácil

De novo, o Ocidente iniciou um incêndio que não consegue extinguir, com a revolução que apoiou correndo o risco de degenerar no caos

por Simon Tisdall

No diário britânico guardian.co.uk

Wednesday 12 September 2012 16.52 BST

O assassinato em Benghazi do embaixador norte-americano na Líbia é um ato apavorante — e antevisto pelos empregadores dele. No dia 27 de agosto, o Departamento de Estado alertou cidadãos dos Estados Unidos contra qualquer viagem não essencial na Líbia, pintando uma imagem de um país assaltado por crescente instabilidade e repleto de perigos.

“A incidência de crime violento, especialmente sequestro de automóveis e roubo, se tornou um problema sério… Violência política, inclusive com carros bomba em Tripoli e assassinatos de oficiais militares e autoridades alegadamente pertencentes ao regime anterior estão em alta em Benghazi. Conflito intra-milícia pode irromper a qualquer hora e em qualquer lugar do país”, disse o Departamento de Estado no alerta.

Exatamente quem é responsável pela morte de Christopher Stevens e de três funcionários da embaixada permanece incerto. Autoridades líbias culpam gente leal a Gaddafi, ligada às bombas detonadas em Trípoli. Salafistas, muçulmanos ultraconservadores que cercaram o consulado na véspera, parecem ser os maiores suspeitos. Eles promoveram uma série de ataques recentes contra santuários sufistas e diz-se que ficaram enfurecidos com os clipes do filme que difama o profeta Maomé divulgados na internet.

Outros grupos armados líbios podem ter participado. Mas, na verdade, a responsabilidade pode ser atribuída, direta ou indiretamente, àqueles que em Londres, Paris, Bruxelas e Washington lançaram no ano passado a intervenção da OTAN na Líbia com despreocupado desrespeito quanto a consequências futuras. Estava claro, então — ou pelo menos deveria –, que derrubar Muammar Gaddafi era a parte fácil. Evitar uma implosão estilo-Iraque ou alguma forma de anarquia afegã seria muito mais difícil.

Ainda assim é exatamente isso do que a morte de Steven pode ser presságio. Outra vez, os poderes ocidentais iniciaram um incêndio que não conseguem extinguir. Um ano depois de David Cameron e Nicolas Sarkozy viajarem juntos para receber a falsa láurea de libertadores da Líbia, a revolução que eles incentivaram e abasteceram corre o risco de degenerar numa disputa caótica, violenta.

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Não se enganem com as eleições da assembleia nacional [que aconteceram]. A Líbia pós-Gaddafi não tem liderança política nacional viável, nem constituição, nem instituições que funcionem e, o mais importante, não tem segurança. Ainda falta um ano para as eleições parlamentares nacionais. A divisão leste-oeste é tão problemática quanto sempre foi. Facções políticas disputam os ossos do regime deposto, simbolizados pelo julgamento que vem aí  — do filho de Gaddafi, Said, e do chefe de segurança do regime deposto, Abdullah al-Senussi.

O controle central eficaz, enquanto isso, está ausente. E o vácuo foi ocupado por grupos armados — faz pouca diferença se inspirados por grupos políticos, religiosos ou financeiros –, todos reclamando soberania sobre feudos que formavam, até que a OTAN se intrometeu, um estado unificado.

Pesquisa publicada em junho pela Small Arms Survey sugere que a emergência e a influência de grupos armados que desafiam o governo e o exército está se acelerando rapidamente. A pesquisa identificou quatro tipos distintos de grupos, inclusive  brigadas revolucionárias, que controlam 85% das armas que não estão sob controle do estado, além de uma miríade de milícias — definidas vagamente como gangues armadas, redes criminosas e extremistas religiosos, todos determinados a explorar a fraqueza do governo pós-revolução.

Uma disputa de poder está em andamento entre o exército líbio e estes vários grupos, e enquanto alguns jogam um papel construtivo, outro ameaçam o futuro do estado líbio, segundo o levantamento. Em Misrata, por exemplo, além de 30 mil armas de pequeno calibre, as brigadas revolucionárias “controlam mais de 820 tanques, dezenas de peças de artilharia pesada e mais de 2.300 veículos equipados com metralhadoras e armas anti-aéreas”. Misrata, cidade-sede das piores batalhas do ano passado, se tornou um estado dentro do estado.

Em sua condição enfraquecida, política e economicamente, a Líbia parece especialmente vulnerável à ideologia extremista e à influência estrangeira. Num eco das depredações do talibã, os salafistas que cercaram o consulado [dos Estados Unidos] em Benghazi já haviam se envolvido numa série de ataques contra mesquitas históricas dos Sufi e tentativas de intimidar estudantes universitárias que não usam o hijab [véu].

Eles são alegadamente encorajados pelo acadêmico baseado na Arábia Saudita, Sheik Mohamed Al-Madkhalee, autor de uma fátua que elogiou a dessecração de túmulos Sufi e que estimulou os salafistas líbios a limpar o país da nódoa da adoração Sufi. De acordo com Jamie Dettmer, do Daily Beast, o governo líbio reclamou com Riad sobre al-Madkhalle, sem sucesso.

Christopher Stevens era um respeitado diplomata, que ajudava a Líbia a se manter unida depois dos levantes do ano passado. Talvez fosse uma tarefa desde sempre impossível. Mas se tornou mais difícil por conta de políticos ocidentais que, assim como no Iraque, se atiraram numa situação complexa sem cuidado suficiente ou reflexão sobre o futuro.

PS do Viomundo: E teve “especialista” brasileiro que desancou o Itamaraty por não desembarcar tropas na Líbia…

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